Ano: 1943 Vol. 11 Ed. 4 - Julho - Outubro - (9º)
Seção: Notas Clínicas
Páginas: 464 a 469
FRATURA DO ROCHEDO - PERÍCIA MÉDICO - LEGAL.*
Autor(es): ARISTIDES MONTEIRO
OBSERVAÇÃO CLÍNICA
Em junho deste ano, somos chamados a examinar a pedido do Juiz da Vara de Acidentes, ao Sr. A. Q. A., de 19 anos de idade, branco, brasileiro, solteiro.
O doente revela que no dia 13 de fevereiro de 1941, precisamente um ano e quatro meses antes, trabalhando num avião em terra, numa altura de cinco metros, perdera o equilíbrio caindo ao solo. Desacordado é conduzido para uma Casa de Saude, onde permanece um mês. "Sentia a cabeça oca, os ruidos externos incomodavam-no muito, fortes dores de cabeça, zumbidos, tonteiras. Tinha de apoiar-se para não cair. Foi para o interior porem de volta um mês depois novamente recomeçaram os seus sofrimentos. Desde este momento instalou-se uma surdez que aumentou aos poucos". Tratou-se com alguns médicos e por fim a Companhia onde ele trabalhava, enviou-o a um especialista que aconselha afastá-lo do serviço, (mecânico da aviação) e evitar os lugares de ruido. Durante alguns meses não pode trabalhar, finalmente quiz a Companhia, considerá-lo um simulador, assinar um acordo, no qual segundo ele declara era prejudicado, sendo assim, apelou para o juiz de Acidentes que no-lo enviou.
No dia que o examinamos, acusava "fortes dores de cabeça, não escutava do ouvido esquerdo, apresentando zumbidos e tonteiras". Além destes sintômas descritos pelo doente notamos a sua falta de atenção, sendo necessário fazermos mais de uma vez a mesma pergunta, afim de obtermos uma resposta satisfatória. É conhecido o sindromo post-comocional de Piérre-Marfe e Bahague, que se observa nos traumatismos da cabeça, onde predominam a cefaléia, a vertigem e a falta de atenção. Um ano e quatro meses após o acidente, toda a sintomatologia do sindromo ainda é presente. Diante deste fato e para tirarmos qualquer dúvida a respeito, pedimos uma radiografia do rochedo em posição de Stenvers e uma estereo do mesmo. O radiologista além destas ainda fez uma posição de Hirtz. A estereo porém evidenciou no rochedo, um ano e quatro meses após, o traço de fratura ainda visivel, sainete mudo do que ocorrera tanto tempo antes -- (veja-se radiografia anexa). O resultado dado pelos Drs. Vítor Rosa e Claudio Bardy foi o seguinte: traço de fratura linear do ocipital esquerdo com irradiação para o rochedo do mesmo lado.
Examinamos o doente no dia 3 de Junho de 1942, precisamente um ano e quatro meses incompletos após o acidente. A otoscopia nada evidência de anormal. O exame da função auditiva foi realizado em Audiometro 6 B da Western Eletric, que revelou unia acentuada perda aérea de sons, graves e agudos para o ouvido esquerdo, lado da fratura do rochedo. A condução aérea para o ouvido direito é normal. Onde porém a função é por demais tomada, é na condução óssea, que se encontra praticamente desaparecida, conforme se poderá ver pelo gráfico anexo, (é projetado o gráfico audiometrico do paciente.) A prova de Schwabach é assim indicativa de uma lesão de nervo acústico em conseqüência do trauma do rochedo. Interessante é que do lado são, o direito, houve também comprometimento do nervo acústico, que se encontra bastante reduzido na sua percepção auditiva.
As provas de exame do labirinto (prova rotatoria de Barany) mostravam uma excitabilidade normal à direita, com o limite mínimo de 30". O doente acusa ainda tonteiras, zumbidos, e sensação de cabeça pesada.
O nosso laudo pericial terminava com as seguintes palavras: " pelo exame que acabamos de descrever é patente que o paciente está, em conseqüência do traumatismo, com uma surdez mixta à esquerda, nervosa à direita, e pelos sintomas apresentados, qualquer uma das perturbações possivelmente será permanente: sobreleva notar que examinado o paciente um ano e quatro meses após o acidente, ele conserva um grau de surdez que dificilmente será mudado. O nervo vestibular está isento do trauma, pais que as diferentes provas assim o demonstraram".
"O doente apresenta além disso, segundo o nosso pensar, uma comoção labiríntica, ainda que duradoura, em que pese a opinião contrária de Uffenorde (Passow Beitrag, XXI 292, 1942), pois segundo Bruhl (ap. Passow) os sintomas labirínticos devem desaparecer um ano após o acidente, o que não se deu no nosso caso.
Diante do que acabamos de analisar, aconselhamos que o paciente não seja designado para trabalhar em lugar barulhento, ficando-lhe vedado até ulterior exame, qualquer coparticipação na direção de aviões. O ouvido esquerdo do paciente está praticamente perdido, tanto para os sons agudos como para os sons graves, ficando evidenciado desta maneira uma surdez completa; e no outro ouvido, o direito, verifica-se nina surdez de percepção de grau total. Para o convívio social o paciente dispõe somente de cincoenta por cento de audição de um só ouvido.
De acordo com as leis de Acidentes do Trabalho, Tabelas de Indenizações, o nosso paciente está enquadrado no n.° 48, índice 5 para o ouvido esquerdo; para o ouvido direito junte-se 10%, visto ainda conter esse orgão, 50% de capacidade auditiva".
Dois pontos importantes temos que considerar depois do que acabamos de expor. Primeiro o ponto de vista social, pois, si não fora o nosso pedido de radiografia, satisfeito por técnicos consumados, jamais o doente teria ganho a questão com a Companhia; por isso que a simulação era um dos argumentos baseados por esta, dizendo que a surdez que sobreviera mais tarde nada tinha a ver com o acidente, sendo o tipo "surdez média do ouvido", conforme diagnóstico do colega então consultado. A esterco-radiografia que pedimos veio esclarecer este ponto, pois um ano e quatro meses após, ainda era visível no rochedo o traço de fratura. Com este resultado conseguiu o paciente melhoria no processo de indenização, e teve ganho de cansa.
Outro ponto de vista e para nós também importante é o lado cientifico da questão. De há muito que assistimos no Serviço do Dr. Maria Jorge no Hospital Central de Acidentados aos traumatismos de cabeça, e casos os mais bizarros temos verificado, pretendendo publicar mais tarde a nossa experiência a esse respeito. Este porém pelas suas peripecias é dos mais dignos de registro. A seu respeito vamos fazer algumas considerações.
O nosso paciente sofreu uma fratura transversal, exatamente dos três tipos clássicos o menos encontradiço. Voss (Z. Hals. usw Heilk. 35-483, 1934) em 63 casos, de fratura do rochedo para 46 longitudinais, encontrou: seis transversais; outras estatísticas também confirmam este achado. O mais comum é que elas se realizam ou por irradiação, ou por continuidade como foi o nosso caso, pois as independentes são muitíssimo mais raras.
Verifica-se às vezes, somente uma fratura da cápsula do labirinto neste caso o exame macroscópico nada revela (caso de Steurer), tão somente o fazem o raio 1 e a histopatologia que mostram a extensão e o local atingido. O ponto de eleição para este gênero de fraturas é a porção infravestibular da rampa timpanica, perto da janela oval. Como conseqüência deste fato, temos as hemorragias do VIII par, da rampa timpanica do caracol e da mácula acústica, persistindo a surdez e os zumbidos, havendo o que se chama uma comoção labirintica.
No nosso caso como se poderá ver na radiografia, o traço de fratura localizou-se na ponta do rochedo, ficando-se admirado que, na época do traumatismo, o facial do paciente não tenha sido atingido. A hemorragia que se produziu no momento do acidente deve ter sido a responsável pelo comprometimento do acústico.
A observação mostra que toda a vez que há uma fratura de base da pirâmide, o labirinto é severamente atingido.
Pode-se verificar então uma fratura do caracol, caso de Hoffmann (Z. Ohrenh. 75-73. 1917) ; um arrancamento do coclear, caso de Ulrich (Acta Laryng Supl. 6-103, 1926) ; um choque compressivo sobre a endo ou, a perilinfa, ocasionando uma comoção do labirinto, caso de Wittmaack (Arch. f. Ohren 131-59, 1932) ; todas estas observações terminaram com uma surdez total traumática.
Urbantschitsch (Arch. f. Ohren, 16-170, 1880) - tratou de criança de 9 anos que se tinha chocado no frontal com outra de 10 anos. Apareceram perturbações de equilíbrio que se foram. No 9.° dia depois do acidente ficou a criança súbita e permanentemente surda. Houve diz o autor uma hemorragia no territorio do 4.° ventrículo ou na medula oblongata. Deve-se pensar também uma hemorragia no núcleo do acústico.
Como justificar que ano e quatro meses após o acidente ainda houvesse o traço de fratura que deu ganho de causa ao nosso paciente?
Certos autores são de opinião que as fraturas do rochedo e mesmo as do crânio consolidam muito lentamente, terminando muitas vezes com um calo ósseo incompleto ou mesmo um calo puramente fibroso. Estas consolidações incompletas e estes calos viciosos, são freqüêntemente responsáveis por crises epileptiformes, que não raro se instalam em doentes que sofrem traumatismo de cabeça. Ramadier (Traumatisme de L'Oreille Masson, 1937) observou um caso de meningite fatal num doente que sofrera 15 meses antes um trauma: a autopsia mostrou uma ossificação mínima com um tecido fibroso, espesso, denso, aderente aos bordos da fratura.
Os estudos histológicos de Nager (Rev. Laryng. 7-832, 1935) fazem-nos conhecer a razão destes achados, isto é, a não consolidação do traço de fratura. A cápsula óssea do labirinto é composta de três camadas: uma interna endostal ; outra periostal, externa formada de osso diplóico, capaz de se reparar em caso de fratura, formando um calo ósseo, porém, muito delgado e debiscente em certos pontos, como seja a região do promontorio, e nas janelas; a terceira, a mais importante, é a camada média, encondral, mais espessa. Esta formação como todos os processos de ossificação encondral, tem a propriedade de não evolver para a ossificação laminar, ficando durante toda a vida composta de elementos embrionários ; esta parada do processo de ossificação, foi considerado por Meyer (ap. Nager) no ponto de vista biológico, como uma mortificação prematura, tanto mais que na camada encondral, não se encontram os sinais de fenômenos vitais do osso; sendo assim, ela está desprovida, em caso de fratura, da faculdade de regeneração óssea. Dai o fato observado por outros autores, da não consolidação de traços de fratura do labirinto, observados meses e meses depois.
Quando o paciente é portador duma otite média crônica o caso torna-se de prognóstico "quod vitam", bastante reservado. Si a fratura é no sentido longitudinal, então se concebe sem maiores explicações que por continuidade, a pouco e pouco, a infecção purulenta penetre até o labirinto, ou pelos espaços preformados (Barany) ou seguindo o traço da fratura, quando não acontece a própria infecção se fazer por contiguidade, pois a meningea adere fortemente ao rochedo em toda sua extensão. Nem sempre estas complicações fazem-se após o trauma. Casos há em que meses e meses após o acidente, desencadeiam-se os mais graves fenômenos meningeos, quando o médico e paciente já tinham afastado de suas cogitações todo o perigo da meningite. Nager (Acta Laryng, XIV, 127, 1930) relata um caso em que a meningite sobreveio seis meses após o acidente e recomenda que toda a vez que se observarem sinais premonitorios de seu aparecimento, deve-se fazer imediatamente a operação radical, conforme há vinte anos recomenda Voss. Apresenta aquele professor de Zurick uma estatística de oito casos de meningite tardia, desde os dois de Politzer, o de Scheibe com três semanas, até o de Klestadt, duzentos e nove dias após a fratura. Schlittler (Acta Laryng. XXIV, 213, 1936) comunica um caso de fratura de libirinto no qual 16 anos depois sobreveio uma meningite fatal. É interessante que apesar de estar o labirinto completamente apagado havia ainda restos de audição.
Armando Fernandes (Rev. Bras. O. R. L. VIII, 943, 1940) descreve um caso de fratura do crânio interessando o ouvido, com paralisia facial. O paciente, cai ao solo, batendo com a cabeça. Levanta-se, sente tonteiras, zumbidos e surdez em O. D. Ausência de estado post-comocial. No outro dia paralisia facial. Dois dias depois vai a clínica O. F. L. da Marinha, onde "se verifica existir sangue coagulado na caixa". Paracentese. Quatro dias após fazem-se duas radiografias que demonstram a "existência de uma fratura em T do lobo frontal direito, disjunção fronto-parietal e fratura do temporal direito." Nos dias subseqüêntes instala-se uma discreta supuração, cedendo os fenômenos cocleo-vestibulares. Quinze dias após a paralisia facial regrediu quasi totalmente.
No caso do autor nacional é interessante verificar na imagem timpanica o chamado hemato-timpano; em outros casos pode-se apresentar o conteudo da caixa claro e transparente, o conhecido "liquor-tympanum" de Voss (op. cit) que o observou seis vezes em casos de fratura transversal. A lesão do facial revela que o nervo foi atingido no canal de Falópio, pois ela foi imediata. Para ser lesado no conduto auditivo interno os fenômenos cocleovestibulares seriam intensos o que não ocorreu no caso em apreço. Outro ponto interessante é a infecção que se instalou dias após. Uma otite média supurada que se limitou á caixa, sem maiores complicações. Isto faz-nos supor que os traços de fratura por ventura existentes no tegmen timpani ou na parede labirintica da caixa, seriam tão pequenos que a obturação do coagulo tenha impedido a penetração do processo supurativo. Por todas estas razões o interesse do caso está diz o autor, que a fratura evolveu benignamente, permitindo ao paciente que se locomovesse; o facial regrediu rapidamente; não havendo complicações craneanas até a data da publicação (seis meses após o acidente).
O prognóstico pois de uma fratura do rochedo é sempre reservado "quod vitam". No que tange a função todas as observações tem demonstrado que o nervo acústico uma vez atingido nunca se regenera, permanecendo a surdez completa ou parcial; as perturbações labirinticas também persistem, conforme a sede e extensão das lesões. Sofrem do mesmo modo tanto o vestibular como o coclear.
Como explicar também a surdez do lado oposto ao trauma. Passow, no seu livro clássico sobre traumatismo do ouvido (Die Verletz dez Gehorganges. Berg 1905), diz que se observa esta ocorrência, porém Trautmann nega-o; Schwartz novamente afirma-o e Muller, concordando com este último, diz que uma afecção traumática do aparelho nervoso unilateral é dificilmente encontrada. Os oftalmologistas costumam explicar este fato nos seus casos, falando em oftalmia simpática, hoje, contudo esta explicação é pouco aceita mesmo entre eles.
(*) - Trabalho apresentado á Sociedade de Oto-rino-laringologia do Rio de Janeiro na sessão de 6-11-1942.