Mário Ottoni de Rezende
Autor(es): Prof. Paulo Mangabeira Albernaz
Palavras pronunciados, pelo Prof. Paulo Mangabeira Albernaz em aditamento às da reunião de 27 de outubro no XVIII Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia de Pôrto Alegre, na sessão solene do Departamento de Otorrinolaringologia da Associação Paulista de Medicina, a 17 de dezembro de 1969.
Esta reunião, em que a Associação Paulista de Medicina, pelo seu Departamento de Otorrinolaringologia, homenageia um grande vulto da especialidade, é, acima de tudo, uma demonstração mais de justiça, do que de amizade, de afeto, ou de saudade. É a prova de respeito; de veneração, de admiração, de reconhecimento, que os otorrinolaringologistas de São Paulo estavam na obrigação moral de externar a Mário Ottoni de Rezende. Sinto-me à vontade para falar dêste vulto notável, sob todos os aspectos, da otorrinolaringologia nacional. Conheci-o de perto e colaborei com muito prazer e muita honra, com aquele grupo, que deu o grande e definitivo impulso à nossa especialidade em S. Paulo. Não que já não houvesse outros especialistas de grande valor antes e além dos da Santa Casa. Eram, porém, especialistas algo isolados, e não havia mesiro ainda, no tempo dêles, ambiente, condições, para a difusão da especialidade.
Quando Schmidt Sarmento assumiu a chefia da Clínica Otorrinolaringológica da Santa Casa, começou a especialidade a tomar grande impulso. E se o chefe era Schmidt Sarmento, cujo valor não se discutia, a cabeça era, sem favor, Mário Ottoni.
Começou Mário Ottoni a vida médica como clínico geral, no interior de São Paulo, na região de Ribeirão Preto. Ao cabo de alguns anos, recorreu aos grandes centros europeus para especializar-se. Escolheu para isso a urologia. De volta de seus estudos, ingressou na Santa Casa de S. Paulo, que seria palco de uma vida dedicada à ciência e à caridade. É incluído no grupo da 1.ª Enfermaria de Homens, ao lado de Benedito Montenegro, Sérgio Meira, Francisco Sales Gomes Junior.
Só três anos depois, inclina-se para a otorrinolaringologia, e vai trabalhar ao lado do Prof. Henrique Lindenberg, que reconhece como seu mestre. Torna à Europa em 1921, e em Berlim, na Charité, ao lado de Seiffert, o grande amigo dos brasileiros, e depois, em Viena ao lado de Neumann, Ruttin, Beck, Hajek. Hirsch, Schüller, aprimora os conhecimentos da especialidade e - o que é muito importante para São Paulo, para seu meio médico - traz as primeiras noções daquilo que poderíamos chamar a alta otorrinolaringologia.
Mário Ottoni é um cientista, é um mestre. É sobretudo, mesmo sem cátedra, um mestre. Aquela clínica modesta, enfurnada num porão, dá a São Paulo o primeiro grupo de grandes especialistas. São Francisco Hartung - o meu velho e nunca esquecido amigo; Roberto Olíva; Ernesto Moreira; Afonso Camargo Penteado; Paula Assis; Rebêlo Neto - o primeiro e famoso cirurgião plástico de São Paulo; Antônio Vicente de Azevedo; e vários outros. Nasce aí, neste modesto serviço, o núcleo mais importante da otorrinolaringologia de São Paulo da época. Vêm outros depois: Paulo Saes, Rezende Barbosa - que viria a suceder a Mário Ottoni na chefia da clínica, seguindo-lhe as pegadas; Eduardo Cotrím; Jorge Fairbanks Barbosa; e muitos outros.
Um dêles, dos mais destacados, foi Ângelo Mazza. A Clínica Otorrinolaringológica da Escola Paulista, que inaugurei e dirigi por 28 anos, tem esta dívida de gratidão para com a congênere da Santa Casa: deu-nos Angelo Mazza que, por todo êste longo tempo, foi o meu grande auxiliar, o co-operador incomparável, e que, atingido eu pela compulsória, veio a assumir interinamente a cátedra.
O grupo que saiu do serviço de Mário Ottoni foi, acabamos de ver, uma das maiores expressões da otorrinolaringologia em São Paulo. Aí está Mário Ottoni, o mestre.
Vejamos o cientista. Em 1922, dava êle à publicação, uma monografia, 100 páginas apenas: Fisioneurologia e Patologia do Aparelho Vestibular. Casa Maiença, São Paulo.
Tenho o exemplar que êle me ofereceu em 1926. Está lido e anotado da primeira à última página. É a primeira obra geral- sôbre um problema que, naquela época, era muito pouco conhecido dos nossos especialistas. Acompanhara eu em 1918, na Bahia, Diniz Borges em suas observações para a tese de doutoramento, sôbre a técnica de Brünnings com o otocalorímetro e o otogoniômetro, para a prova calóríca. Era, pois, assunto da mais relevante novidade.
O livro de Mário Ottoni era escrito com tôda clareza e tôda precisão. Ainda aí o mestre; também o cientista.
Em 1923, no Boletim da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, na época o palco da ciência médica paulista, publica êle trabalhos sôbre a leishmaniose. Mário Ottoni apresenta, num dêles, o seu tratamento, que se tornou clássico entre nós, pelas cauterizações da mucosa nasal com ácido láctico.
Levara ao Rio, em 1925, estudo exaustivo, muito bem documentado, a respeito da operação de Lautenschläger-Seiffert para a cura da rinite atrófica ozenosa. Como sempre acontece, os zelos dos médicos são em geral tão agudos quanto os das mulheres. Houve quem contestasse o que Mário Ottoni concluía, mas êle não perdeu a oportunidade para demonstrar, de maneira categórica, qual era o seu estôfo moral, e de que modo suas observações eram feitas. No ano seguinte, na Semana Otorrinoneuro-oculística, eram apresentados, no serviço da Santa Casa, aos congressistas, 40 operados, os mesmos que haviam recebido a contestação no Rio, no ano anterior.
Examinei, pessoalmente, a maioria dêstes pacientes. Havia casos ótimos, casos evidentemente com melhora, casos duvidosos e alguns mesmo negativos. Êste fato define um cientista. Preparou tudo e apresentou - o que, como os meus caros colegas o sabem, nem sempre se faz - apresentou o que era bom e o que não era. E provou irrespondivelmente o que afirmara no Rio, não a um ou dois, mas a um congresso inteiro.
Os trabalhos de Mário Ottoni - a que, infelizmente, não me posso reportar em seu conjunto - abrangem tôda a especialidade. Cito alguns pelo seu valor: Um caso de abcesso subperiósteo da mastóide sem mastóidite, operado por indicação radiográfíca, seguida de fístula do canal lateral com hemiplegia. Doente curado (1933). Vertigens, ataxia, consecutivos a rolha de cerume (1933). Os peixes ouvem? - trabalho de erudição, do mais elevado nível (1933). Neuríte súbita a frigore do facial, do vestibular e do auricular posteríor (1933). Neuralgia do vidiano por bala: operação e cura (1933). Dois casos de papilomas recidivantes da laringe, tipo juvenil, um numa criança de 3½ anos, curada após ser operada por 30 vêzes (1934). Um caso de actinomicose da região orbitária com invasão endocraniana. Micetona de grãos - branco-amarelos, discomyces brasiliensis - estudo de grande valor pela raridade e pelo rigor da documentação. A otite média aguda e a mastoidite aguda no lactente e suas relações com a pediatria - um dos melhores trabalhos que conheço sôbre o assunto (1934). Caso de rinoscleroma em indivíduo de raça negra, trabalho de colaboração com A. Martíns de Castro e Luiz Sales Gomes, estudo completo e valioso. Síndrome dissociada do VIII par craniano por osteíte luética, em colaboração com o Dr. Aderbal Tolosa. Como evitar resultados decepcionantes, estudo crítico (1935). Lesões mucosas produzidas pela Leishmania trópica, súmula do problema sob o ponto de vista da colaboração brasileira, trabalho para o Congresso Pan-Americano de ORL. de 1935, em São Paulo, em que a ciência brasileira é posta em evidência (1935). Neuralgias por dentes inclusos (1936). Operação de Lothrop - Sébileau para a cura das sinusites frontais crônicas bilaterais, com quatro observações, trabalho de real valor (1936). Radiografias de contraste do antro maxilar (1937). Osteomielíte do frontal secundária à sinusite frontal (1937). Relação entre a clínica geral e a otorrinolaringologia (1938). Otorrinolaringologia em tempo de guerra, palestras de seis especialistas de São Paulo resumidas e comentadas (1943), Cabe destaque especial, além de aos trabalhos de actinomícose orbítária, escleroma, otite do lactente, Leishmaniose, operação de Lothrop-Sébileau, rinite atrófica, ao trabalho mais completo e profundo que Mário Ottoni redigiu e apresentou: Contribuição da otorrinolaringologia ao diagnóstico das afecções bulboprotuberanciais, relatório oficial ao 1.° Congresso Brasileiro de OR Laringologia, Rio 1938. É um trabalho de fôlego, completo, profundo, e que demonstra o que foi Mário Ottoni como otorrinolaringologista.
Aí está o cientista.
Mas o mestre, o cientista, o especialista, não fizeram sombra ao organizador. Estava em 1926 Mário Ottoni na presidência da associação que representava a classe médica de São Paulo - a Sociedade de Medicina e Cirurgia. Tem êle então a idéia de realizar um congresso de especialistas. O certame, que teve o modesto título de "Semana Otorrinoneuro-oculística", foi iniciado a 15 de outubro e representou, de fato, um conclave verdadeiramente notável. Inúmeros especialistas de todo o Estado e vários do Rio de Janeiro aqui estiveram reunidos em sessões memoráveis, de que guardo, até hoje, imorredoura recordação.
Dez anos depois, Mário Ottoni assumia outra vez a chefia do movimento que iria convocar a "Segunda Semana de Otorrinolaringologia". Reunir-se-ia esta de 6 a 11 de junho, já então com o comparecimento de uma centena de especialistas de todo a país e dos Profs. Belou, de Buenos Aires, e Alonso, de Montevidéu. As atas dêsse inesquecível conclave perfizeram cêrca de mil páginas, três volumes, da Revista Otolaringológica de São Paulo.
Na sessão de encerramento dêste esplêndido congresso, Mário Ottoni fêz uma súmula geral de todos os trabalhos apresentados, externando generosa e cavalheirescamente o seu elogio.
E, após as suas palavras de encerramento, tive de pedir autorização para pronunciar o que se segue e que faço questão de repetir:
"Antes de encerrada a sessão, desejava que se me permitisse lembrar um nome que, pelas circunstâncias, não foi citado pelo Presidente, um nome que vejo aflorar aos lábios de todos: o de Mário Ottoni. Não devemos apenas salientar o valor de seu trabalho relativo à operação de Lothrop-Sébileau no tratamento das sinusites frontais. Devemos sobretudo não esquecer que êle soube estar à frente de tudo quanto se realizou neste congresso. Discutiu grande número de trabalhos, e, como especialista culto e consumado, como uma das figuras de mais relêvo da especialidade no Brasil, que sem favor o é, trouxe sempre o brilho de sua palavra e a ponderação de sua experiência às observações e estudos aqui lidos, estimulando em particular os especialistas novos.
Como há dez anos, foi talvez a única pessoa a providenciar tudo. Só um homem de grande atividade, de grande prestígio social e sobretudo de grande prestígio em sua classe, podia levar a têrmo o trabalho hercúleo que Mário Ottoni realizou.
Creio, pois, exprimir os sentimentos de todos os congressistas, agradecendo o muito que devemos ao organizador da Segunda Semana de Otorrinolaringologia."
Os que foram testemunhas daquele grande congresso, os que me conhecem de perto, sabem que minhas palavras não exprimiam, de nenhum modo, a simples intenção de ser agradável, de fazer uma declaração puramente social. Era, o que eu disse, a verdade. Nas minhas palavras o que havia era justiça.
Mas Mário Ottoni não dormia sôbre as glórias da véspera. Em 1933 reunese ao seu - e nosso - velho amigo Homero Cordeiro e tem a coragem de fundar a Revista Otorrinolaringológica de São Paulo, repositório, durante 36 anos, das atividades de nossa especialidade no Brasil. Passou a nossa revista por crises terríveis, quase desapareceu, mas ressurge agora, nas plagas gaúchas, e trará, na sua nova vida, nas primeiras páginas do primeiro fascículo, estas palavras que hoje pronuncio e que ficarão para sempre, para mostrar aos pósteros, o grande e notável especialista que em vida se chamou Mário Ottoni de Rezende.
Ao completar os 70 anos deixou a chefia da Clínica Otorrinolaringológica, que passou às mãos de José Eugênio Rezende Barbosa. A Revista Brasileira de Otorrinolaríngologia - que era a mesma de São Paulo fundada em 1933, dedicava uma notícia encomiástica, redigida por Homero Cordeiro a Mário Ottoni.
Com grande surprêsa de todos nós, Mário Ottoni afastou-se da clínica. Nunca me conformei com isso. O guerreiro audaz e altivo ensarilhava as armas. Não mais comparecia a reuniões de nossa especialidade. Sua presença fazia falta nos congressos. Dedicaria os derradeiros - e felizmente muitos anos de sua vida a outras atividades. Esta a sua falha.
Médico, médico mesmo, vive médico e morre médico, como aquele afamado cirurgião de Campinas, Hermas Braga, que, quando o coração começou a falhar e os colegas lhe exigiam restrições de várias naturezas, dizia e repetia "Quero morrer de avental!" E cumpriu a palavra.
Êste astro luminoso da nossa especialidade, o Prof. Justo Alonso, aos 86 anos ainda opera uma a duas laringectomias por semana.
Mário Ottoni não quis, porém, continuar sua tarefa de mestre. Tôda aquela vastíssima cultura da especialidade, tôda aquela imensa prática adquirida por anos e anos de trabalho intensivo, êle não mais as quiz emprestar ou dar aos outros, aos jovens. E quando veio a tombar para sempre, não o conhecia a nova geração, da qual êle se afastara.
De certo não quiz trilhar a estrada a que Carrel, o incomparável Carrel, nas suas "Reflexões sôbre a conduta na vida"; se referia com tanta alma. "A estrada alteia-se lentamente com o perpassar dos anos. No decorrer da viagem, muitos submergem nos pântanos, caem nos precipícios ou se deitam na relva tenra à margem do regato e adormecem para sempre. Na alegria eu na dor, na prosperidade ou na miséria, na saúde ou na doença, devemos, de qualquer modo, continuar a empregar nossos esforços; levantar-nos após cada queda; adquirir pouco a pouco a coragem, a fé, a vontade, o espírito de cooperação, a capacidade do amor; enfim, o desprendimento."
Mas êste resto de vida em que Mário Ottoni não estêve mais ao nosso lado, não continuou ligado à carreira a que dera tanto brilho, não diminui o valor do gigante que êle foi, dando tudo, do melhor que tinha, à otorrinolaringologia no Brasil. Pôr êsse motivo - insisto em deixar isto bem gravado - seu nome jamais será esquecido. Ële foi um dos baluartes da especialidade em nosso país. E em São Paulo, em sua época, o maior de todos.