Florianópolis - Sta. Catarina
As observações trazidas por mim a êste Congresso, gravitam na orbita da Otite latente. Já não é ocioso insistir sôbre esta silenciosa entidade morbida, desde que Robert Randu, em um trabalho publicado nos "Anais de mólestias do ouvido e laringe" (1923), deu o seguinte alarme: "A imensa maioria dos médicos ignora que, em média, 90% dos lactentes. mortos nos hospitais, têm oto-antrite purulenta dupla, sem que nunca tenham tido corrimento dos ouvidos. Esta ignorância, (diz êle) é explicavel, pois que até 1921, nenhum tratado de patologia interna ou de medicina infantil fêz referências à otite latente".
Uma circunstância que me deixa surpreso, é a de que, com dois mil e tantos doentes fichados em Santa Catarina, só haja encontrado 5 observações autênticas de otite latente, pois não busquei os casos em que o ouvido dói, o otologista é o primeiro chamado e a paracentése é feita sob sua exclusiva responsabilidade. Não cataloguei estes ultimos. Sómente aqueles onde o pediatra chegou na frente, examinou, e nada encontrou, a familia pensa em tudo, menos nos ouvidos, e o doentinho deles não se queixa. Esta é que é a verdadeira otite latente. E ela é assim: - muda, surda, mascarada ás vezes por uma diarréia, por vômitos, temperatura em altibaixos ou em preamar, gastrites, enterites, bronco-pneumonias e outras lesões pulmonares, sem falar em muitas surdo-mudezes que andam a granel, pelo mundo fora, sequela da primeira.
Daí, a necessidade de um mais estreito entendimento entre os nossos pediatras e otologistas. Simbiose que traria uma diminuição da mortalidade infantil. Muitas crianças não iriam para o "outro mundo", e, quando fossem, iriam, pelo menos, com um atestado de óbito real, verdadeiro, e não com um diagnóstico sintomático apenas.
Não cairá fora de propósito, portanto, relembrar aos colegas a vantagem de pedir o auxílio do otologista cada vez que o seu diagnóstico não é seguro, ou fica sem proveito a sua terapêutica. Não há desdouro nem desaire para o pediatra que assim proceda, pois a patologia infantil começa pelas vias aéreas e daí para o mais.
O pediatra que, em frente ao seu doentinho, institivamente lhe baixou a lingua, não póde e não deve esquecer-se da possibilidade das otites.
E' MORQUIO quem o diz:
"Porque não se pensa suficientemente nas otites e porque a otoscopia não se pratica com mais frequência, o diagnóstico desta afecção aparece raramente na clinica e frequentemente é um achado de necropsia",
E FINKELSTEIN, a que ninguem ousará negar mérito, pois é êle um dos príncipes da pediatria moderna, assim se expressa:
"Admitimos a exatidão e o valor para a prática de tal noção e por observações exatas chegamos a conclusão de que há uma síndrome, cuja presença faz supor, com grande probabilidade, a existência de uma afecção latente do ouvido, e que se deve praticar a paracentáse dupla, e se o resultado não fôr satisfatório em pouco tempo, fazer a antrotomia bilateral.
Assim descreve êle a dita síndrome: - 1°) febre de aparecimento agudo, diarréia aquosa rebelde a todo tratamento dietático - 2°) vômitos de intensidade variavel, que se devem considerar de tipo cerebral, porque a punção lombar dá saída a bastante líquido céfalo-raquidiano e com tensão maior que a normal - 3°) perda de pêso muito rápida e invencivel.
Na operação ou na necropsia encontra-se pus dentro e em tôrno de ambos os antros. Todos os pacientes dêste tipo, que mão se trataram por intervenções cirúrgicas, faleceram; dos operados, certa proporção se salvou e sempre causa surpresa a notavel melhoria do estado geral depois da operação e a pronta, ás vezes imediata parada dos vômitos e diarréia".
Estamos muito longe do que observou o Prof. Lé Mée, nos Estados Unidos, em um Hospital de Crianças, de São Luiz (Missouri), a cargo do Prof. Mariot:
"Todo doente é normalmente fichado e observado em clínica médica e em clínica oto-laringológica, qualquer que seja a afecção em causa. As duas fichas, do pediatra e do otologista, estão á cabeceira do doente e servem de meio de liação".
Não é só; nos serviços de Wilcox, outro notavel pediatra americano, diz Le Mée:
"Todas as crianças são examinadas pelo oto-rino-laringologista, quer tenham ou não elevação de temperatura".
Weedwr, tambem de São Luiz, respondeu á enquête" de Le Mée, dizendo:
"Examino sistematicamente ensino aos meus alunos de pediatria, que o exame dos ouvidos deve constituir rotina na clínica infantil, da mesma maneira que o da garganta, coração e pulmões".
Estas citações foram emprestadas á tese de doutoramento do Dr. Rubem Amarante, assistente do nosso mestre prof. Sanson, intitulada "Oto-Antrite Latente na primeira infância". E' um magnífico trabalho, onde o Dr. Amarante precede á paracentese a punção exploradora da caixa, com a qual êle colheu assepticamente a flora microbiana do ouvido médio, onde é mais comum o pneumococo, depois o estafilo, vindo em seguida os estrepto e afinal os bacilos piociânicos. Por isso, disse Sargnon ser a oto-antrite provocada unicamente por pneumococos.
Acho que já é tempo de ler as minhas observações. Prometo, no entanto, enviar a cada congressista o meu trabalho, depois de torná-lo mais completo, pois o pouco tempo concedido a cada um de nós, é curto, embora justo.
Observação 1
Telmo A. 12 anos - registro 143 - residente Lages - 14-10-933
História: - chamado a Lages pelo Dr. Irineu Antunes (atualmente pediatra de renome e docente-livre na Faculdade de Medicina de Curitiba), porque o seu doentinho era portador de uma febre, havia muitos dias já, diagnóstico vacilante, de mastoidite latente. Dr. Moellmann, consultado pelo telegrafo, diagnosticara mastoidite de Bezold, dada a dôr que o paciente acusava no esterno-cleido-mastoidêo. Temperatura axilar não saía das casas 38 e 39. Dôres gastricas. Ausência de dôr nos ouvidos. Um cirurgião geral, havia feito uma paracentese do ouvido direito, sem melhoria para o paciente.
Exame: Rinoscopia anterior - mucosa nasal vermelha e úmida. Rinoscopia posterior: - adenoides. Faringe: - sem significação.
Otoscopia: O. D.: timpano vermelho em todos os quadrantes, principalmente ao nível do póstero-inferior, onde se vê uma pequena zona mais congesta, do tamanho de uma cabeça de alfinete (provavelmente da paracentese feita, sem técnica, anteriormente). O. E.: timpano sem vida. Apófise curta do martelo, com ligeira retração.
Mastoide direita: - indolor no antro e na ponta.
Mastoide esquerda: - indolor no antro e na ponta.
Pescoço: diafanoscopia do músculo esterno-cleido-mastoidêo, sem significação.
Tratamento: Paracentese dupla com Bonain. Dia 16-10-933: - secreção pouca no ouvido direito e enxuto o ouvido esquerdo. Alta: curado 12 dias depois.
Observação II
Selva R. (filha Emedino R.) 5- anos - registro 460 - residente em São Joaquim. - 18-1-935
Historia: recomendada do dr. Agripa Faria, porque está há 20 dias com temperatura axilar, sempre beirando 39°. Os exames clínicos feitos pelos Drs. Agripa e Irineu Antunes nada revelaram.
Otoscopia: O. D.: tímpano ligeiramente hiperhemiado. O. E.: tímpano terno.
Tratamento: Larga paracentese, abrangendo os dois quadrantes Antero e póstero-inferiores. 48 horas depois: secreção em abundância no ouvido incisado e, com isso, queda da temperatura. 23-1-935 - Drenando bem e ótimo estado geral. Alta: curada 15 dias depois. Observação III
Carlos E. 10 meses - registro 1.364 - residente em Florianópolis. - 8-9-937.
Historia: Chamado pelo Dr. Artur Pereira para uma otoscopia, porque a criança está fazendo uma curva de temperatura, tipo infecção, e os exames clínicos repetidos e de laboratórios nada esclareceram. Temperatura de 39°,39,5 e 40°. Não acusa dôr á palpação dos ouvidos. Dr. Moellmann, da mesma opinião. Outro médico disse ter encontrado um foco pulmonar, sendo de mister uma radiografia.
Otoscopia: O. E.: tímpano congesto e não abaulado O. D.: tímpano vermelho e abaulado
Tratamento: Indiquei paracentese dupla. A família não concordou alegando ter pena do pequenino que, aliás, não sentia nada para os ouvidos. Á tarde do mesmo dia: - o pai me procurou para fazer a paracentese indicada; porque a criança continuava com a mesma temperatura e não fôra possivel fazer a radiografia por falta de energia. Fiz paracentese do ouvido direito, deixando de praticá-la no ouvido esquerdo por insistência do pai e aquiescência do Dr. Artur. A' miringotomia, pus, logo após a incisão. 9-9-937 - Dormiu bem a noite toda e a temperatura caiu para 37,5. Se não descer de todo, abrir a caixa esquerda. 10-9-937 - Sem temperatura axilar. Tímpano esquerdo continua vermelho. Insisti na paracentese. 11-9-937: Chamado pelo Dr. Artur Pereira para abrir o ouvido esquerdo, porque a temperatura havia pulado a 40°. Fiz a paracentese esquerda. A' noite - temperatura axilar em 37,5. 12-9-937 - Sem temperatura; ouvido esquerdo tambem com secreção de aparência purulenta, e drenando bem. Curativos simples. Alta curado 20 dias depois.
Observação IV
Arno Luiz V. (filho Afonso V.) - 4 anos, - registro 1.818 - Residente em Florianópolis. - 30-10-938.
Historia: Chamado pelo Dr. Artur Pereira para ver um seu doentinho, que estava fazendo uma curva de temperatura, tipo infecção, e cujo exame havia sido mudo. Fazendo o seguinte quadro: 37 a 39, e durante o exame, a coluna prateada acusava 40°. Não sentia dôr nos ouvidos. Otosocopia: O. D.: tímpano congesto. Apagamento do triângulo luminoso. O. E.: idem
Tratamento: Paracentese dupla. Aceita, feita logo em seguida. 31-10-938 - Passando bem. Ouvidos drenando secreção de aparência purulenta. Temperatura não subiu mais. Alta: curado 8 dias depois. Observação V
Valesca V. (filha Laercio V.) - 1 ano - registro 1.897 - residente em Florianópolis.
Historia: chamado pelo Dr. Artur Pereira para examinar a sua doentinha, que está fazendo uma curva de temperatura de 40°., sem explicação clínica e pede uma leitura dos tímpanos.
Otoscopia: O. E.: tímpano congesto - sem abaulamento. O. D.: tímpano congesto - sem abaulamento.
Tratamento: indiquei paracentese dupla, que, aceita, é feita logo depois, sem anestesia. A' tarde: temperatura de 37,5 28-1-939: secreção purulenta em ambos os ouvidos. Sem febre. Alta: curada 10 dias depois.
CONCLUSÕES
I
Nas minhas observações, os tímpanos sempre apresentaram sinais patológicos.
II
A's vezes nenhum sinal se encontra para o lado da membrana obturadora da caixa, mas isso não invalida o diagnóstico e nem contra-indica a miringotomia.
III
E melhor fazer uma paracentese branca do que deixar passar despercebida uma otite.
IV
Perda de pêso, vômitos e diarréia (triade de Le Mée e Bloch) são sinais de alarme; e gastro-enterites já é complicação.
V
Sem a colaboração do pediatra e do otologista, não é possivel diagnosticar e tratar concientemente.
VI
Rematamos com Mario Ottoni de Rezende: "Somos dos que pensam que a correlação entre o oto-laringologista e o pediatra, é por tal modo intensa, que nenhum serviço clínico de criança deverá existir, sem possuir, anexo, um bom serviço de oto-laringologia, servindo não só aos primeiros anos de vida das crianças, como tambem, podendo alcançar os 7 e mesmo os 10 anos.
(*) Contribuição ao 1.° Congresso Médico de Sta. Catarina. Recebido pela Redação em 10-9-1940.
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