ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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1114 - Vol. 14 / Edição 1 / Período: Janeiro - Fevereiro de 1946
Seção: Notas Clínicas Páginas: 59 a 65
GLÓMERULONEFRITE OTOGÊNICA
Autor(es):
DR. FRANCISCO DE PAULA PINTO HARTUNG

Des causes d'erreurs sans nombre peuvent se glisser dans nos observations, et, malgré toute attention et notre sagacité nous ne sommes jamais sûrs d'avoir tout vu, parce que souvent les moyens nous manquent ou sont très imparfaits.

Eis um dos pensamentos de Claude Bernard que a clínica, com frequência, nos confirma. Aparecem casos que exigem de nós muito mais raciocínio e discernimento para resolvê-los satisfatóriamente, porque a raridade dos seus comemorativos e circunstâncias não permite grande possibilidade de comparação com outros congêneres eventualmente conhecidos, nem faculta o recurso dos livros e dos clássicos, tal a pobreza da literatura e de citações a respeito. Taes casos proporcionam por vezes situações extremamente sérias. Exigem ponderação. Mas também resolução. Eis porque rememoramos a palavra oracular do glorioso fundador da fisiologia moderna.

Diz mais êle:

Un médecin qui observe une maladie dans diverses circonstances, qui raisonne sur les circonstances et en tire les consequences qui se trouvent controlées par d'autres observations, ce médecin fera un raisonnement expérimental, quoiqu'il ne fasse pas d'expériences.

Nesta segunda citação se cristaliza admirávelmente bem o seu determinismo filosófico. E mais ainda. Diz ele que não é só no laboratorio de fisiologia que se faz medicina experimental. Tambem a clínica a ela nos pode levar. Vejamos como, baseados nesta

OBSERVAÇÃO - E'simples e rápida. J. F. R., menino de 6 anos é trazido à consulta, a 7 de abril, porque se queixa de alguma dôr, que não explica bem si no ouvido ou em algum dente. Nada se vê de anormal à otoscopia. Talvez pois algum dente de leite precisando que se obturasse. Amigdalas de aspecto bom. Não há congestão nela ou nos pilares, mas conta a mãe que o pequeno costuma perder massas brancas vindas da garganta. Nariz normal e tambem sem interesse. Muito mais que o exame especializado importava a impressão do facies da criança, porque se notava edema em ambas as pálpebras. Por isso recomendámos que se obtivesse um exame de urina, além de enviar o paciente a um dentista. Dias depois se prova legitimidade da suspeita. Ha muito pús, e cilindros no sedimento urinário, além de albumina ao exame químico. Indicamos pois amigdalectomia. A 12 do mesmo porém, portanto 5 dias apenas após o nosso exame, somos chamados à residência do doentinho, porque ele agora se queixa de dores muito fortes no ouvido denunciado, mas no qual nada encontráramos no nosso primeiro exame. Além disso, temperatura de 39,5. Tímpano fortemente congesto e abaulado. Com a paracentese imediata, medicação tópica, compressas quentes e sulfamidas, melhorou muito o doente. A temperatura cedeu logo. Baixou muito, pelo menos por alguns dias. Provaram êstes fatos, que as suspeitas sobre o ouvido, que no começo havia, eram procedentes. Por imperfeições de exame, ou por despistamento da própria anamnese, uma vez que o menino tanto se queixava do dente como do ouvido, talvez algum sinal discreto nos tivesse passado despercebido.

Como dissemos,a paracentese foi feita a 12.Até 17 tudo ia bem, mas a 18 peiorou a situação. Outra vez apareceram dores fortes que se irradiavam da mastoide, apesar dabôa drenagem, e temperatura em ascenção.

Mas não só isso. Muito mais. Exame de urina, a 18 muito máu, tanto na cor , pela hematúria, como no exame do sedimento, com muito pús e cilindros demonstrados que a paracentese, por mais eficiente que fosse,em nada influira sobre os rins. No dia seguinte,19, mais ainda se agrava a situação, pois que aparece edema nas pálpebra, que já desaparecera, assim como no pulso e tornozelo. Temperatura a noite 38,6.Por isso, no dia seguinte, trepanamos a mastoide. Não hesitámos, apezar da pobreza dos sintomas otológicos, sem edema no ocnduto ou no plano mastoideo. Atendemos às condições renais e não as do ouvido. Aliás a mastoide por si justificava a operação apezar de seus 8 dia só de otorrea. Prova isso o ato cirúrgico. Antro e seus contornos, deformados, em grande cloaca. Muito fácil da curetar. Muito pús e granulações.

Mais uma vez a sulfamida tinha mascarado a situação. Ficou provado que a própria apofise justificava a trepanação independentemente das condições renais. Dizemos isto apenas para comentar mais uma vez o perigo do uso das sulfamidas sem o controle radiográfico. Mas não para justificar a operação que já se havia imposto pelas condições renais.

O resultado não se fez esperar.Tão depressa como a mastoide, ou talvez com mais rapidez, sarou o rim. A hematúria, que tanto impressionava, mesmo no olho nú, rapidamente perdeu o seu colorido. O sedimento foi mais devagar.Mas aos poucos tanto as hematias, como os leucocitos e cilindros, desapareceram do campo microscópio. Tambem assim a albumina ao exame químico. O edema dissipara-se logo após o ato cirúrgico.

Em pouco menos de um mez, teve o doente alta radicalmente curado, sem qualquer dieta ou precaução, já desnecessária.

Eis a observação. Como dela se depreende, não se trata de um simples caso de irritação renal, com traços de albumina e uma ou outra hematia com algum leucocito no sedimento, o fato tão banal em muitas afecções gerais. Na gripe por exemplo. O caso descrito refere-se a uma glomérulo-nefrite bem típica e caracterizada, com edema, hipertensão, muita albumina, sangue e pús na urina, que se instalou em um doente portador de uma ostomastoidite. Uma glomérulo-nefrite otogênica, portanto.

E' sabido que os casos mais freqüentes de glómérulone- frites, quando no complexo da infecção focal, têm nas anginas a sua origem. E' o que diz Volhard, da escola de Frankfurt.

Há tambem outras, cujos focos são dentário; outras mais têm nas piodermites o seu início. E' porém este um objeto por demais conhecido e que não permite delongas.

Às vezes, entretanto, são outros os complexos patológicos. Dificeis de provar e argumentar. Contudo existem. Tal é o caso de nefrite em mastoidite. Binômio clínico bastante raro, sem dúvida, mas ha citações na literatura, principalmente quando a nefrite se instala em seguida a uma simples otite sem comprometimento evidente da mastoide.

Lund em 1038 casos de otite media aguda assinalou albuminúria em 30 deles. Só se refere porém à albuminúria.

Löwy, entretanto, em 2047 casos de otite média só assinalou nefrite 4 vezes. Kollert cita apenas 2 casos, um em otite média aguda e outro em otite média crónica. Ambos os autores chegam à conclusão de que o ouvido póde ser o ponto de partida de infecção focal para os rins.

Ha tambem citações da literatura japonesa traduzida para o alemão. Okonoghi e Suzuki, em 350 casos de otite media assinalaram a nefrite 20 vezes. Depois de estudá-los pormenorizadamente concluíram eles: 1 - A evolução favorável da otite reflete-se da mesma forma na urina; 2 - O tratamento da otite é tambem aproveitado pelos rins; 3 - A antrotomia produz rapidamente o desaparecimento da albuminúria. Como se verifica, estes autores consideram o ouvido como foco primário, apezar de haver uma probabilidade de existência de um foco comum para ambos os orgãos doentes. Ha duas observações publicadas em um jornal de Nagazaqui, depois transcritas pela Zentralblatt. Uma menina de 10 anos é acometida de uma otite média aguda a estreptococus hemolítico.Depois de 12 dias de moléstia, aparecem edema no rosto, e, na urina, albumina, eritrocitos, leucocitos e descamação epitelial. Com a antrotomia, todos estes sintomas desaparecem. 2 - Uma mulher de 48 anos é afetada de uma otite média aguda. Como lhe surgissem edema e albumina, a paciente é operada de mastoide com 14 dias de otite. Sarou de tudo com muita rapidez.

Em 1016 casos de otite média aguda, Kindler conseguiu encontrar 21 nefrites, e em 1006 casos de otite média crónica, 2 nefrites apenas. Em apreciação geral sobre taes casos diz Kindler que se póde dividí-los assim: 1 - Casos nos quaes a nefrite apareceu imediatamente depois da otite. 2 - Casos que apareceram depois da otite, sem que tivesse havido qualquer intervenção em relação ao ouvido. 3 - Casos de nefrite que se seguiram a alguma intervenção otológica. 4 - Casos de nefrite, que surgiram após otites, mas nos quaes se demonstrou ter havido apenas exacerbação de processos renais antigos. 5 - Finalmente, casos que apareceram depois da otite curada. De acôrdo com a sua opinião, a possibilidade de uma otite ser responsável por uma nefrite, em complexo focal clássico é perfeitamente admissível. São as chamadas nefrites otogênicas. A seu ver o complexo se dá por uma tromboflebite ou por simples focos metastáticos. Aparecem em 2% de otites agudas e em 0,02 de casos crônicos. Diz Kindler ser uma contingência clínica mais comum em homens que em mulheres.

Em sua opinião, a gravidade da nefrite não depende da violência da otite. Em alguns casos, tanto a otite como a nefrite são subordinadas separadamente a outros focos patológicos, sendo porém mutuamente independentes entre si. E' o que se tem verificado no Impetigo Contagioso.Em geral, nestes casos de nefrite consequencia da otite, o rim sara mais depressa de que o ouvido, mas uma recaída otopática pode provocar uma recidiva renal. Kindler acrescenta mais que os exames bacteriológicos realizados não permitem ainda conclusões e que a indicação operatória para o ouvido não deve depender do estado do rim.

Um outro autor, Giese, divide as nefrites otogênicas em 3 grupos: 1 - Nefrites agudas em seguida a otite media aguda,que apareceram alguns dias ou semanas depois da otite, principalmente no decurso de alguma moléstia geral. Apezar de ser regra, nestes casos a nefrite se instala após alguma atuação cirúrgica sobre o ouvido. 2 - Caso contrário, no qual, depois de uma nefrite aguda, surge a otite. 3 - Otite e nefrite surgindo conjuntamente ou o nariz, por exemplo. Nesta eventualidade, o estado geral é máu e não se pode dizer que otite gerou a nefrite. 4 - Nefrite que aparece em otite média crónica.

Estudando bem pensamento de Geise se verifica que este autor tme mais tendência a acreditar que a concomitância patológica otite-nefrite se deve unicamente a uma casualidade q que se não pode provar que o ouvido tenha agido como ponto inicial de infecção focal. Outros autores porém pensam de modo contrário, aceitando a equação otite mais infecção focal egual à nefrite. De qualquer modo porém o próprio Giese, diz ser necessária a remoção do foco ótico, operando a mostoide si ela estiver comprometida.

Examinemos agora a indicação cirúrgica para a mastoide em taes emergências.

E' bem verdade que a trepanação da citada apófise tem a sua indicação própria. Autónoma, podemos dizer. Corrimento purulento do ouvido médio além do tempo natural de 3 a 4 semanas, febre, abatimento, dôr expontanea no ouvido e na apófise, dôr à pressão contra o plano mastoideo, edema atraz da orelha ou no conduto, pulsação atravez da perfuração ou do orificio da paracentese, perfurações umbelicadas, cessação brusca e inesperada do corrimento com hipertermia. Além destes fatores que se podem combinar de maneiras as mais variadas, uma radiografia que demonstre manifesta opacidade, ou destruição trabecular, todos eles enfim concorrem para que se tome uma atitude definida e concreta. Às vezes, o binômio febre dôr, em outros febre corrimento em abundância ou retenção. Quando abundante, apezar disto pode elevar a temperatura, tal a absorpção de toxinas. Na retenção, o próprio fato explica a febre. Em outros casos, é diferente o binômio patológico. Cedeu a febre, não ha mais dôr, mas o pús é em tal quantidade que demonstra corrosão da apofise, em cavernas e bolsas que não se resolvem sem cirurgia.

São ideias avulsas que nos ocorrem para chegar ao ponto colimado. Situações, contingências clinicas de todos os dias, conhecidas demais, principalmente, neste ambiente, experimentado e culto, mas necessárias a nós, para argumento e raciocínio, no sentido de separar as indicações próprias e autónomas da mastoide. Pois que nem sempre o caso é assim. Ha indicações outras, diferentes, independentes, ou que pelo menos não dizem respeito imediato à propria apófise. As meningites ontogênicas por exemplo. Gravíssimas, fulminantes, pelo menos antes das sulfas e penicilina, que exigem mastoidectomia ampla e exposição de dura, com qualquer aspecto clínico da apófise. Tambem nas otites crónicas são formais as indicações quando reagem as meningens. Os abcessos de cerebro otogênicos, de diagnostico tão difícil e traiçoeiro nas otites; os seios laterais, com os seus trombos, com ou sem metástases, nas perfurações marginais dos quadrantes posteriores. São fatores que ninguem discute, e que exigem trepanação. Ou um facial que dá alarme em uma otite em evolução. São todos casos bem conhecidos ou encontradiços, e que se explicam bem pelas relações diretas da apofise com as meninges, o cérebro, o seio venoso e o citado nervo craniano. Por continuidade ou contigüidade tudo se explica. Com o rim porém é diferente.

E' um órgão remoto em relação à apófise e daí o seu interesse e originalidade.

E como agir em taes casos, na emergência de mastoidite nefrite?

A literatura não é rica, já a vimos. No pouco que existe são evidentes as hesitações. Verdadeiros avanços e recuos.

O próprio Kindler, ao mesmo tempo que diz ser a hematúria abundante um fato suficiente para que se opere a mastoide, removendo o foco, ao mesmo tempo, termina o seu artigo, afirmando que devem ser os sinaes otiátricos e não renais aqueles que devem ser os sinaes otiátricos e não renais aqueles que devem orientar a indicação cirúrgica. A nosso ver, é evidente o erro. A tergiversação, pois que uma mastoide manifestamente doente impõe por si própria a trepanação, quer esteja comprometido ou não.

Já Kimey, porém, citado pelo próprio Giese tem outro pensamento, muito muito mais ousado e decidido. Nada de esperar eventuaes melhoras da apofise afetada. A mesma presteza que existe quanto a amigdala na escola de Frankfurt. abrir e logo, enquanto é tempo. Foi essa tambem a nossa atitude, mesmo sem conhecer as suas ideas.

Suponhamos, argumentando, que não fosse o ouvido o foco mais em evidência. E que amigdalas, estivesse enviando germes ou toxinas para o rim e ao mesmo tempo para o ouvido. Que mal havia em operar uma mastóide, embora pouco doente, mas que se evidenciaria um campo de particular fertilidade para os germens em cena, como que servindo de um tubo de repicagem para a cultura e desenvolvimento das bactérias, auxiliando e reforçando e agressão contra os rins?

Foi assim pensando que nos decidimos a operar logo. E que sarou o nosso doentinho, que sarou o nosso doentinho, sem çue muita importância déssemos, no instante, às suas amigdalas. Estas últimas só as viemos a operar, passado mais de um ano, sem o menor vestígio ou sequela de nefrite ou qualquer irritação renal. Muito mais em atenção aos ditames das ideas clássicas, uma vez que continuavam as massas brancas na garganta de um doente que fora nefritico no passado, de que por necessidade clínica.

Não se fez experiência, mas sim um raciocínio experimental, provocado pelas circunstâncias clínicas, segundo o pensamento do mestre da Sorbonne. Tanto a observação de outros, como os resultados práticos da cirurgia serviram de controle.

Apezar disto, alguém dirá empirismo. Contudo lembremos: "Je soigne les malades, mas Dieu les guérit".

Foi Ambroise Paré quem disse. E' bem conhecido o pensamento do pai da cirurgia.Claude Bernard, porém, é outro. Diferente. Nada de metafísicas. Apenas ciência pura, comprovada, experimentação. Determinismo. Cartesianismo. Todavia, mesmo assim, na sua cultura, prestígio imenso e posição incomparável na medicina moderna, é êle o primeiro a nos alertar contra as opiniões precipitadas, fruto da incredulidade exagerada e cepticismo.


Cependant dans sa marche à travers les siècles, la medecine a tenté d'innombrablés essais dans le domaine de l'evnpirisme et en a tiré d'utiles conclusion.




(*) Conferência realizada na Associação Paulista de Medicina (Departamento de Cultura Geral), a 27-11-1945.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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