Sistematização da Avaliação da Função Auditiva em Crianças
Autor(es):
Evaldo J. Bizachi Rodrigues *
Rubem Cruz Swensson **
Introdução
A fala, que começa no chôro por ocasião do nascimento e que passa por vários estágios até a pronúncia da 1.ª palavra convencional, é fruto de uma atividade complexa e elaborada, em que participam vários sistemas, todos com a mesma relevante importância, e tem na criança normal a sua aquisição garantida desde que ela seja exposta adequadamente.
Uma das condições portanto para que haja aquisição de fala é que a criança ouça.
Etapas do desenvolvimento da fala
De maneira suscinta, os estágios do desenvolvimento da fala são os seguintes:
- período de vocalizações reflexas, que vai até por volta do 69 em que as emissões independem da vontade e da audição da criança embora adquiram características diferentes nas diferentes situações, de necessidade, e em que aparecem vários sons que treinam a articulação e que mais tarde serão necessários para a fala convencional definitiva.
- a partir do 69 mês, ao contrário do 19 período do balbucio, o estímulo para a emissão de sons está na dependência dos sons emitidos e ouvidos. [atividade sonora reflexa (estímulo) - audição (resposta) - produção do som repetido - prazer na produção].
- por volta dos 9 ou 10 meses, a criança pode ser ouvida imitando os sons produzidos por outras pessoas, geralmente imitando primeiro os sons já conhecidos dos estágios anteriores a criança toma consciência acústica das outras pessoas, apesar de não compreender os sons. O repertório de sons que a criança vai acumulando é confinado aos sons da linguagem do seu relacionamento, um repertório que ela terá que ser capaz de produzir quando no período de fala verdadeiro, por volta do 129 ao 189 mês de vida, na média das crianças,
Pode-se agora compreender o porque da criança que não ouve apresentar uma emissão igual à ouvinte, até uma certa época (8 mêses até 1 ano), depois do qual sua emissão passa a ser caracterizada só por gritos esporádicos. Entende-se também porque o período até o 18.0 mês de vida é de importância transcendental para a aquisição da fala, que tanto mais difícil se torna, quanto mais distante dêste período tiver início o desenvolvimento dás várias etapas de aquisição, como demonstra a experiência de casos com disacúsicos graves em que tiveram maior sucesso os que, apesar do maior comprometimento da audição, iniciaram treinamento auditivo com aparelho de amplificação sonora mais precòcemente que aquêles com melhor audição que mais tardiamente iniciaram o mesmo tipo de tratamento. Em outras palavras, mais importantes que o quantum o paciente ouve é a precocidade do início do treinamento auditivo com amplificação sonora, que vai desde a exposição adequada aos sons, até a discriminação dos sons da fala, como objetivo final.
Objetivo
A finalidade dêste trabalho é a apresentação da sistematização utilizada na avaliação da função auditiva na criança, usada no Instituto Educacional São Paulo, da PUC-SP centro de diagnóstico e tratamento dos distúrbios da comunicação - e em fase de introdução na Clínica Foniátrica da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, visando o diagnóstico da disacusia e conseqüentemente a orientação e tratamento adequado para cada caso.
Anamnese
Independentemente do tipo de problema de comunicação apresentado na queixa, seguimos um roteiro de anamnese em que procuramos levantar dados sôbre o caso que sejam indicativos de lesão e/ou de alterações genéticas e/ou de influências ambientais. E feito, assim, um histórico, o mais completo possível, do período de gestação à respeito de estados mórbidos e tratamentos a que a mãe do paciente submeteu-se durante êste período.
Das viroses, a rubéola é a mais pesquisada buscando-se dados sugestivos de sua ocorrência ainda que ela não tenha se manifestado claramente.
Igualmente relevantes são as informações à respeito do fator Rh, ABO, (Kernicterus) e a ocorrência de traumatismos, e hemorragias.
As informações sôbre as condições de nascimento, como a duração do trabalho de parto, a ocorrência ou não anóxia peri-natal e descompressão brusca de cabeça (micro-hemorragias), são tão importantes como os dados à respeito dos antecedentes mórbidos pessoais do paciente, não sendo raro a referência de tratamento como uso de drogas ototóxicas ou a disacusia ter aparecido depois de caxumba. Igualmente importante são as informações em determinados pacientes disacúsicos à respeito da disfunção renal, tireóidea e cardíaca, como ocorre características nas síndromes de Allport, Pendred e Lange-Jervell, respectivamente.
No levantamento dos dados indicativos de alterações genéticas o histórico familiar, em particular, o auditivo, nos permite levantar suspeitas da característica familiar do problema.
Nos ítens de influências ambientais faz-se um levantamento do ambiente do paciente principalmente no que diz respeito às situações de fala em que esteve e está expôsto e sôbre o desenvolvimento da comunicação e da motricidade em geral. Nêste último aspecto interroga-se detalhadamente alterações que indiquem a presença de "pequenos" grupos neurológicos, como dificuldades para a mastigação e a deglutição.
Exame do paciente
Em ambiente com um mínimo de estímulo visuais e com atitudes dirigidas à tranquilização e obtenção do interêsse da criança, procede-se ao exame do paciente procurando criar situações em que a comunicação ocorra espontâneamente.
Procura-se dados não só das funções básicas da linguagem como da própria linguagem no que diz respeito a entoação, falta de modulação, tipos de falhas sintáticas, omissões de sílabas e elementos da frase com menos carga energética. Vai-se surpreender o paciente olhando de maneira muito atenta para o examinador, insinuando o uso de uma leitura oro-facial mais ou menos desenvolvida. Não menos freqüente é a confirmação da "desatenção" referida pela mãe na anamnesc pela necessidade de se repetir mais uma vez a mesma palavra ou frase para a criança entender. Há ainda os casos que levam à forte suspeita de se tratar de disacusia e que mais tarde são incluídos nos quadros de Deficiência Mental, Autismo, problemas de atenção, certos retardos de fala ainda discutidos e por alguns chamados de afasia infantil (de evolução) e outros.
Mesmo nos pacientes em que a emissão é nula, o registro da capacidade de comunicação gestual é importante para a avaliação da linguagem interior do paciente (Sheridan, The child who does not Talk, 1964).
Exames físico e otológico
O exame físico geral, permite, por vêzes, a constatação de certas características que, ao lado da discusia levam à sua classificação dentro de síndromes como as de Waardenburg (mal formação palpebral, alargamento da raiz do nariz, confluência supra-ciliar, heterocromia da iris, disacusia e albinismo parcial).
Disostoses Crânio-Faciais
(Mal formação palpebral e auricular, abóbada em ogiva e macrostomia, hipoplasia de zigoma e mandíbula;) síndrome de Wilderwank (Kliper Feil + paralisia globo ocular, "retratiobulbi" e disacusia).
Através da inspeção otoscópica e exame radiográfico estudamos a integridade da orelha. Muito freqüente e importante pela perda de audição que provoca é a constatação da assim chamada "Glue ear", principalmente nas crianças de idade escolar, levando-as a dificuldades para a aprendizagem, principalmente manifestadas na escrita, sendo muitas vêzes, por isso, taxadas de disléxicas, errôneamente.
Avaliação inicial da função auditiva
Além dos dados já obtidos através do comportamento do paciente frente a comunicação no início da entrevista, através de ruídos, sons puros e da própria voz, pesquisa-se as respostas reflexas que aparecem dependendo das características do estimulo sonoro e que variam com a idade do paciente e, mais especificamente, com a sua maturação neurológica.
A rigor, tôda criança com história suspeita deve ser tratada desde o nascimento não se devendo nos prematuros, estabelecer o diagnóstico definitivo até o final do 1° ano de vida.
Ao nascimento, a resposta ao som é uma intensa e súbita atividade muscular generalizada (reflexo de Moro) que pode ser obtida com o uso de Neometer. O som é apresentado a 25 cm da orelha da criança, podendo-se testar os dois ouvidos em ambiente de berçário.
Por volta do 39 mês êste reflexo começa a ser inibido e as respostas passam a ser mais delimitadas como sòmente às piscadas de olhos, por exemplo. Nêsse período, a criança começará a responder aos sons que ouve ao seu redor. Interessante é observar que a criança caracteristicamente olhará sòmente quando o som é nôvo ou não familiar, não havendo resposta se o som fôr repetido com certa freqüência. Assim, é de boa norma alternar-se a lá orelha a ser testada com cada nôvo som.
Por volta do 8° ao 9° mês, como resultado do aprendizado e de maturação ocorre a localização do som. A criança, então, gira e olha para os sons que apresentam padrões que lhe são familiares.
A fala é o som mais importante de todos e a criança não só se vira e olha, mas tentará também imitar o que ouve.
São mudanças e variações nêstes tipos de respostas normais para as diferentes idades que levam à supeita de disacusia e por conseguinte, a manutenção das crianças que as apresentem sob uma vigilância mais atenta.
Testes para avaliação quantitativa
1. Técnicas usando condicionamento
Já com o intento de medir, temos a avaliação da função auditiva empregando técnicas de condicionamento, sendo talvez a mais elaborada o peep-show e que consiste em ser a criança retribuida tôda vez que executa uma tarefa quando o som é apresentado. O caso específico da Food-audiometry a retribuição é uma guloseima. No teste que usa a resposta eletro dérmica também conhecido como psicogalvanometria também é necessário o condicionamento do paciente. Além dos inconvenientes dos choques, do número pequeno de pacientes condicionáveis, do descondicionamanto rápido e do resultado ser falseado em pacientes com problemas neurológicos, a interpretação dêste teste, como os demais em que é necessário condicionar a criança, é subjetiva e as respostas não são padronizadas.
2. Testes Convencionais: (limiares tonais e teste de discriminação)
A partir do 6° mês de idade a criança já pode ser estimulada com a voz e tons puros, em audiometria de campo, onde pode ser observada diferentes reações da criança; como demonstração que ouviu mas não conseguiu localizar o som, ou que ouviu mas não entendeu a palavra.
Observe-se que na audiometria de campo deverá ser levado em conta a distância do alto-falante e o fato de ambos os ouvidos estarem sendo estimulados.
A partir dos 2 anos de idade, a criança já aceita o fone e é capaz de repetir o que o examinador fala e até ser condicionada, quando se deseja aplicar aos testes em que ë necessário tal procedimento, como anteriormente já foi mencionado. Não se deve partir do pressuposto que a criança não coopere, como não se deve se limitar aos testes de liminares tonais e de discriminação. Não há motivo para que tôda a bateria de testes supraliminares não seja tentada.
Ênfase tôda especial deve ser dada ao teste de discriminação vocal em crianças com idade pré-escolar e escolar, uma vez que através dêle pode-se detectar dificuldades só sanadas com tratamento específico e que desapercebidas levarão o paciente para o rol dos maus alunos com todo o envolvimento psicológico que acompanha tal situação, não só no ambiente escolar, como no familiar que via de regra passa a ser mais sério que o primeiro.
O teste é simples, de fácil execução e pode ser feito usando-se palavras com significado e sem significado. A lista que usamos é de monossílabos e dissílabos relacionados ao acaso.
De igual importância é o teste igual/diferente que se faz comi diferentes sons da fala para testar capacidade de diferenciar pares de elementos sonoros (teste de Wepman, por exemplo).
3. Testes em que se prescinde da cooperação do paciente: (testes objetivos)
São métodos neurofisiológicos para avaliação da função auditiva e são baseados no registro de certas modificações produzidas no organismo em determinados setores específicos, quando o indivíduo recebe um estímulo sonoro.
Ao nível das células ciliadas detecta-se um potencial que é específico das mesmas, usando-se um eletrodo saindo da cóclea e acoplado a um pré-amplificador e a um osciloscópio, havendo uma reprodução idêntica ao som que chega ao ouvido em têrmos de intensidade e freqüência. Colocando um alto-falante em substituição a um osciloscópio teremos uma reprodução fiel do som dado como estímulo, dai o nome Microfonismo Coclear do teste.
Ao nível das fibras nervosas aparece um potencial de ação que registrado nos fornece o cocleograma.
Uma resposta de natureza muscular cujo registro produzido ou padronizado da resposta está sendo desenvolvido para avaliação da função auditiva, não se sabendo ainda se a via aferente é vestibular ou Coclear. É o reflexo Sono-motor.
Finalmente, a audiometria de Resposta Evocada (ERA) é o registro das alterações na atividade elétrica, ao nível do córtex, quando se dá um estímulo sonoro, e onde se limita a nossa experiência.
Todos êstes métodos neurofisiológicos para avaliação da função auditiva são específicos pára cada área onde a resposta é obtida, o que quer dizer que um completa o outro e não o substitui.
Resultados
Apesar de todos os cuidados na avaliação foi confirmado o dado apresentado em literatura, segundo o qual, apenas o acompanhamento do rendimento da criança em clínica ou em classe especial permite a confirmação ou não do diagnóstico efetuado com os procedimentos descritos.
De 20 casos examinados em dezembro de 1970 para decidir-se sôbre o ingresso ou não na divisão de ensino do IESP PUCSP, por queixa de retardo de fala e disacusia foram realmente encaminhados para aquelas classes especiais da instituição nove crianças e para treinamento auditivo na clínica, oito. Dos nove encaminhados ao ensino, dois têm revelado caracteríticas e aprendizagem que os excluem da categoria de disacusia neuro-sensorial pura, o mesmo acontecendo com um paciente que ficou em treinamento na clínica.
Sumário
Os autores, considerando a importância do diagnóstico precoce da disacusia para o início de treinamento auditivo e conseqüente aquisição de fala, discorrem sôbre a técnica usada para tal desideratum. Comentários são feitos em tôrno da anamnese, do exame do paciente e dos métodos utilizados para a avaliação da função auditiva em crianças.
Summary
The authors, considering the importance of the early diagnosis of auditory disorders to the beginning of auditory treatment and further speech acquisition, are going to discuss about the usual proceders in clinic for searching this goal. The authors discuss anamnesis, physical examination and methods used to avaluate the children auditory function, in relation to communicative production.
Bibliografia
Barry. N. F.; Eisenson, J.: Speech disorders - Principles and Practices of Therapy. New York, Appleton Century Crafts (1956)
Renfrew, Catherine; Murphy, Sevin: The child who does not talk. Spastics International Medical Publications e William Heinemann Medical Books Lted. (1964)
Tervoort: Development of Language and the "Critical Period" - Development of language 247 page Acta Oto-Laryng. Suppl. 206 (Conference in Canada Oct. 19,64 - The Young Deaf Child Identification and Management)
* Prof. de Anatomia e Fisiologia dos órgãos da Fonação e Audição, do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Católica de Campinas. Coordenador do Setor Médico da Divisão de Clínica do IESP/PUC-SP - Serviço do Dr. Alfredo Tabith Júnior.
** Médico estagiário do Dep. de ORL da Sta. Casa Misericórdia S. Paulo.