ISSN 1806-9312  
Sábado, 27 de Abril de 2024
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1018 - Vol. 37 / Edição 3 / Período: Setembro - Dezembro de 1971
Seção: - Páginas: 265 a 270
Flora Bacteriana Aeróbia do Meato Acústico Normal. Função do Cerume*
Autor(es):
Marcos Grellet 1,
Nelson Alvares Cruz 2
Carlos Solé-Vernin 3

Interessou-nos estudar a flora bacteriana do meato acústico externo normal, 1.º - devido à necessidade de seu conhecimento para avaliar a relação com as otites externas; 2.º - para verificar a possível importância do cerume no desenvolvimento da flora normal e patogênica.

Material e Métodos

Os pacientes são adultos, de ambos os sexos, tomados ao acaso, moradores dá Ribeirão Prêto e circunvizinhanças, do Ambulatório de Otorrinoloringologia, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto da Universidade de São Paulo, que o procuravam por outros motivos que não otite (a saber: sinusite, faringite, amigdalite ou ainda outras doenças da especialidade).

O material foi obtido separadamente da porção óssea e da porção cartilaginosa de ouvidos externos normais, quer quanto à sintomatologia, quer quanto à otoscopia. Colhemos êste material indiferentemente de ouvidos externos direito e esquerdo.

A técnica para a colheita do material foi a seguinte: com zaragatoa estéril, umedecida em solução salina estéril, fazíamos esfregaço da pele da porção óssea do meato auditivo externo e levávamos a zaragatoa para o interior de seu tubo de ensaio. A colheita do material da pele da porção cartilaginosa seguia os mesmos passos técnicos, com uma segunda zaragatoa.

O plantio do material foi feito diretamente (sem alguma forma de enriquecimento), cada caso semeado em 3 meios de cultura em placas: ágar-sangue (para de bastonetes gram negativos) e Chapman (para cultura de Staphylococcus aureus). Reservou-se a metade de cada placa à porção óssea e a outra metade, à porção cartilaginosa do meato acústico externo. A incubação das placas foi feita sempre em aeroblose. Os resultados só se consideravam negativos após 48 horas de incubação. Fêz-se a avaliação quantitativa da presença de bactérias classificando as placas pelo número de colônias desenvolvidas em: * (poucas colônias), ** (quantidade média) e *** (numerosas colônias).

Resultados

A flora do meato acústico externo normal em sua porção cartilaginosa e óssea (Tabela 1) foi constituída pelo Staphylococcus epidermidis ('Flora não patogénica) e Achromobacter sp., Proteus mirabilis, Staphylococcus aureus e Fungos leveduriformes (Flora patogénica), éste último um fungo do género Cándida que cresce prontamente no meio de cultura Agar-sangue.

O número de casos (42, Tabela 1) em que encontramos germes não patogénicos (Flora normal), representa a grande maioria em relação ao número de casos (12, Tabela 1) que apresenta germes patogênicos.

Na porção cartilaginosa se encontram as glândulas ceruminosas, que secretam o cerume. Os germes não patogênicos (ao contrário dos eventualmente patogênicos) parecem encontrar uma barreira (cerume) que os impede muitas vezes de adentrar à porção óssea do meato acústico externo. Verificamos pelas tabelas 2 e 5 que os germes se encontram em alta porcentagem na porção cartilaginosa e em média porcentagem na porção óssea.

As tabelas 3 e 6 estudam a distribuição da flora patogênica, aonde observamos que esta flora se distribue em proporção aproximadamente semelhante nas duas porções, cartilaginosa e óssea.

A distribuição da flora não patogênica nas Tabelas 4 e 7 mostrou que em alta percentagem dos casos os germes se encontram na porção cartilaginosa e que só em pequena porcentagem dos casos êsses germes conseguem passar para a porção óssea.

TABELA 1 - FLORA BACTERIANA AERÓBIA1 DO MEATO ACÚSTICO EXTERNO PORÇÕES CARTILAGINOSAS E ÓSSEA) VERIFICADA EM 58 PACIENTES.

1 Com excessão de 1 caso, em que apareceu Fungo leveduriforme, que cresce bem no ágar-sangue.
LEGENDA: * = Poucas colônias; ** = Quantidade média de colônias; *** = Numerosas colônias; - = Ausência de colônias.


TABELA 2 - DISTRIBUIÇÃO DOS PACIENTES (TABELA 1) COM RELAÇÃO A QUALQUER FLORA (PATOGÊNICA E NÃO PATOGÊNICA)

LEGENDA * = Presença; - = Ausência


TABELA 3 - DISTRIBUIÇÃO DOS PACIENTES (TABELA 1) COM RELAÇÃO FLORA PATOGÊNICA

LEGENDA * = Presença - = Ausência


TABELA 4 - DISTRIBUIÇÃO DOS PACIENTES (TABELA 1) COM RELAÇÃO À FLORA NÃO PATOGÊNICA

LEGENDA * = Presença; - = Ausência


TABELA 5 - DISTRIBUIÇÃO DOS 49 PACIENTES POSITIVOS (TABELA 1) COM RELAÇÃO À QUALQUER FLORA (PATOGÊNICA E NÃO PATOGÊNICA)

LEGENDA * = Presença; - = Ausência


TABELA 6 - DISTRIBUIÇÃO DOS 13 PACIENTES POSITIVOS (TABELA 1) COM RELAÇÃO À FLORA PATOGÊNCIA

LEGENDA * = Presença; - = Ausência


TABELA 7 - DISTRIBUIÇÃO DOS 42 PACIENTES POSITIVOS (TABELA 1) COM RELAÇÃO A FLORA NÃO PATOGÊNICA

LEGENDA * = Presença; - = Ausência



Discussão e Conclusões

As informações de que se dispõem sobre a flora normal do meato acústico externo são escassas (Wilson & Milles, 1964).
Segundo Syverton e colab. (1964), os microorganismos colhidos de ouvidos normais nos trópicos foram aquêles aceitos como constituindo a flora normal da pele revestindo o meato acústico externo: Staphylococcus aureus, Staphylococcus albus, Micrococcus, Sarcinas, Difteróides e Bacilos.

Entretanto, estudando a flora bacteriana aeróbia do meato acústico externo normal encontramos constituindo a flora não patogênica o Staphylococcus epidermidis e constituindo a flora patogênica Achromobacter sp., Proteus mirabilis, Staphylococcus aureus e Fungos leveduriformes.

O Staphylococcus epidermidis, da flora normal de outras localizações tegumentares, também parece assumir êsse aspecto, no meato acústico externo normal, uma vez que comparece com alta. freqüência (72,3%, Tabelas 4 e 7).
Achromobacter sp., Proteus mirabilis, Staphylococcus aureus e Fungos leveduriformes, comparecem com baixa freqüência (22,3%, Tabelas 3 e 6) e encontram-se constantemente como causadores de otites. Devem, por isto, ser considerados como eventualmente patogênicos, isto é, êstes indivíduos em que os referidos microorganismos estão presentes, podem ser considerados portadores sãos já que não apresentam nenhuma sintomatologia; se sofrerem baixa de defesa local, verossimilmente poderão apresentar otites causadas por éstes germes.

Hardy e colab. (1951), estudaram as otites externas em adultos jovens que serviram a U.S. Naval Air Station na Flórida. Em suas investigações realizadas nos meses de verão, observaram que o Pseudomonas é o germe com papel mais importante e mais freqüente nas otites externas, sendo raro êsse achado em ouvidos normais.

O Proteus mirabilis, os Streptococcus Alfa e Beta hemolíticos desempenham papel menos importante e menos freqüente na etiologia da otite externa.

A flora mitológica desempenha um papel muito limitado na etiologia da otite externa aguda.

Se, na região cartilaginosa, onde normalmente encontramos cerume, surpreendemos predominância acentuada de Staphylococcus epidermidis em relação à região óssea, onde habitualmente êle não se encontra, o possível poder defensivo do cerume (Pirodda, 1937; Conley, 1948) parece ter certa eficiência contra a flora não patogênica. Este poder defensivo se processaria quer como ação antibacteriana, quer como agente de proteção mecânica, ou pelos dois processos, em diferentes proporções.

Entretanto, para a flora eventualmente patogênica (Achromobacter sp., Proteus mirabilis" Staphylococcus aureus e Fungos leveduriformes) a proteção que o cerume confere, quer a interpretemos como mecânica, antibacteriana ou ambas, é pràticamente nula.

Em relação às tabelas referidas no têxto poderemos tirar ainda as seguintes conclusões:

Tabela 1 -
1.ª - Quando a possível barreira é vencida, a quantidade de microorganismos encontrada na porção óssea é a mesma da porção cartilaginosa.
2.ª - Geralmente os germes eventualmente patogênicos se encontram não em pequena mas em média quantidade.
3.ª - Os 13 casos com microorganismos patogênicos estão assim distribuídos em ordem decrescente de freqüência: Achromobacter sp., 8 casos; Proteus mirabilis, 2 casos; Staphylococcus aureus, 2 casos; Fungos leveduriformes, 1 caso.

Tabela 2 -
1.ª - Existe uma possível barreira (cerume) frente a qualquer flora (patogênica e não patogênica) porque há aparente proteção da porção óssea.
2.ª - Essa barreira protege só na metade dos casos.
3.ª - Essa proteção de 50% decorre (e/ou)
      a) da insuficiência do poder protetor de cerume?
      b) da insuficiência de produção de cerume pelo paciente?
      c) da agressividade do microorganismo?

Tabela 3 -
1.ª - A flora patogênica comparece em proporções consistentes com a hipótese de sua presença como em portador-são.
2.ª - Uma possível barreira (cerume) não parece ser eficiente contra a invasão da porção óssea pela flora eventualmente patogênica.

Tabela 4 -
1.ª - A flora normal (não patogênica) tem alta freqüência.
2.ª - Uma possível barreira (cerume) parece ser eficiente contra a invasão da porção óssea pela flora não patogênica.

Tabela 5 -
1.ª - Na porção cartilaginosa os microorganismos se apresentam em alta freqüência.
2.ª - Parece existir uma barreira (cerume) impedindo parcialmente a passagem dos germes para a porção óssea.

Tabela S -
1.ª - A flora patogênica comparece em alta freqüência nas porções cartilaginosas e óssea.
2.ª - Uma possível barreira (cerume) não parece ser eficiente contra a flora eventualmente patogênica, que quase invade a porção óssea, algumas vêzes desaparecendo da porção cartilaginosa.

Tabela 7 -
1.ª - A flora não patogênica comparece em alta freqüência na porção cartilaginosa e em pequena, na porção óssea.
2.ª - (Parece existir uma possível barreira (cerume) que impede muitas vêzes a passagem de germe não patogênico para a porção óssea.

Resumo

1 - A flora aeróbia do meato externo normal de 58 pacientes adultos de ambos os sexos, de Ribeirão Prêto e regiões vizinhas, mostrou-se constituída de Staphylococcus epidermidis, germes não patogênico, em alta freqüência; e de Achromobacter sp., Proteus mirabilis, Staphylococcus aureus e Fungos leveduriformes (gênero Cândida), germes eventualmente patogénicos, em baixa freqüência.
2 - A região cartilaginosa apresenta grande predominância de Staphylococcus epidermidis em relação à porção óssea.
3 - Os germes Achromobacter sp., Proteus mirabilis, Staphylococcus aureus e Fungos leveduriformes se distribuem com igual freqüência nas duas porções; cartilaginosa e óssea.
4 - Supõe-se que o cerume tenha função antibacteriana, mecânica ou ambas simultâneamente para o Staphylococeus epidermidis. Entretanto, sua proteção contra os germes eventualmente patogênicos parece ser nula.

Summary

The normal aerobic flora of the external auditory meatus; Role of Cerumen.
1 - The normal aerobic flora, of the external auditory meatus of 58 adult patients of both sexes from Ribeirão Prêto and neighbouring region was found to be composed very often by Staphylococcus epidermidis, a non pathogenic bacterium; and rarely by Achromobacter sp., Proteus mirabilis, Staphylococcus aureus and an yeast-like fungus (probably Cândida), possibly pathogenic microorganisms, with no signa and symptoms as in carriers.
2 - The cartilaginous segment was much more frequently inhabited by Staphylococcus epidermidis than the osseus segment.
3 - Achromobacter sp., Proteus mirabilis, Staphylococcus aureus and yeast-like fungus were found as frequently in the cartilaginous segment as in the osseus one.
4 - It is assumed that the cerumen may have an antibacterial, a Mechanical, or both functions simultaneously against Staphylococcus epidermidis. However, its action against possibly pathogenic microorganisms appeare to be none.

Bibliografia

1. Syverton, L. J. T.; Hess, W. R. and Krafchuk, J. - Clinical Observations and Microbiologic flora. Archives of otolaryngology: 43: 213225, 1946.
2. Coniey, J. J. - Evolutionis of Fungeons disease of the external auditory canal. Archives of Otolaryngology 47: 721-745, 1948.
3. Hardy, A. V.; Mithcell, R. S., Sehreiber, M., Hoffert, W. R., Yawn, E. and Young, F. - Bacteriological studies of otites externa. The Laryngoscope 64: 1020-1024, 1954.
4. Pirodda, A. - Ha il cerume potere bactericida" Oto-rino-laringologia Italiana 7: 171-182, 1937.
5. Wilson, G. S. e Miles, A. A. - Topley and Wilson's principles of Bacteriology and Immunity. 5.ª Ed. Edward Arnold (Publishers) Ltd. London, 1964, vol. II, p. 2478.




* Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia e no Departamento de Parasitologia, Microbiologia e Imunologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto da Universidade de São Paulo. Apresentado no XIX Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, XII Congresso Brasileiro de Broncoesofagologia e I Congresso Brasileiro de Foniatria, realizado no Rio de Janeiro de 4 a 9 de setembro de 1970.
1 Professor Assistente-Doutor do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto da Universidade de São Paulo.
2 Ex Professor Colaborador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto da Universidade de São Paulo - contratado nas funções de Professor Titular da Clínica Otorrinoloringológica.
3 Professor Adjunto do Departamento de Parasitologia, Microbiologia e Imunologia da Faculdade de Medicina 'de Ribeirão Prêto da Universidade de São Paulo.
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Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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