S. PAULO
Corre, com relativa insistência, nas altas camadas, da sociedade que se diverte, uma doutrina capciosa, levantada em 1937 pelo DR. CALDEROLI, de Bergamo, Itália, em uma monografia a que intitulou "II problema tonsilares é problema demográfico", a idéia errada de que a amigdalectomia ocasiona, nas pessôas operadas, frigidez para o conúbio, podendo esta frigidez tocar as raias da impossibilidade absoluta de realização daquele ato.
Este medico procurava chamar a atenção da Governo italiano, para os perigos que poderiam sobrevir à Itália, com a possivel diminuição de sua demografia, pela continuação de intervenção cirurgica tão nociva.
Deste fato, não demonstrado, ainda, por experimentadores sérios, e propagado, ampla e inconscientemente, por pessôas mais ou menos interessadas e, acima disto, mais que menos ignorantes, é que deve ter surgido a idéia estúrdia de que a irradicação de uma parte minúscula do grande sistema linfatico, do organismo, poderia ocasionar a neutralização do libido. Si assim fôra, todos os que já não possuam os apêndices estariam no mesmo pé de igualdade, sendo este um orgão linfóide, tal qual a amigdala.
Além disto é preciso ficar claro que, até hoje, ainda não foi demonstrada qual seja a fisiologia das amigdalas. Nenhuma das inumeras teorias, criadas para explicar a função destes orgãos, foi aprovada, quer pela experimentação, quer pela clinica propriamente dita. O que delas se sabe, na certa, é que se infectam facilmente, e que, por isso mesmo, ocasionam, com frequência, molestias em orgãos distantes, e às vezes mortais.
Dentre estas podemos citar: as endocardites de toda especie; as glomerulo-nefrite agúdas; o reumatismo agúdo; a coréa (hoje enquadrada, tambem, entre as molestias subordinadas à sua infecção) ; as nevrites e polineurites, etc. etc.
Pertencendo ao anel de Waldeyer, a amigdala faríngea (vegetações adenoides), tal como as amigdalas palatinas, deve, tambem, como estas, ser incriminada do mesmo feitio, no entanto, ninguem pôde negar, com a consciência tranquila, os soberbos resultados, de sua cirurgia, especialmente nas crianças. E ninguem, nem nenhum medico, poderá citar o fato da esterilidade de um casal de adenectomisados e amigdalectomisados. E eles devem ser inumeráveis!!
O trabalho dó DR. CALDEROLI, cuja divulgação parece querer dar resultados funestos, afastando do cirurgião, os pacientes necessitados de uma intervenção que, inumeras vezes, lhes salvará as vidas, é baseado em concepção errônea. Este medico, que parece não ter compreendido a idéia, aliás discutível, do Instituto de Fisiologia de Saratow, fez afirmativas que foram contestadas pelo PROF. PIETRO CALICETI, de Bologna, e amplamente discutidas por grande numero de professores de oto-rino-laringologia italianos e estrangeiros e por inumeros clinicos, de renome, da Itália.
O proprio Governo italiano, por seu "Ufficio Centrale Demográfico Del Ministério dell'Interno" nomeou, para rever este palpitante assunto, uma comissão encarregada "do estudo dos efeitos da tonsilectomia sobre o problema tonsilar".
Desta comissão e dos resultados a que chegou, trataremos mais adeante.
Logo do aparecimento da monografia do DR. CALDEROLI, o secretario do Sindicato Medico de Bergamo, o DR. M. AMBIVERI, convidou, ao Dr. PIETRO CALICETI, Professor de Oto-rino-laringologia da Universidade de Bologna, a emitir seu juizo sobre ela.
Este ilustrado professor achou que não devia eximir-se da resposta, "não tanto pela questão científica que poderá sempre ser discutida, mas porque a publicação comporta um problema social de suma importancia, e para que, com o silencio, o publico não seja desviado de uma terapêutica sã e que foi conquistada, com esforço, por meio de trabalho árduo, realisado por gerações de estudiosos".
Eis a resposta do PROF. CALICETI:
"A publicação do DR. CALDEROLI, tendo em vista a fórma pela qual foi exposta e o modo com que foi lançada - como se as qualidades proliferas e a eficiência da Nação corressem grande e ingente perigo - certamente não é séria.
"CALDEROLI não faz mais que tornar suas, lançando-as, ao publico, com grande rumor e alarme, as idéias, muito discutíveis, do Instituto de Fisiologia de Saratow e a opinião comunicada, em Sociedade Científica oportuna, do PROF. MARSCHIK (que, ao contrario do que afirma CALDEROLI, não é o diretor da Clinica Laringologica de Viena) e que se limita a concluir: "que a tonsilectomia não é um ato operatorio de nenhuma importancia, como se diz".
"A discussão, sobre se as tonsilas são ou não glandulas de secreção interna, é velha de perto de 40 anos, e a grande maioria dos autores é contraria a tal modo de ver. Por conseguinte, a afirmativa de CALDEROLI de que, seguramente, as tonsilas são glandulas de secreção interna, é arbitraria.
"Sabemos, ao envez, com certeza, já ha dezenas de anos, pelos estudos anatomicos, Nisto-patologicos, terapeuticos e clínicos de CITELLI e de sua escola, confirmados por inumeros autores (MAFFEO, BASILE, CUSHING, DANA, CALICETI, PALUMBO, BRISOTTO, etc.), que, comumente, nos indivíduos, com hipertrofia da tonsila faríngea (vegetações adenoides), existe, pelas alterações que estas tonsilas podem provocar no lobo anterior da hipofise, e, por meio desta, em outras glandulas endócrinas, uma sindrome clinica, representada por torpor intelectual, deficiencia de memoria e de atenção, frigidez sexual, podendo chegar à impotência - sindrome adiposo-genital, como é denominado - e da qual se poderá evitar os grandes danos, pela extirpação das tonsilas, integrada, eventualmente, com a cura pelos preparados endócrinos. (CITELLI, BASILE, CALICETI, GARDINER-HILL, FOREST SMITH, ZONDEK e ASCHEIM, STEINACH e KUNN, LO CHAPIRO, etc.).
"Que logo após a tonsilectomia, sobrevem a impotência, ou quasi, como faz crer CALDEROLI, eu nunca observei e a literatura não menciona caso algum desta especie.
"Muitíssimos são, no entanto, os trabalhos, de todo o mundo científico, que demonstram a grande utilidade da tonsilectomia, nos casos em que as tonsilas são receptáculos de infecções e representam fócos permanentes de inflamações locais periódicas ou de molestias gerais.
"Pondere, então, o DR. CALDEROLI, com toda severidade, os dados científicos, sem bradar com alarme injustificadissimo. Exponha suas idéias e seu modo de ver em Revistas científicas e, possivelmente nas Assembléias e Congressos de Oto-rino-laringologia e, aí, se discutirá, como se faz com todas as questões, com a serenidade necessaria e com o espírito de responsabilidade, que cada medico, que trata de causa científica, deve assumir para com a Ciência e para com a Sociedade (assinado) PROF. CALICETI".
Por si só esta carta, do eminente PROF. CALICETI, bastaria para considerar encerrada a questão, mas o Governo italiano, com o fim de precaver a posição demográfica da Nação, no caso de as afirmativas do DR. CALDEROLI, serem veridicas e bem baseadas em dados científicos incontestáveis, houve por bem nomear uma Comissão, composta de uma pleiade de eméritos professores, de diversas Universidades do País, para dizerem, em minucioso relatorio, o que havia de verídico na Monografia do DR. CALDEROLI, de Bergamo, isto é, sobre qual fosse o efeito da tonsilectomia sobre o problema demográfico.
Esta monografia, de autoria de uru médico-cirurgião, residente em Bergamo, suscitou vivo debate, afirmando, com propaganda intensa "que a extirpação das tonsilas palatinas ocasiona uma repercussão sobre o organismo e produz desvios psiquicos, mortificação do instinto sexual, aumento de peso, de volume, envelhecimento precoce, esterilidades, etc., isto é, associa o problema da tonsilectomia ao problema demográfico".
Para fazerem parte da referida Comissão, foram convidados pelo Ministro do Interior, e atravez de seu "Ufficio Centrale Demográfico", os seguintes Professores: FRUGONI, diretor da Clinica Medica da Real Universidade de Roma, L. SPOLVERINI, diretor da Clinica Pediátrica da R. U. de Roma, G. VIDAU, diretor de Clinica Oto-rino-laringologica da R. U. de Roma, G. FERRERI, diretor da Clinica Oto-rino-laringologica da R. U. de Perugia e Primario dos hospitais reunidos de Roma, C. A. TOR. RIGIANI, primario Oto-rino-laringologista, dos hospitais reunidos de Florença.
Esta Comissão foi convidada a elaborar um parecer técnico científico sobre o seguinte quesito: "Se a extirpação total das tonsilas palatinas e das vegetações adenoides, produz, ou não, uma ação maléfica sobre o desenvolvimento do organismo das crianças, sobre a sua capacidade intelectual e energética, com vista especial às funções sexuais e à fecundidade dos operados".
A Comissão resolveu examinar a literatura medica mundial, consultar suas estatísticas operatorias, procurar aos operados, afim de melhor conhecer os efeitos, à distância, da intervenção cirurgica e, ao mesmo tempo, obter, na Itália e no extrangeiro, o maior numero de informações junto aos centros medicos e hospitalares de reconhecida reputação e criterio.
O controle extendeu-se a alguns milhares de operados, de idades as mais variadas, crianças, operados no período de puberdade e adultos. Indagações foram feitas, não só junto às clinicas, hospitais e casas de saúde especializadas privadas, mas tambem em algumas secções da' Força Armada do Estado, requisitando informações sobre a mobilidade dos doentes portadores de amigdalites cronicas.
Resolvendo por unanimidade, a Comissão afirmou que a tonsilectomia:
"1.º - Não produz nenhum distúrbio sobre o desenvolvimento físico e psíquico do organismo infantil;
"2.º - Não ocasiona nenhuma alteração sobre a capacidade intelectual e energética do operado adulto;
"3:º - Não comporta nenhuma ação maléfica sobre as funções sexuais e sobre a fecundidade dos operados.
"O que foi confirmado pela constatação de que muitos operados de tonsilectomia, indivíduos de ambos os sexos, tiveram prole e numerosa, e que não apresentam índice algum de doenças constitucionais, nem taras hereditárias.
"Finalmente, afirmou que, na Itália, o processo seguido é o da extirpação total das tonsilas, quando estas apresentem um estado inflamatorio cronicos, nos quais as tonsilas, decididamente, deterioradas em suas funções, constituem fócos patogenos para o organismo e, assim, são causa de varias molestias.
"No que se refere, por conseguinte, a cirurgia das vegetações adenoides, a Comissão, não pensa ter necessidade de acrescentar nada de novo, constituindo problema definitivamente resolvido, ha muito tempo, e com resultados práticos grandemente controlados".
E, quando não baste este ato oficial, ditado com grande elevação de vistas, e por personalidades impares do meio científico italiano, depois de esgotado o estudo da questão, em todas suas facetas, o PROF. CAMILLO TORRIGIANI, de Florença, apresentou ao "Congresso Internacional de Oto-rino-laringologia ', reunido em Salsomaggiore, um relatorio, sobre a mesma questão, no qual, "depois de um breve esboço sobre a fisiologia das tonsilas e do tecido linfatico da faringe, faz uma revista crítica das molestias que afetam estes orgãos e discute as indicações cirurgicas. Trata, mais longamente, das tonsilopatias cronicas, das quais descreve os caracteres, ilustrando as razões pelas quais são tidas como causas de infecções graves, com lesão dos rins, das articulações, do coração e de outros orgãos importantes. Menciona as varias possibilidades terapêuticas, demorando-se sobre a extirpação cirurgica do tecido doente que, no caso, agora mais que nunca, deverá ser total.
Descreve as reacções que se seguem à intervenção e seus resultados tardios baseados, não só nos dados fornecidos pela literatura, como os de sua estatística pessoal".
O problema foi discutido pelos seguintes professores estrangeiros: VON EICKEN, LEMAITRE, VOSS, BELINOFF, DELIAM, KELEMEN, St. CLAIR THOMSON e pelos italianos: Professores CALICETI, VIGI, FERRERI, TORRINI, CALAMIDA, CITELLI, LUGLI, DE CIGNA, BOMBELLI.
"Todos os oradores apresentaram estatísticas amplas e documentadas de milhares de indivíduos, operados de tonsilectomia, ha mais de ano, e beneficiados pela intervenção, sem, no entanto, apresentarem afecção alguma a cargo das funções sexuais endócrinas.
"Nesta altura o DR. CALDEROLI expõe sua teoria referente aos malefícios causados pela extirpação das amigdalas.
"O PROF. PENDE, depois de ter passado em revista o lado clinico geral do complexo problema, conclue dizendo que se um prejuízo puder sobrevir às glandulas endócrinas, advirá não da extirpação das tonsilas, mas da propria patologia tonsilar (ex.: a doença de Basedow).
A sessão foi suspensa depois de aprovada a seguinte ordem do dia, proposta pelo PROF. PENDE:
"O Congresso Oto-rino-laringologico de Salsomaggiore, após ampla e serena discussão, documentada de casuística riquissima, de todos os componentes italianos e europeus, sobre as indicações precisas e os efeitos das extirpações das tonsilas, aprovou, unanimemente, o princípio de que a tonsilectomia total é indicada, e indispensavel, em todos os casos clinicamente infectados por fócos infectantes, ficando a terapêutica dos casos de hipertrofia tonsilar constitucional, bem como os de tonsilites catarrais e parenquimatosas benignas, a ser resolvido, de caso para caso, de acordo com o exame e diagnostico do doente. A tonsilectomia total praticada, até hoje, em milhares de casos, com indicação clinica justificada, resultou eficaz, no sentido de cura e de prevenção de doenças graves e, além disto, sem qualquer efeito maléfico, tanto sobre o desenvolvimento físico e psicológico do organismo, como sobre as funções glandulares endócrinas. No que se refere às vegetações adenoides, a cirurgia permanece, sempre, de alto valor nos numerosissimos casos de indicação evidente".
Aqui está exposto o que ha e o que houve sobre o assunto que, tardiamente, e incompreendidamente, preocupa uma parte de nosso meio social, levada a este termo, pelo desconhecimento da materia, propagada ou por interessados perversos ou por "blaguers" que só se apercebem das cousas pela rama e as aprofundam de acordo com seus cérebros doentios
Assim sendo do que ficou dito se conclue:
1.º - Que a amigdalectomia é operação de indicação formal e, por vezes, de carater vital para o paciente.
2.º - que não ocasiona perturbação alguma, quer sobre o físico, quer sobre o psiquico dos operados.
3.º - Que a extirpação total das amigdalas não produz ação maléfica de especie alguma sobre as funções glandulares endócrinas e que deste modo:
4.º - Não póde influenciar, de qualquer fórma, as qualidades sexuais e proliferas dos indivíduos operados, não tendo ação alguma sobre o libído.
(*) Trabalho apresentado à Secção de O. R. L. da Associação Paulista de Medicina em 17-11-1939.
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