Versão Inglês

Ano:  1970  Vol. 36   Ed. 3  - Setembro - Dezembro - ()

Seção: -

Páginas: 242 a 246

 

Diagnóstico Precoce das Psicoses Infantis

Autor(es): Salvador A. H. Célia *

Importância do exame da linguagem e do sistema auditivo e vestibular

As psicoses na infância são um assunto controvertido, apesar de muito ter sido descoberto e pesquisado nos últimos anos. Entenda-se por psicose a condição psicopatológica baseada num comprometimento severo do ego, seja ela de natureza congênita, adquirida, emocional ou neurofisiológica, com caráter de irreversibilidade com conseqüentes defeitos na estruturação da personalidade e dificuldades de adaptação ao meio ambientes.

Divergências quanto as classificações das psicoses, seus diagnósticos, têm sua origem nas vivências e experiências prévias de diversos autores.

Assim, desde que Kanner, em 1943, descreveu o autismo infantil, têrmos como esquizofrenia infantil, psicose simbiótica, criança com desenvolvimento atípico do ego, foram usados para conceituar entidades com achados clínicos semelhantes, embora aparentemente pudessem, para efeitos nosológicos, ser descritas como entidades unitárias2.

Para outros autores, entre êles Rutter e Anthony, a esquizofrenia infanti1 3 é diferente do autismo infantil porque há diferenças no curso de sua evolução, pois que alucinações e delírios ocorrem freqüentemente na primeira, enquanto que na segunda ocorrem ocasionalmente. Além disso há diferenças no Q.I. e na incidência de esquizofrenia entre familiares de autistas, contrastando com a outra condição.

Todavia, conclui-se que as psicoses na infância seguem uma linha de evolução muito em comum, diferindo apenas pelo tipo de processo psicopatológico, pela idade em que aparecem, e pelo tipo de personalidade própria que está se formando.

HISTERIA NATURAL

a) Família

Inicialmente pensava-se que a maioria das crianças psicóticas provinham de famílias de alto nível intelectual e social (Kanner)4; seriam pessoas de vida acadêmica e social caracterizadas por certas preocupações de intelectualismo e obsessividade. O corolário disso seriam os "refrigerators parents".

Depois de duas décadas de pesquisas clínicas sabe-se hoje que as crianças autistas provêm de tôdas as classes sócio-econômicas, intelectualizadas ou não. (Chess e Ritve) 2.

Igualmente encontram-se entre êstes, pais amorosos, afetivos e suficientementes maduros para educarem seus filhos. É raro também encontrar filho afetado, e que não seja monozigótico, nas famílias de autistas.

b) Gravidez e Parto

Goldfard5 revendo arquivos obstétricos de crianças autistas, seus irmãos e crianças sob contrôle (normais) encontrou grande incidência de complicações nos estágios pré e para-natal cio grupo autista.

c) Pôs-Natal Imediato

Nesse período algumas crianças autistas foram descritas como muito quietas, motoramente inativas, emocionalmente sem resposta, ou então pelo contrário, excessivamente irritáveis, hiper-sensíveis para estímulos auditivos, táteis e visuais.

A mesma criança, paradoxalmente, pode alternar estes dois tipos de conduta.

d) Evolução no Primeiro Semestre

As mães podem ficar perplexas pela falta de chôro, mesmo nas horas de desconfôrto causadas por fome ou dor.

Expressões como: "Parecia um anjo", "não gostava de ser segurada no colo", "nunca chorava" etc., são comuns.

Os primeiros sinais de desenvolvimento anormal podem ser a ausência de respostas à aproximação da mãe, a falta de um sorriso como uma resposta para um estímulo social do ambiente, ou a falta de resposta antecipatória para o gesto de querer pegar o nenê ao colo.

Concomitantemente é saliente a falta de interêsse para brinquedos próprios de sua idade (chocalhos, etc.). Parecem muito contentes por estarem sòzinhos no seu bêrço. Paradoxalmente pode ocorrer hiper-irritabilidade para estímulos sensoriais do ambiente provocando verdadeiro estado de pânico (luminosidade excessiva, ruídos de campainhas, telefones, sirenes, etc.). Finalmente uma falta de vocalização pode ocorrer no primeiro semestre.

e) Segundo Semestre

Um bebê que pode ter aceito muito bem alimentação materna ou artificial em mamadeiras, quando lhe é oferecida proteína sólida pode apresentar severo "distress".

Recusa-se a comer, ou quando come pode vomitar constantemente. Algumas dessas crianças permanecem com alimentação pastosa (papas) ou com mamadeiras até C ou 7 anos. Brinquedos ou objetos colocados nas mãos não são seguros por êles, que os deixa cair. Outras vêzes, a conduta é oposta, havendo uma forte tendência a segurar objetos, retendo-os próximos de si (pedaços de corda, lápis quebrado, etc.). Muitas vêzes se o objeto desaparece, a criança entra em pânico. Tal hábito pode continuar por muitos anos.

A seqüência do desenvolvimento motor pode ser precoce, retardada, ou totalmente irregular, caracterizada pela precocidade em adquirir uma destreza motôra e perder a mesma antes de desenvolver uma outra. Para os pais até parece que as crianças não querem usar as habilidades adquiridas. As mães impressionam-se muito com a falta de afetividade dos filhos. Não respondem às carícias, mesmo quando seguradas no colo, abstendo-se também em reagir a brincadeiras como "esconde-esconde, bater palminhas ou simplesmente dar adeus".

A função da linguagem tem uma evolução similar a da motôra.
A comunicação não verbal também é falha, podendo a criança não apontar para o objeto ou pessoa desejada.

O olhar quase anormal para suas mãos e dedos pode tornar-se uma preocupação mais do que constante.

Outras modalidades sensoriais podem estar alteradas, como por exemplo a discriminação tátil, com reações adversas para texturas de superfícies ásperas (lãs, madeiras) e reações de preferência para superfícies lisas (nylon, fórmica).

Respostas proprioceptivas e antigravitacionais podem ocorrer e são notadas principalmente quando o pai tenta atirar o nenê para cima, fato que o faz reagir com pânico.

f) Segundo e Terceiro Ano

Hábitos como ranger os dentes vigorosamente e ruidosamente; o arranhar intencionalmente superfícies para escutar sons ou aparentemente para sentir diferenças texturiais, são algumas das características anormais dêste segundo ano de vida.
A repetição compulsória de gestos, maneirismos, como o movimento de dedos ou de mãos tipo "flapping", acompanhados às vêzes por uma postura anormal com hiper-extensão de pescoço, são também sinais importantes de anomalias.

O balancear do corpo e as sacudidelas de cabeça aparecem frequentemente.
Passam boa parte de seu tempo olhando ou brincando com piorras, rodas, moedas ou qualquer objeto disponível que rodeie. Tais objetos trazem um aumento da ansiedade e da atividade do "flapping".

Ao aprender a caminhar podem fazê-lo na ponta dos pés par algum tempo ou indefinidamente, característica esta encontrada em mais de 50% das psicoses infantis 8.

Nessa idade pode-se mais fàcilmente captar um distúrbio no olhar da criança. Não fixam o olhar nas pessoas e preferencialmente apresentam uma expressão vaga no olhar.

As pessoas podem ser usadas como extensão do "self" (pegam o braço da pessoa, pondo-o numa fechadura, não olhando para a pessoa, mas sim, para o objeto desejado). Continuam sem ter interêsse em brinquedos, a não ser naqueles que têm atividades repetitivas, como piorras, interruptores de luz, etc.

g) Quarto e Quinto Ano

A sensibilidade para estímulos externos descrita acima tende a diminuir. A criança é capaz de ter atividades motoras físicas apropriadas para sua idade. Caso não consiga isto, é devido a sua inadaptação social em entender as atividades (andar de bicicleta).

O maior problema nesta etapa está na área da linguagem. Esta pode não estar presente ainda ou pode ser repetida completamente fora do contexto social da ocasião (ecolalia). Algumas vêzes repetem o que ouviram numa forma intérrogativa, ou habitualmente trocam pronomes. A voz pode ser atônica, arrítmica e sem expressão.

SÍNDROME E GRUPO DE SINTOMAS

Os sintomas e suas variantes foram descritos de acôrdo com a idade que aparecem. Esses sintomas serão classificados em grupos, ordenados de forma a que um processo patológico unificado possa ser delineado.

É de se salientar que nem sempre ocorrem todos êsses sintomas, é que nem todos os grupos de sintomas adquirem total expressão. Por vêzes são encontrados casos em que os distúrbios primários são os do relacionamento, enquanto que em outros os distúrbios da percepção são os primários, muitas vêzes com razoável capacidade de relacionamento.

1 -- Distúrbios da Percepção

Pode ocorrer intensa sensibilidade, hiper-irritabilidade ou ausência total de resposta para os estímulos externos. Tais padrões de respostas podem ocorrer conjuntamente ou isoladas em cada criança.

a - "Um estado de alerta" para estímulos sensoriais:

auditivo - atenção para sons induzidos (arranhar de superfícies, estalar de dedos). visual - olhar atento para movimentos das mãos e dedos como se estivesse observando detalhes.
táctil - o passar as mãos sôbre superfícies de várias texturas.
olfativo e gustativo - preferência para determinados alimentos de acôrdo com o cheiro ou conteúdo do mesmo.
vestibular - é característica a reação a objetos que têm rotação (rodas, toca-discos, máquinas de lavar etc.), muito diferente daquêle interêsse expresso por uma criança normal.

b - Estado de intensa Sensibilidade e Irritabilidade para estímulos sensoriais.

auditivo - mêdo incomum a ruídos sonoros (sirenes, máquinas) e uma tendência antecipatória para fechar os ouvidos.
visual - mudança na iluminação pode precipitar reações de mêdo.
táctil - intolerância para certas texturas, (superfícies ásperar) ou uma acentuada preferência por superfícies lisas.
gustativa - específica intolerância para determinados alimentos.
vestibular - acentuada aversão ao ser projetado no ar, ou para andar em elevadores. O intenso interêsse para objetos de rotação pode mesclar-se com reações de mêdo ou excitabilidade.

c - Ausência de resposta aos estímulos sensoriais.

auditivo - falta de respostas aos sons, sejam êles intensos ou fracos, agudos ou graves.
visual - ignoram pessoas ou objetos no ambiente. Podem caminhar entre êles - como se não existissem.
táctil - podem deixar cair objetos colocados nas mãos como se não tivessem representações tácteis.
dor - pode não reagir a batidas, queimaduras, quedas etc...

2 - Distúrbios da Motricidade

Muitos dêstes distúrbios podem ocorrer associados aos estímulos sensoriais.

auditivos - O arranhar de superfícies, o rangido de dentes, batidas de cabeça, podem ser acompanhadas pelo gesto de baixar o ouvido como se fôsse para escutar um nôvo som produzido.
vestibular - As crianças autistas tendem a rodar sôbre si mesmas, olhar objetos rotativos por longo tempo fazendo "flapping" ou outras atividades ritualistas e bizarras.
proprioceptiva - "Hand-flapping" ou movimentos similares; é quase patognomônico da síndrome.

OUTROS FENÔMENOS MOTÔRES - O "to-walker" ou seja, o caminhar na ponta dos pés, tem uma incidência significativa.

3 - Distúrbios do relacionamento

As crianças parecem não olhar fixo para as pessoas; ausência de sorrisos, ausência de respostas quando projetado ao ar, aparente aversão ao contato físico, olhar desinteressado e vago, falta de interêsse e uso bizarro de brinquedos, desinterêsse por jogos próprios da idade e companheirismo, uma nítida preferência em estar sozinhos, o uso de pessoas como expressão do "self" e uma falta de resposta aos estímulos ambientais, são as principais anomalias.

4 - Distúrbios da linguagem

Freqüentemente há uma completa falta de linguagem. Quando se desenvolve é pobre, sem comunicação no contexto afetivo. A modulação é arrítmica e atônica. Os principais distúrbios são a ecolalia e o uso de pronomes de modo reverso.

5 - Distúrbios da curva de desenvolvimento

Pode ser bem diferente do desenvolvimento normal, tanto para a linguagem como para o desenvolvimento motor. Pode ser precoce, irregular, lento, diferente do desenvolvimento encontrado em um deficiente mental.

EVOLUÇÃO DO SÍNDROME APÔS OS SEIS ANOS

O relacionamento com o meio ambiente e o desenvolvimento da linguagem são considerados juntos, pois, com o passar dos anos, a capacidade de se relacionar depende muito da linguagem. Quando esta se desenvolver poderá ser parecida com a normal ou rudimentar, concreta, com mínima capacidade de abstração. Quando não se desenvolve até os cinco anos é provável que ao chegar aos quinze anos ainda não tenha se desenvolvido.

O afeto tende a ser vazio, "incolor", e é notório que suas relações afetivas com o ambiente são pobres, procurando isolar-se.

Outras vêzes a criança em desenvolvimento apresenta características típicas de um lesionado cerebral. Podem ser impulsivos, hiperativos, inquietos, agressivos, e às vêzes apresentam grande retardo mental.

Um terceiro tipo de evolução encontrado nos anos de latência e adolescência, é idêntico ao descrito por alguns autôres como esquizofrenia pròpriamente dita. É um processo insidioso, e na maioria das vêzes é difícil se fazer um diagnóstico diferencial com aquelas crianças que foram rotuladas de "autistas" nos primeiros anos de vida. A linguagem é caracterizada pela perda de associação e cada vez mais fora do contexto social. Ilusões ou alucinações também podem ser encontradas. Fantasias e delírios podem ser elaborados a partir dos "hábitos" agrupados nos distúrbios descritos como da percepção e da motricidade.

Um último curso evolutivo pode originar-se a partir do estágio esquizofrênico ou diretamente do síndrome autista dos primeiros anos.

Aparentemente tais crianças podem mostrar uma personalidade "normal" ou uma estrutura neurótica acentuada ou então defeitos caracterológicos. Todavia, uma observação cuidadosa de sua conduta, ou uma história detalhada dos primeiros anos de vida poderão sugerir resíduos de um quadro autista. Ausência de empatia, desajustamento social, excessiva preocupação com determinadas objetos, e uma falha no relacionamento humano podem existir.

As alterações da motricidade e da percepção usualmente desaparecem, podendo entretanto ocorrer raramente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os sintomas podem ser entendidos como resultantes de falhas em determinados fatôres essenciais ao desenvolvimento normal do Ego no primeiro ano de vida. Em primeiro lugar, muito da conduta do autista decorre da falta de capacidade em poder distinguir a si próprio do mundo exterior. Em segundo lugar, a conduta imitativa é fragmentada; atrasada ou simplesmente não aparece. E em terceiro, o autista tem deficiência em desenvolver sua capacidade para modular estímulos sensoriais. Sua conduta sugere-nos que êle recebe muito pouco ou nenhum estímulo.

Estas três lacunas do desenvolvimento sugerem que a criança psicótica não tem a suficiente habilidade para manter a percepção constante.

Isto é devido a um déficit na regulação do mecanismo homeostático que ocorre dentro do sistema nervoso central, fazendo com que os estímulos sensoriais não sejam adequadamente modulados ou amplificados. A criança autista parece ganhar muito, pouco ou nada dos estímulos ambientais.

Pesquisas feitas nos cérebros de crianças autistas e normais revelaram diferenças acentuadas nos traçados, eletroencefalográficos em estudos do sono (Rem sleep)6 nas, respostas a estímulos auditivos potencializados, no estudo das disfunções vestibulares 7 e nos estudos bioquímicos (dosagem de serotonima e das plaquetas) dos autistas.

Igualmente tais diferenças ocorreram em tôdas as crianças psicóticas independente da classificação diagnóstica (alguns casos de esquizofrenia, psicoses simbióticas etc...) sugerindo-nos que existe um só processo unitário patológico. Distúrbios na regulação dos estímulos sensoriais fazem com que a percepção se torne irregular, (Syndrome of percepcion inconstancy) e conseqüentemente seja a primeira função a sofrer alterações.

Todavia, excetuam-se alguns casos típicos de esquizofrenia que iniciam provavelmente por volta dos cinco ou seis anos em que não foram encontrados distúrbios da senso-percepção.

É sabido que as psicoses acarretam profunda deterioração no Ego da criança trazendo dificuldades nas relações ambientais, com conseqüente comprometimento da personalidade, pois esta se desenvolve através do intercâmbio da criança com o meio. Uma rápida intervenção poderá recuperar parcial ou totalmente êste ego "ameaçado", restabelecendo as condições satisfatórias para o seu desenvolvimento: Impõe-se contudo que, se reconheçam os sintomas e sua evolução, não importando a qual dos vários quadros clínicos pertençam.

Bibliografia

1. Mahler, Margaret "Severe Emotional Disturbances in Childhood", Chapter 41, American Handbook: of Psychiatry, Armetti.
2. Ornitz Eduard M, D.; Ritvo Edward: "Perceptual Inconstancy in Early Infantil Autism". Archives of General Psychiatry, Jan. 1968, vol. 18.
3. Rutter M.; Anthony, E. .T.: "Psychotic Disorders in Early, Childhood". Recent Development in Schizafrenia - 1967 - Edited by Alexander Walk.
4. Kanner, Léo: "Autistic Discurbance of Affective Contact". Nerv. Child 2. 217-250, 1943.
5. Taft, L. and Goldfarb, W.: Trenatal and Perinatal, Factore in Childhood Schizofrenia". Develop Med: Child Neurology 6. 3243, 1964.
6. Orhtz E.; Ritvo, E.: - The Auditory Evoked Respose, in Normal and Autistic Children During Sleep" .The Netherlands, Amsterdam, 1967.
7. Orhitz, E.; Ritvo, E.: "Decrease Postrotatory Nystagmus in Early Infantile Autism". Neurology, July, 1969, vol. 19 n.° 7.
8. Ritvo, E.: Comunicação Verbal" (Trabalho para publicado; 1970, UCLA.)




* Diretor de Ensino e Pesquisa da COMUNIDADE TERAPÊUTICA LÉO KANNER. Psiquiatra Infantil Responsável pelo Setor de Tratamento Infantil da COMUNIDADE TERAPÊUTICA LÉO KANNER. Assistente Voluntário de Pediatria da F.M. P. A. - UFRGS.

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