ISSN 1806-9312  
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1043 - Vol. 8 / Edição 1 / Período: Janeiro - Fevereiro de 1940
Seção: Trabalhos Originais Páginas: 43 a 50
OTITES E ENTERITES INFANTIS (*)
Autor(es):
DR. FRANCISCO HARTUNG

S. PAULO

Não ha especialista de ouvidos, que desconheça as dificuldades que surgem a miudo, na pratica da otologia infantil, principalmente, quando em exame, crianças de mui tenra idade. E, tendo em vista que a otoscopia perfeita é fundamental para o otologista orientar o pediatra, julgar-se-á da importancia de tal assunto, sobretudo depois que se vulgarizaram as noções sobre os complexos focais e que a idéia de otite latente ficou bem sedimentada.

Porque otite latente? Serão, de fato, otites, totalmente asintomaticas, ou o nome apenas traduz a imperfeição da otoscopia na criança?

Na realidade, ha o que ponderar. Quem se propuser a uma apreciação de conjunto sobre a especialidade nestes ultimos anos, chegará a um balanço positivamente animador. Vejamos.

Em 24, ouviamos do proprio Rutin que, das meningites otogenicas, morriam 99,9% dos doentes, e ainda que, aquele 0,01 que se salvava devia a sua vida a erro de diagnóstico! E hoje, em 39? Os casos de sucesso de terapêutica medico-cirurgica nas meningites são agora tão frequentes, que as suas observações estão se tornando enfadonhas. A quimioterapia não afastou, nem poderá afastar a cirurgia, mas não é sem entusiasmo que se compulsa a literatura medica da atualidade e se verifica a surpreendente melhoria do prognostico de tais casos , depois que se articularam os compostos sulfamidicos com o ultraradicalismo da operação de Neumann. E as apicites do rochedo? Como está se tornando vulgar o seu diagnostico. E' bem verdade, que a cirurgia petrosa ainda tem o que evoluir, porque as tecnicas aparecidas, Ramadier, Almour, Kopetsky, Tato ou Eagleton exigem certa virtuosidade operatoria para tais casos resolver; mas em compensação, depois que os raios X devassaram a ponta da piramide, ninguem mais esperará a paralisia do abducens para defender a meninge ameaçada. Como já vai, esbatido pelo tempo, o quadro classico de Gradenigo! E o cancer na especialidade, o cancer do laringe, uma das mais terríveis localisações das neoplasias? Não são incontestáveis os progressos de tratamento tanto em relação à roentgenterapia, como no tocante aos processos cirurgicos? Coutard não melhorou notavelmente a orientação moderna na cancerologia do laringe, separando de vez os conceres quê se devem irradiar daqueles para os quais dá resultado a cirurgia? Por outro lado, a cirurgia nasal tambem sofreu notavel evolução, porque na realidade, si não houve grandes conquistas de carater tecnico, depois da operação de Lautenschläger, que melhora as condições do ozenoso, em compensação os estudos sobre os estados alergicos e anafilaticos permitem hoje selecionar muito melhor os casos para operarem-se os septos e os cornetos, de modo a poder o cirurgião com muito mais base científica prometer ao operando qual será o futuro de sua respiração nasal. No capítulo das osteomielite do craneo, complicações tão graves das sinusites, tambem se percebe uma orientação mais definida. As cores do prognostico já são um pouco menos carregadas, principalmente depois que os ensinamentos de Furstenberg demonstraram que a cura das osteomielite é incompativel com operações economicas; ou se deslocam totalmente os tegumentos da testa para trepanar tudo, inclusive um centímetro de osso são, ou não se toca por fóra, e a quimioterapia dos sulfoconjugados poderá, as vezes, resolver satisfatoriamente a situação.

Nem sempre, infelizmente, temos razão a tais palavras de otimismo. Ha ainda recantos da especialidade, de muito pouca luz, onde não nos movimentamos com facilidade, seja porque apresentam reconditos até agora inexploraveis, ou porque resistam, pelas suas condições intrínsecas, às tentativas para a sua devassa. E' o caso da otoscopia nas crianças pequeninas. Eis aí um capítulo de técnica otiatrica que muito pouco ou nenhum progresso experimentou nestes ultimos anos. As dificuldades que se nos depararam ha vinte anos, continuam tais quais eram na época em que começámos. E provável que erremos menos, a custa da experiência e dos anos, mas não que a semiótica tenha melhorado daquele tempo para cá.

Fica a todos a impressão de que não se tenha procurado melhorar a otoscopia infantil. Este fato é digno de um comentario, por duas razões: primeiro, porque a bôa otoscopia na criança, principalmente no lactente, presta serviços incalculáveis tanto à pediatria como à otologia, e, segundo porque os pequeninos nos privam de um elemento de diagnostico de capital importancia que é a anamnese subjetiva.

E não ha otologista que se sinta sempre verdadeiramente à vontade, como acontece no adulto, ao examinar um doentinho de dias e quiçá de meses de idade. Não se póde comparar a garantia de um e outro exame.

Como já dissemos, não ha anamnése pessoal, nem é possivel obtê-la. A mãe suspeita que o seu filhinho tem ouvido doente. Suspeita porque? Porque chora, está inquieto, mudado, irascivel, não dorme e debate os bracinhos. As vezes, dá mesmo a impressão de levar a mãozinha a um ouvido. E é só. Com frequência tem febre. Otimo elemento, que justifica uma paracentese de indicação duvidosa. Mas quando não tem? E sabemos bem que otites ha sem febre, principalmente a pneumococus. Depois, a pressão sobre o tragus. Meio semiotico muito util nas criancinhas de temperamento calmo, sobretudo uma pressão comparativa, entre aquela do tragus e outras, em qualquer logar da cabeça. Perquirimos assim onde a repulsa é maior, contra o tragus ou algures? Mas por acaso, poder-se-á exigir que uma criança doente não se irrite e proteste contra tais manobras não dando direito a conclusões? Vamos então à otoscopia. Não ha otite externa, examinemos o timpano. Este tem um diametro muito pequeno ainda, e a sua grande inclinação sobre o plano sagital, diminue-lhe ainda mais a perspectiva. Muitas vezes, vemo-lo bem; em outras não, e isto é tudo o que ha de mais lastimável, porque da bôa inspeção do timpano poderia depender a resolução do caso. Limpemos melhor o conduto; pôde estar sujo de descamações, de umidade, e até de leite materno, usado com finalidades sedativas. Agora está limpo o conduto e a timpano tambem. Uma ligeira congestão aparece proximo ao martelo, ou sob uma fórma difusa. Será esta sintomática de uma otite média, ou apenas significa ligeiro traumatismo do estilete ou do proprio especulo. São estas as duvidas que assaltam a nós todos e das quais, como já fizemos vêr, ainda não nos foi possivel fugir. Uma solução para tais casos, evitando os erros decorrentes do traumatismo do proprio exame, seria uma espera de 24 horas para nova otoscopia. Mas, será recomendavel uma tal atitude, quando o grande Neumann era partidario da paracentese sistemática nos casos obscuros? Esqueceremos a rapidez com que o pús do ouvido médio invade o endocranio infantil? Não era sem razão que o saudoso mestre vienense dizia preferir errar 99 vezes, abrindo um timpano são de que deixar 1 só intacto, com a caixa comprometida.

Os raios X, que tão relevantes serviços prestam hoje em todos os setores da medicina, si são, às vezes, muito elucidativos no temporal do adulto, perdem por completo o seu valôr, quando o paciente é uma criança, porque a atrazada osteogênese desta não permite os clássicos pontos de reparo. Demais, sabe-se bem que temporal infantil, ainda dividido em suas tres porções petrosa, escamosa e anel timpanico possue relações topográficas totalmente diferentes daquelas existentes em idades ulteriores da vida.

E' esta, pois, a verdadeira situação da otologia e otoscopia infantil. Em muitos casos, bastante satisfatoria, em outros de resultado duvidoso, e em um terceiro grupo quasi totalmente impraticável. Daí a noção de otite lactente, que, a nosso vêr, nada mais significa que imperfeição de exame. Dizem, os tratadistas, que do assunto se têm ocupado, que não obstante o nome, este tipo de otites, têm todavia um timpano sem brilho e ligeiramente amarelo; mas, si casos ha, em que não temos bem certeza do que é timpano, porque apenas lhe divisamos o logar, como afirmarmos tais minucias?

Segue-se uma observação contendo estas realidades. Entra para a Santa Casa uma criança de nove meses. Adoecera dias antes, acometida de vomitos, diarréia, desidratando-se com extrema rapidez. Apezar dos cuidados terapêuticos e dieteticos segundo a orientação a mais moderna, as condições decaem de maneira alarmante. Os fenomenos de toxicose são evidentes, e de apatia entra em estado comatoso. A otoscopia nada permite afirmar sobre o ouvido médio, mas a paracentese, realisada, aparentemente sem indicação alguma, resolve rapidamente o caso.

OBSERVAÇÃO

Pavilhão Condessa Penteado. - Dr. J. Leme da Fonseca.

Oswaldo Romão, 11 meses de idade, de côr parda, brasileiro, natural desta Capital, residente à R. Toledo Barbosa 585.

Antecedentes hereditários. - Pai de 32 anos, brasileiro, operário, goza de bôa saude, não bebe. Mãe de 23 anos, brasileira. Não acusa abortos ou natimortos. Nunca teve molestias venéreas. Tem tres filhos vivos, e um falecido de causa ignorada. Avós sadios. Não ha tuberculose na família.

Antecedentes pessoais. - A gravidez decorreu bem, parto normal, a termo. Alimentação ao seio até 10 meses. Primeiros dentes aos 6 meses. Sentou-se aos 6 meses. Não teve-molestias infecciosas peculiares à infancia. E' uma criança sujeita a resfriados. Tem tido diarréias.

Entrou para o serviço a 12 de Junho de 39. Peso: 6 quilos,700 grs.

Molestia atual. - Ha 4 dias que está com tosse, um pouco de diarréia e vomitos., Tem emagrecido bastante estes dias.

Estado geral. - Criança emagrecida, desidratada e em relativa apatia. Dos exames procedidos nos diversos aparelhos, apenas se verificou leve congestão do faringe. Temperatura 36,2, e pulso, 124. Vomitos frequentes, evacuações numerosas e despóticas. Dieta hidrica, injecções de sôro fisiologico.

Dia 13. - Mesmas condições, mucilagem de arroz. Continuam os vómitos e evacuações diarreicas.

Dia 14. - Sem febre, não vomitou, continuaram as evacuações diarreicas. Acentuam-se a apatia, olhar vago, pele e extremidades frias. Mamadeiras de Eledon e creme de arroz. A enfermeira suspeitou de qualquer umidade no ouvido. Dão-se prontosil e cardiotonicos.

Dia 15. - Não tem febre. Continuam as evacuações diarreicas, vomitos novamente. Não houve supuração no ouvido. Ha sinais de toxicose. Pulso incontável. Impressão de estado comatoso. Nada no ouvido suspeito.

Dia 16. - O mesmo estado. Impressão de morte iminente. Chama-se um otologista para examinar o ouvido suspeito. Não ha exudato no conduto, apenas muita maceração. Mesmo depois de limpa-lo completamente não consegue divisar detalhe algum do timpano, que não é possivel perceber; sabe-se apenas onde ele está. De acordo com os conselhos de Neumann, é feita a paracentese. A agulha volta com pús em sua ponta, eventualidade rara. A noite, o pulso começa a tornar-se perceptivel.

Dia 17. - Impressão de ligeira melhoria, parecendo que a criança tenta voltar do estado de coma ou semicoma. O ouvido começa a purgar embora em quantidade mínima. Sôro glicosado e cebion. Temperatura de 36,5. Não houve mais vomito. Tres evacuações despóticas. A noite, 30 horas depois da paracentese, começa a criança a reagir, vencendo o estado semicomatoso, com impressão mais animada e interessando-se pelo ambiente.

Dia 18. - A criança volta definitivamente a si. Continuam as melhoras. Não houve mais vomitos. Evacuações com melhor aspeto. Começa a voltar o apetite.

Dia 19. - As melhoras continuam a evidenciar-se.

Dias, 20, 21, 22, 23, 24. - Idem, situação consolidada.

Dia 25. - Alta curado.

Esta observação diz bem da importancia do assunto tratado. Nada tem de original ou de rara, mas serve de justificativa para as divagações a que procedi.

I. Falta de anamnése. A mãe da criança não esteve presente, e as informações de enfermeira nunca têm o mesmo valor.

II. Ausencia de febre, elemento tão util em tais emergências.

III. Impossibilidade de exame externo pela pressão sobre o tragus: Aliás, si a criança não percebeu a paracentese, o que esperar da pressão sobre o tragus e a mastoide?

IV. Otoscopia, quasi totalmente infrutífera. Sabia-se bem onde estava o timpano, mas nada se precisava de qualquer detalhe.

V. Justeza do ditado de Neumann.

VI. Rapidez de resultado da paracentese.

Não ha pois necessidade de repisar este terreno, mas o que não padece duvida é que ele precisa ser melhor esquadrinhado, tanto pelo otologista como pelo pediatra. Nem é por menos que a tendencia moderna, principalmente na otologia francesa, recomenda ousadamente a propria antrotomia exploradora como meio de diagnostico e terapeutica. E, de fato, é uma atitude que se justifica, já que póde falhar o exame otoscópico, que a radiografia em nada auxilia e que os desvios hematologicos pódem conduzir-nos a interpretações erradas.

E' assim que Ribadeau Dumas, da analise meditada sobre tais casos, chega à conclusão de que em certos tipos de diarréia, afastadas outras possibilidades de infecção focal, tais como pielites e infecções pulmonares, e evidenciada a ausencia de germens específicos nas fezes, deve-se estabelecer como regra uma antrotomia, apezar de contrariar-se a opinião de Guillemot, quando diz ser muito dificil demonstrar residir na otite, a causa da diarréia. Ramadier empresta tambem a responsabilidade do seu nome a este criterio extremista; tanto para diagnostico como para finalidades terapêuticas, desde que os sintomas intestinais não cedam prontamente após a paracentese. Bloch e Le Mée, este ultimo tambem um laureado, afirmam ter bastante experiencia de tal pratica e mostram-se francamente otimista com os seus resultados. Kopetsky, outro nome fulgurante da otologia moderna, analisando tais casos, diz que, não ha razão para que nos Estados Unidos se pense de maneira diferente de que em França, em relação a este particular; diz ele mais que a antrotomia é banal na América do Norte, para resolver as complicações das otites, mas que a pratica da antrotomia exploradora é um processo que é preciso pôr em voga entre os seus compatriotas Ten Bokel Huinink, na Holanda, tambem é partidário do ponto de vista francês. Cita êle 10 casos de otite média purulenta, associada à diarréia e a outros sintomas de desnutrição. Em todos os 10 casos foi encontrado pús na mastoide pela antrotomia. Os microorganismos mais frequentemente encontrados pertenciam ao grupo pneumococus. Todas as crianças foram operadas já moribundas, e apezar deste fato, 6 foram salvas. Ten Bokel Huinink chega à conclusão que, quando não ha causa para os sintomas intestinais, mesmo que a miringotomia dê resultados negativos, deve-se proceder à antrotomia. Pois, si em se operando 10 moribundos, salvaram-se 6 crianças, este fato parece bastante significativo para justificar a pratica de alguns otologistas, que estabelecem a antrotomia como meio terapêutico, ainda mesmo que as condições do timpano nos levem a pensar que são normais a caixa e os seus anexos. Gyorgy, eminente pediatra de Budapest, estuda em uma série de casos, as condições do antro mastoideo, no lactente. Conclue ele que a inflamação do antro, com frequencia se estende para a circunvizinhança, gerando, muitas vezes uma osteomielite. Daí resulta uma intoxicação de todo o organismo, cuja unica solução é a terapêutica cirurgica. A este respeito Kopetsky volta a manifestar-se, mostrando quanto a literatura francesa é rica em tal especie de observações, e nas quais se preconisa a intervenção cirurgica. São observações que dizem sempre respeito a crianças muito novas. A sintomatologia, conclue Kopetsky, particularmente no seu aspeto septico, as metastases mediastinais, as reacções pulmonares, e os efeitos sobre o trato gastro-intestinal, justificam cabalmente uma tal atitude.




(*) Trabalho apresentado à Secção de O. R. L. da Associação Paulista de Medicina em 18-12-1939.
Recebido pela Redação em 18-12-1939.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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