S. Paulo
A degeneração amiloide deriva o seu nome de uma reação especial do amido que se cora em azul por meio de uma solução de iodo. Tratando-se porém de substância amiloide, esta coloração não se dá diretamente, como no caso do amido; é preciso lavar o excesso de solução de iodo ou de Lugol e tratar em seguida o material pelo ácido sulfúrico diluido para se obter então uma coloração que vae de verde azulado até azul escuro.
Foi devido a esta, analogia reacional em relação ao amido que R. VIRCHOW deu a essa substância a denominação de amiloide, isto é, semelhante ao amido.
Ha porém uma grande diferença quanto à constituição química, pois o amido é um hidrato de carbono ao passo que a substância amiloide é constituida por um complexo albuminoide, que se diferencia químicamente da hialina.
Deixamos de referir aqui as singularidades e os caracteres da degeneração amiloide, que pódem ser encontrados em qualquer tratado de Anatomia Patológica. Salientamos tão sómente as duas maneiras pela qual ela costuma a se apresentar. O processo degenerativo póde insular-se de modo difuso nos diversos órgãos, atacando de preferência o sistema vascular e o tecido conjuntivo, produzindo desta maneira no órgão atingido um aumento global de volume e, da consistência. A segunda forma de degeneração amiloide é a tumoral. O tumor amiloide, manifestação local circunscrita, encontra-se com maior frequência na mucosa da base da língua, nas vias respiratórias superiores, na conjuntiva e raras vezes no pulmão.
A primeira forma é observada frequentemente em sequência a supurações crônicas, sôbretudo em processos ósseos demorados, nas osteomielites supuradas crônicas, bem como em muitos casos de tuberculose óssea caseosa. Ignora-se por completo a patogenia dos tumores amiloides, mas sabe-se que as supurações crônicas não interferem etiologicamente em sua formação.
Segundo ASCHOFF os nódulos dos tumores amiloides são quasi sempre múltiplos e sobresaem mais ou menos acentuadamente na luz da traquéia, podendo dificultar a respiração, principalmente se estiverem localizados no laringe.
Os tumores são de consistência dura e apresentam uma coloração amarelada com brilho céreo ao corte, apresentando ainda por vezes calcificações.
No Handbuch der Hals-Nasen- und Ohrenheilkunde THOST descreve um.caso de tumor amiloide do laringe em muito semelhante ao nosso, objeto deste pequeno trabalho.
Tratava-se de um motorista de 59 anos de idade que, no decorrer de 7 anos, ficara rouco com intensidade sempre crescente até que se viu impossibilitado de exercer a sua profissão devido à impossibilidade de falar.
O exame revelou a existência no laringe de um tumor do tamanho de um grão de feijão, duro, fortemente abaulado e implantado com base larga na região da comissura anterior, impossibilitando destarte a fonação. A parte restante do laringe foi encontrada normal.
A remoção do tumor foi efetuada em diversas sessões.
O material foi examinado anatomo-patologicamente e passamos a transcrever em tradução portuguesa o relatório, em vista da raridade de tais casos e a dificuldade de se obterem exames patológicos completos sôbre o assunto:
As peças estão recobertas por um epitélio chato pluriestratificado, que, sómente em alguns pontos, envia prolongamentos curtos para as zonas mais profundas. O complexo principal se compõe de massas de tamanho variado, que, em certos trechos se apresentam confluentes em larga escala, massas estas que são homogêneo-grumosas e que avançam diretamente até o epitélio. Elas apresentam-se atravessadas tão sómente por alguns raros capilares de grande calibre e repletos de sangue, bem como por alguns pequenos ramos arteriais isolados.
Examinando com maior ampliação verifica-se que os grumos acima referidos apresentam em algumas partes rasgos e fendas de ramificação irregular, intercalados nos mesmos. Estes grumos tomam a côr róseo-pálida pela eosina e coram-se em amarelo claro a amarelo pardo segundo o processo de VAN GIESON. Principalmente quando se encontram isoladamente, os rumos estão limitados por formações polinucleares que, em parte lembram o sincício, em parte se apresentam estratificados concentricamente, apresentando então restos nucleares fusiformes. Em outros pontos as massas homogêneas passam diretamente em transição para estas formações.
Muitas vezes impõe-se a impressão de que as células gigantes e sinciciais se encontrem sobrepostas diretamente aos grumos, apresentando estes então depressões que lembram as lacunas de HOWSHIP. Algumas das células gigantes apresentam até 50 núcleos, geralmente amontoados no centro.
Entre estes grumos situados isoladamente encontram-se ainda amontoados vultuosos de formações celulares, dispostos muito perto uns dos outros e que lembram elementos deciduais. Têm um nucleo bastante grande e arredondado, pobre em cromatina, colocado centralmente, em meio de um corpo protoplasmático largo e homogêneo, que se cora em róseo claro pela eosina. Esta parte do tecido, rica em células apresenta numerosos capilares finos e de paredes delgadas. Em certos trechos encontram-se entre as massas celulares acima mencionadas intercalados diversos grumos, geralmente de tamanho reduzido e em outo pontos os diversos elementos celulares confluem, formando formações maiores do tipo célula gigante.
BERGER denomina os grumos isoladamente situados de amiloide circunscrito. De acôrdo com êste autor não se trata aí de material de enchimento de cavidades, como é a opinião de outros autores mas antes de cortes feitos através de cordões hastiformes compridos. Quando se praticarem cortes em série, encontram-se ou um vaso distinto ou um amiloide composto por grumos finos e sem qualquer caraterístico especial.
Os cordões então observados se formaram por degeneração amiloide da parede dos vasos. As células da vizinhança, foram encontradas comprimidas e achatadas em consequência do crescimento expansivo da massa amiloide, tomando até o aspeto de endotélio. O próprio vaso encontra-se por assim, dizer obliterado pelas massas amiloides que enchem completamente a sua luz.
Encontra-se além disto com certa frequência fendas nos grumos amiloides, que contém restos nucleares e que constituem os restos da antiga luz vascular.
Passemos agora a descrever o nosso caso.
Tratava-se de um português de 57 anos de idade, que aparentava um bom estado de saúde geral. Não foi possível, em especial, descobrir qualquer processo supurativo crônico como elemento causal da doença que vamos referir.
Nove meses antes de vir ao nosso consultório êle observou que a sua voz perdia progressivamente a pureza, tornando-se áspera e quebrada. Não havia, todavia, dôres de qualquer espécie, nem a mínima perturbação da deglutição.
O exame laringológico revelou um pequeno tumor do tamanho de uma lentilha, situado na parte anterior da corda vocal direta e atingindo a comissura anterior. Removemos todo o tumor, de um golpe só, por meio de uma cureta dupla. A voz tornou-se imediatamente clara e a pequena ferida operatória sarou em pouco tempo sem tratamento especial.
Afim de excluir a possibilidade de um processo maligno, enviamos o material removido ao Prof. Moacyr de Freitas.Amorim para exame histopatológico e esse conceituado patologista nos forneceu o seguinte relatório:
Exame macroscopico : Pequeno fragmento de tecido medindo aproximadamente 5 X 5 X 4 ms. Tem côr avermelhada, superficie lisa e brilhante de um lado sendo a outra revestida por uma fina membrana de cor pardacenta. Consistencia firme.
Exame histologico.
Coloração hematoxilina-eosina.
Cortes em parafina em diferentes alturas de todo o material enviado, mostram pequena formação polipoide revestida por epitelio pavimentoso estratificado em parte queratinizado. O corion apresenta pequenos acúmulos de infiltração inflamatória por linfocitos e granulocitos neutrófilos. Proliferação de fibroblastos em alguns trechos com amontoados de pigmento hemosiderótico.
Toda a parte restante e profunda do fragmento é constituida por uma área arredondada, volumosa, de aspecto nodular, caracterizada pela deposição de grandes blocos ou traves de uma substancia hialina, fortemente corada em vermelho pela eosina. Na sua espessura vêm-se numerosas frestas ou lacunas vasculares, recobertas por endotelio, ora vazias, ora contendo eritrocitos. Pequenas hemorragias intersticiais em alguns pontos. Degeneração mucoide com a presença de células estreladas em alguns trechos de substancia- fundamental.
Diagnóstico: Amiloidose local poliposa ou tumoriforme do laringe, com a formação do chamado "tumor amiloide" do laringe.
Observações: Ausência de quaisquer sinais histológicos de proliferação de carater neoplástico maligno, no material enviado.
(1) Trabalho apresentado à Secção de O. R. L. da Associação Paulista de Medicina em 17-5-44.
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