S. Paulo
Vae para alguns mezes apenas, o mesmo proposito de hoje aqui nos trouxe: aproveitar as luzes do ambiente para focalizar a questão da otologia infantil, de posse de um caso concreto como material de observação. Que nos perdoem a insistencia os colegas, a que nos leva a sedução do assunto.
Antes de aborda-lo, porém, é oportuno reviver um judicioso comentario do Prof. João Marinho, quando, em apreciação sobre a literatura medica nacional, acusa um certo descaso de nossa parte, no tocante á citação de nossa propria productividade cientifica. O Professor tem razão. E' flagrante certa displicencia - esquecemo-nos uns aos outros com frequencia - atitude que contrasta com prodigalidade de citações alienigenas, muitas vezes de segunda ordem.
Fugindo pois a este erro, e aceitando o espirito de critica do eminente Professor, inicialmente diremos que a Paulo Sáes cabe o merito incontestavel de haver sido o primeiro a ressaltar, entre nós, a importancia dos problemas da otologia infantil, pondo em relevo as dificuldades a ela inerentes e clamando pela necessidade de novos estudos.
De fato, em 1926, Paulo Sáes, em contribuição á Semana Paulista de Oto-Rino-Neuro-Oculistica, dizia: "este estudo merece ser muito mais bem cuidado de que tem sido até hoje" (sic). Em 1940, dizemos nós que esta advertencia deve ser repetida na atualidade, porque, admitindo o aforisma francez citado por Marinho "que o estudo das otites latentes é um dos pilares da pediatria", teremos de concordar que em seus alicerces ha muito pouca segurança. Relembremos bem os fatos. Em 26, na otite latente, Le Mée, citado por Sáes, não foge á norma classica: tal como Rendu, limita-se á paracentese e á punção exploradora; só abre o antro si a otite e os seus reflexos gerais não desaparecerem. Em 40, a atitude é outra, e Le Mée, como Ramadier, Kopetsky, Huinininke e outros, não mais hesita. Acompanha a atitude extremada de Ribadeau Dumas, que recomenda a trepanação do antro como medida exploradora, em certos tipos de doentinhos que sofrem de dispepsias e diarréas, desde que seja bem demonstrada a ausencia de germens especificos nas fézes, e que não haja possibilidade de outras infecções focaes, taes como pielites, afecções pulmonares etc. Esta evolução de idéas demonstra bem o que foi dito, porque é evidente que estes nomes, todos eles de responsabilidade nas letras medicas contemporaneas, da Europa e Estados Unidos, não se abalançariam a tanto si não estivessem acordes na precariedade dos resultados otiatricos, quando se tratam creancas de tenra idade.
OTITE LATENTE. - Já tivemos oportunidade de criticar tal denominação. A otite em questão não é latente, porquanto, de uma maneira ou de outra, embora à distancia, ela se manifesta. Si são baldos os recursos otopediatricos, a otite entretanto, existe, e gera o sindroma de Ribadeau Dumas. Paulo Sáes em 26, descreveu-o, apresentando o quadro clinico. Com a sua anuencia, decalquemos as côres, para comentario e confronto.
De inicio, só chamam atenção ligeiras perturbações digestivas: diarréa, com queda de peso ou estacionamento; é de regra tambem a anorexia acompanhada de vomitos. A temperatura póde subir; dissemos póde, porque pessoalmente, temos assistido a casos quasi ou totalmente apireticos. Pulso sem interesse, de acordo com a temperatura. Posteriormente, a creancinha torna-se emagrecida, palida, de olhos fundos, facies doloroso, angustiado e abatido: dá a impressão nitida de um doentinho infectado e intoxicado. A's vezes, ha reações meningéas e encefalicas: convulsões, olhar fixo ou desvio dos globos oculares.
Dôr no ouvido, segundo os classicos, na otite latente, não existe ou é muito atenuada, devido ao grande diametro da trompa nesta edade. E' uma afirmação duvidosa, porque si a creança ainda não fala e não se queixa, recusa o seio ou a mamadeira para deixar em repouso os periestafelinos. Vacher quer dar importancia á sensibilidade do tragus. Poderá ter seu valôr em creanças ecepcionalmente calmas. Mas como esperar que uma doentinha já irritada pelo seu estado não proteste á pressão? Talvez mais concludente fosse comparar o protesto despertado contra o tragus ou algures, na cabeça ou no corpo. Diferença de calôr entre as duas mastoides é o sinal de Robertson, que não póde ser mais falho e inseguro. Por acaso o abcesso sub-periostal é raro na creança?
A otoscopia revela, segundo os autores: timpano sem brilho, amarelado, sem reflexo e ás vezes abaulado. Dizem, são sinaes patognomonicos. Poderão ser para amadores, mas de valor algum na pratica. Em verdade, quando se tem bôa visão do tímpano em taes edades, de 0 a 5 mezes, o que se aprecia com segurança será uma congestão. O resto é fantasia, naturalmente eceção feita de alguns casos.
Si, na realidade, taes sinaes tidos como patognomonicos, tivessem de fato seu valôr, não se explicaria a atitude de Rendu, propondo a paracentese e a punção exploradora. Tambem não se compreenderiam Dumas, Le Mée, Ramadíer e outros, que desiludidos com os meios otoscopicos trepanam o antro como recurso extremo de semiotica. Eis agora a
OBSERVAÇÃO: Anamnese - M. H., 6 mezes de edade, branca, brasileira. Deu entrada no Hospital da Cruz Vermelha Brasileira a 26-6-40. Antes estivera internada em uma créche, onde a mãe a havia abandonado com um mez de edade. Alimentada ao seio até tres mezes. Depois, Eledon. Ha um mez que toma leite de vaca. Na créche, tivera fenomenos de toxicose. Depois melhorara. Como se repetissem os sintomas de toxicose, foi removida para o Hospital. Chegou com vómitos e diarréa, sintomas que se atenuaram voltando a creança ao leite de peito. De novo dado Eledon, reapareceram os vómitos e a temperatura subiu para 38. Exame de urina e de pulmões totalmente negativos. Exame de fezes em andamento.
Exame otologico. A creança nos é enviada a 15 de julho, devido á temperatura e porque parecesse haver sensibilidade ao tragus. - Doentinha muito abatida, palida e de olhos fundos. Muito impertinente e irritada, rebela-se contra qualquer manobra no pavilhão ou em outro ponto da cabeça. Propriamente no pavilhão, nada se nota pela inspecção; mas atraz dele, encontra-se em ambos os lados uma zona de eczema, com a pele inflamada, humida e com ragadas. Este eczema, por si só, era mais que suficiente para manter irritada a doentinha. Ele entretanto não se propagava no interior do conduto, de modo que a otoscopia, tão dificil, ás vezes nesta edade, era particularmente facil. Tímpano sem o menor sinal de congestão em ambos os lados. Nem tão pouco abaulamento. Talvez brilho um tanto diminuido; sinal sem maior valôr, além d'isso bilateral.
De concreto pois, só o eczema, que foi medicado. Providenciou-se tambem sobre a alimentação. Nisto resumiu-se a nossa atuação no momento. Tratar do eczema e esperar. Aqui foi o erro.
Dias depois, avisam-me do Hospital, que a doentinha continua a peiorar, apezar da dieta e terapeutica. Vomitos, inapetencia, diarréa, febre 39,5. Tornámos pois a examina-la. No lado esquerdo, edema e descolamento do pavilhão. Flutuação evidente. Embora a otoscopia fosse a mesma, a operação se impunha.
Operação. Não ha razão de descreve-la. Apenas assinalar pús logo depois da incisão de Wilde. Depois, rebatendo mais o pavilhão para a frente, não foi dificil encontrar uma fistula em cima do antro. Alargamento e melhor drenagem muito facil, quasi que só a cureta. Antro, proporcionalmente muito grande, pela idade, cheio de pús e granulações. Depois de tudo bem limpo e curetado, drenagem de gaze, sem sutura.
Periodo post-operatorio. Não ha tambem razão para registro, mas, como se esperava, a temperatura de 39,5, caiu logo no dia seguinte para 37. Rapidamente entrou a creancinha em convalecença, mamando com regularidade e desaparecendo os vomitos e diarréa. E util relatar que, neste periodo depois da operação, a doentinha teve uma serie de furunculos; a temperatura então, subia um pouco, para voltar á normalidade, apenas drenados os fócos. Vimo-la ha um mez. Completamente bôa. Ganha no peso, com regularidade. Não vomita mais. Intestino bom.
COMENTARIO - Não póde ser mais significativo o presente caso. Não obstante o nosso interesse e sedução por taes problemas, errámos.
Foi porém um erro que, paradoxalmente, devemos considerar como preciso. Mais uma vez, demonstram-se as dificuldades da otologia infantil e a necessidade de novos esforços para resolver as suas incognitas e problemas.
Em que ponto, porém, houve falta ou negligencia?
Da analise das causas de erro, na pratica da medicina, conclue-se que ha, via de regra, dois grandes grupos principaes. Primeiro, falta de base geral, ou quando esta existe, deficiencia de conhecimentos especializados sobre determinado capitulo. Segundo, causas mais locaes, descaso pela anamnese, exames semioticos incompletos, apressados ou negligentes, conclusões precipitadas, confiança exagerada na propria intuição clinica, mesmo que amparada em sólida base cientifica. De qualquer modo porém, no caso em cheque, por evidentes que sejam alguns fatores, interesse e atenção, de certo, não faltaram, por implicitamente contidos em nossa disposição de espirito em face a este capitulo de patologia infantil. Encontramos taes casos, porque á sua procura andamos.
A causa essencial do erro, já o dissemos, residiu na coexistencia do eczema e inflamação secundaria. A dermatose por si, explicava protesto contra qualquer manobra no tragus ou pavilhão, quaesquer que fossem eventuaes condições do ouvido medio. Como concausa, a pobreza dos sinais otoscopicos, quasi nulos, desinteressando drenagem da caixa, não obstante o fator febre, em evidencia, mas em elucidação sob outros aspectos pediatricos. Esta doentinha tivera já a temperatura de 38° por mais de uma vez, que voltára a normal, acompanhando a melhoria das condições intestinaes.
Terminemos, porém.
E´, fóra de duvida que, casos desta natureza, taes como aqueles de Ramadier, Le Mée e Huinink, que conseguiu na Holanda, pela trepanação, salvar 6 lactentes entre 10 já moribundos, em consequencia de toxicoses geradas por infecção do ouvido medio, justificam plenamente a atitude ousada dos autores francêses, quando propõem, em taes emergencias, a antrotomia exploradora. No estado atual da questão, não ha outra alternativa, por que os numeros de Huinink são bastante convincentes. Si a semiologia é enganadora e os raios X impraticaveis para a incidencia deste obscuro recanto, urgem novos esforços em qualquer outra direção.
Não se percebe bem, entre elas, qual a melhor, mas fato é que os pequeninos têm direito e exigem mais defeza e garantia. Na incapacidade de acusar ou denunciar a verdadeira origem de seus padecimentos, só lhes resta clamar pela necessidade de mais estudo e dedicação, porém, em um campo neutro e autonomo, nos confins de otologia com a pediatria, onde um otologista-pediatra ou um pediatra-otologista, fugindo à atual rotina, desenvolvesse as suas atividades unica e exclusivamente em contato intimo, constante e diario com a infancia e os pequeninos.
De tal convivio e ambiente, maior apuro na experiencia e tirocinio clinico de certo redundariam, para compensar as falhas e deficiencias da atual otiatria e podermos cumprir o imperioso dever que se nos impõe de desvendar os segredos da patologia infantil.
(*) - Trabalho apresentado á Secção de O. R. L. da Associação Paulista de Medicina. em 17 de Setembro de 1940.
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