Se Beethoven vivesse nos dias atuais, teria êle possibilidades de recuperação auditiva?
A resposta a esta pergunta féz com que realizássemos uma longa pesquisa com o objetivo primordial de investigar sôbre a possibilidade de, nos dias atuais, determinar que tipo de surdez teve Beethoven. A bibliografia sôbre o assunto é vasta e várias hipóteses tem sido aventadas, a maioria baseada em cartas que o grande mestre legou, cujos dados principais analisaremos ulteriormente.
O fato indiscutível é que a determinação exata do tipo de surdez sòmente seria possível com o exame de seu osso temporal, e isto na hipótese de tratar-se de otoesclerose, uma vez que as exostoses ósseas poderiam ser perfeitamente identificáveis.
Em Viena, no mês de dezembro de 1265, iniciamos a pesquisa bibliográfica sôbre o assunto. Inicialmente constatamos que os restos mortais de Beethoven não mais se encontram no Währinger Friedhof, onde foi enterrado em 27 de março de 1827, e sim no Zentral Friedhof, para onde foram transladados, juntamente com os restos mortais de Schubert, em 22 de junho de 1888.
Em 13 de outubro de 1863, a pedido da direção dos Amigos da Música de Viena (Gessllschaft der Musikfreunde von Wien)1 os restos mortais de Beethoven e Schubert foram exumados no cemitério de Währinger, na presença de várias pessoas. Constatou-se na ocasião que faltavam ambos os temporais, confirmando a crença generalizada de que o Dr. Johan Wagner, na necrópsia realizada em 27 de março de 18272 havia removido parte do crâneo do mestre. Outros afirmavam que todo o crâneo de Beethoven não existiria mais, pois também era crença generalizada de que havia sido furtado. O laudo da necrópsia, à luz dos conhecimentos científicos é insuficiente, pois na parte referente ao osso temporal citai: "O conduto auditivo externo, sobretudo ao nível do tímpano, estava espesso e recoberto de escamas brilhantes. A trompa de Eustáquio estava muito espessada, apresentando uma mucosa edemaciada e um pouco retraída ao nível da porção óssea. Para diante de seu orifício, na direção das amígdalas, nota-se a presença, de pequenas depressões cicatriciais. As células visíveis da apófise mastóide apresentavam-se recobertas de mucosa fortemente vascularizada e, na totalidade do rochedo, aparecia, semeada por marcada rêde sanguínea sobretudo ao nível do caracol, cuja lâmina espiral parecia levemente avermelhada. Os nervos da face eram de espessura considerável. Os nervos auditivos, ao contrário, adelgaçados, desnudados de substância medular. Os vasos que o acompanhavam, esclerosados. O nervo auditivo esquerdo muito mais delgado, saía por três ramos acinzentados, muito finos, enquanto o direito era formado apenas por um só cordão, mais forte e de um branco brilhante".
Como se vê, pouco ou nada informa quanto à cavidade timpânica e cadeia ossicular, elementos de maior interesse. Ao afirmar que o nervo auditivo direito era constituído de um só ramo mais forte e branco-claro, supõe-se que tenha havido má interpretação dos achados. No entanto, como afirma Romain Rolland,2 é a única descrição que existe sôbre o osso temporal de Beethoven, e daí seu valor, mais histórico do que cientifico, e mesmo assim, o original não existe mais, e a cópia que transcrevemos é de Seyfried, que foi reproduzida por Theodor Frimmel4. Restaria ainda investigar sóbre a localização dos ossos temporais do mestre. Em Viena encontramos com a Dra. Euler-Rolle, que fez extensa pesquisa sôbre o assunto, a pedido do Prof. Sourdille, cujos familiares pretendiam publicar seu livro em fase de elaboração. Informou-nos a Dra. Euler-Rolle que os temporais de Beethoven não mais existem, pois todas as investigações levadas a efeito neste sentido foram infrutíferas. Assim sendo, a única possibilidade de determinação da etiologia da surdez de Beethoven também deixa de ser plausível. De nada valeria uma nova exumação, o que aliás já foi levado a efeito em diversas personalidades. O Dr. Hermann Schaffhausen, de Bonn, exumou no ano de 1882, em Roma,5 o crâneo de Rafael, e após os estudos necessários publicou um trabalho: "O crâneo de Rafael - em comemoração ao 4.° centenário do nascimento de Rafael Santis" Cohen - 1883.
O mesmo Schaffhausen, em 1880, em Bonn, exumou o crâneo de Robert Schumana, levando-o para sua residência, onde fêz diversos estudos fotográficos. E ainda referente ao próprio Dr. Schaffhausen, êste lamentou, em carta dirigida ao Dr. Gehrard von Breuning, não ter sido de seu conhecimento a exumação de Beethoven em 1863, pois ele teria viajado de Bonn para Viena a fim de realizar estudos no seu crâneo. Deduz-se daí, que mesmo decorridos séculos após a morte de ilustres personalidades, seus restos mortais ainda tem valor histórico e científico inegável. Seria então o caso de propor às autoridades de organizações competentes, a proteção aos restos mortais de personalidades contemporâneas, a fim de que os futuros pesquisadores não encontrem barreiras intransponíveis a seus estudos.
Restaria ainda algo sôbre a possível etiologia da surdez de Beethoven. As cartas que escreveu a Amenda em junho de 1801, ao Dr. Wegeler em 29 de junho de 1801 e novamente ao Dr. Wegeler em 16 de novembro de 1801, além do testamento de Heiligenstadt, de 6 de outubro de 1802, trazem descrições sôbre seus sintomas que são uma verdadeira anamnese de um otoesclerótico em certos trechos. Vejamos, na carta a Amenda: 1) "Já naquela época, quando ainda estavas comigo, eu notei vestígios dela (a surdez) mas calei-me; e não contes para ninguém, quem quer que seja." Exatamente de acôrdo com a psicologia do surdo: esconder seu mal enquanto lhe fôr possível.
Na primeira carta a Wegeler6: "Meus ouvidos zumbem e apitam noite e dia (é o acúfeno que está presente na maioria absoluta dos otoescleróticos). "Há quase dois anos que eu recuso tôda a companhia, porque para mim não é possível dizer às pessoas: eu sou surdo", (é o isolamento social tão freqüente nos otoescleróticos e raro nos pacientes que são portadores de outros tipos de hipoacusia), "Os sons mais altos (agudos) dos instrumentos, vozes de cantores, se estou um pouco longe não ouço". (esta frase já foi interpretada como melhor audição para os sons graves). No entanto o mesmo fenômeno ocorre nos otoescleróticos portadores de surdez mista, com forte queda nos agudos). "Na conversação é de admirar haver pessoas que jamais notam (que ele é surdo) ; uma vez que sou muito distraído e assim me tomavam" (é bem possível que já nesta época tivesse desenvolvido rudimentos do labio-leitura). "Algumas vezes eu ouço os falantes, aqueles que falam baixo, pouco, os sons, sim, mas as palavras mal" (isto significa que discriminava mal, o que é comum entre os otoescleróticos, portadores de surdez mista).
Na segunda carta a Wegelere: "É verdade, eu não posso mentir, os zumbidos e apitos estão mais fracos do que comumente, principalmente no ouvido esquerdo, no qual na realidade começou minha doença". Aqui encontramos dois aspectos característicos do otoesclerótico. Em primeiro lugar o fato da afecção ter iniciado primeiro num ouvido, o que ocorre na maioria deles, para não dizermos em todos, em segundo lugar, a diminuição dos acúfenos, justamente no ouvido em que iniciou a surdez. Todos sabem que na evolução da otoesclerose os acúfenos cedem com os anos e inicialmente no ouvido pior.
No manuscrito de Fischoff cita-se que em 1796, quando Beethoven chegou suado em casa, abriu tôdas as aberturas e esteve seriamente doente, provàvelmente com gripe, e este seria o início de sua surdez. Também em carta ao pianista Charles Neate, Beethoven fala em queda na residência, diante de uma visita desagradável e inesperada. Os médicos da época haviam diagnosticado trauma do nervo acústico. Parece-nos que a preocupação do mestre em relacionar o início de sua afecção com circunstâncias que justificassem uma possível etiologia, está perfeitamente de acôrdo com as informações dos otoescleróticos contemporâneos. Todos sabemos quão freqüentes são os relacionamentos com resfriados, gripes, acidentes e em menos freqüência outras causas, com o início dos sintomas.
Seria longo demais para estas breves considerações estabelecermos uma análise crítica dos outros diagnósticos, com o catarro tubário, otite média, labirintoesclerose - heredo sifilítica, atrofia do nervo acústico e outras tantas de tantos autores como Marage, Escat, Heiman, etc. Preferimos aceitar a opinião de Francisco Hartung (A surdez de Beethoven) e de Georges Canuyt, "La surdite de Beethoven", ambos defensores da etiologia otoesclerótica.
Antes de encerrarmos nossos comentários, gostaríamos de deixar assinalados nossos agradecimentos à colaboração prestada pelas palavras amigas do Dr. Otacilio de Carvalho Lopes, cujo estímulo não nos deixou esmorecer na fase inicial do trabalho: aos Prof. José C. F. Milano e Prof. Eduardo Faraco pela apresentação ao Itamaraty (conselheiro Hélio Scarbôtolo, da Divisão Cultural); ao Sr. Rudolf Egger Moelwald, cônsul austríaco em Pôrto Alegre, pela apresentação ao Ministério das Relações Exteriores da Austria e aos Srs. Harald Goertz, presidente da österreichische Geselischaft für Musik, Prof. Franz Eibner, da orquestra filarmônica de Viena e Padre Klemens Koberger da Wianer Beethoven Gesellachaft, cujas informações e colaborações foram decisivas na coleta destes dados históricos.
SINOPSE
Na resposta à pergunta sôbre a possibilidade de determinar-se atualmente o tipo de surdez de Beethoven, o autor, após considerações históricas em tôrno dos seus restos mortais, conclui sôbre a impossibilidade, uma vez que os temporais do mestre não mais existem. Segue-se uma análise das cartas que Beethoven escreveu e conclui pela hipótese de otoesclerose mista em concordância com outros autores. Finalmente faz um agradecimento a todos aquéles que prestaram sua colaboração nas suas Investigações.
SUMMARY
In answer to the question -about the possibility to determine the kind of Beethoven deafness, the author after historic considerations about his remains, concluded about the impossibility, once that the master's temple banes don't exist any longer. There follows an analysis of the letters, which Beethoven had written and he concludes about the possibility of mixt otoesclerosis in according with others authors. He finaly thanks all thore who gave their cooperation in bis investigations.
BIBLIOGRAFIA
1. Wien, Carl Gerold Verlag 1863 - Actenmäsige Darstelhing der Ausgrabung una Wiederboisetzuag der irdische Reste von Beethoven und Schubert. 2. Rol Romain - Beethovens Meisterjahre. Im Insel Verlag, 1930. Obluctionsberielit, pág. 201. 3. Lopes, Dr. Otaciclio de Carvalho - O tempo e a revolta de Bethovem. Ed. Leitura, 1961. 4. Frimmel, Theodor - Beethoven Handbuch Leipsig, Breitkop und Härtel, 1926. 5. Von Brenning, Gerhard - Aus den Schwarzpanier haure (Erincrung an 1. von Beethoven sus seiner Jugenzeit). Neudruck, 1907. 6. Kerner, Dieter - Krankheiten Grosser Musiker. Fridrich - Schattauer - Verlag Stuttgar, 1963.
* Chefe do serviço de ORL do Hospital Ernesto Dornelles - Parto Alegre - Brasil-
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