Versão Inglês

Ano:  1943  Vol. 11   Ed. 4  - Julho - Outubro - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 430 a 443

 

DIRETRIZES MÉDICAS AOS PROFISSIONAIS DA VÓZ CANTADA (*) - BIZET

Autor(es): J. G. WHITAKER (**)

BIZET

CARMEN - Segundo as estatisticas é uma das óperas mais freqüêntemente levadas á cêna. Foi cantada pela primeira vez em 1875, sem sucesso; três meses depois da estréia, faleceu o compositor que não tinha ainda 40 anos, vitimado provavelmente pela difteria. Em 1883, posta novamente em cêna, em Paris, obteve grande sucesso. O autor aproxima-se ligeiramente de Wagner, mas todo o arranjo instrumental e a própria composição indicam que Bizet sofreu apenas a influência italiana e é um erro estabelecer um paralelo entre os dois mestres. Só na linha melódica o compositor francez lembra em certas partes, o alemão, mas naquele a linha melódica, o motivo, só se encontra em uma fração da melôdia, o que absolutamente não se dá com Wagner. Na música, como especialmente no canto, Bizet segue rotas novas: deixa de pôr em primeira plana a música somente, ou a melôdia somente, procurando fazer com que os trechos cantados estejam intimamente ligados ao enredo e ao caráter, ao que se passa em cêna, em fim.

Logo no início do primeiro áto assistimos á entrada da Micaela, encarnação da Mulher boa e nobre, em contraposição a Carmen, de caráter diabólico e sensual. As cênas sucedem-se com brilho e animação. Quando Carmen aparece e com calculada coqueterie canta a "Habanera", sabe encobrir com muita graça o sensualismo que exprime. A "Habanera" é uma canção do folk-lore espanhol. Nela se retrata excelentemente o caráter de Carmen, que canta esse trecho, ora em modo maior, ora em modo menor, mutações que significam sua inconstância no amor, assim como a astúcia e sobretudo suas intenções de seduzir. Quando ela regressa á fábrica de cigarros e José canta "Le parfum en est fort et la fleur est jolie!" deve ele exprimir com a entonação de sua vóz que o amor por Carmen já o tomou inteiramente.

Vem em seguida Micaela, cuja entrada é assinalada por mudança completa do caráter dramático da música. O dueto entre ambos deve ser cantado com o mais terno lirismo. Este trecho é tão caraterístico que muitos empresários o consideram como pedra de tóque para a escolha das vózes dos respetivos personagens. É sabido que o compositor dedicava profunda afeição á sua mãe. Nesse trecho de canto deu expressão abundante a seus sentimentos filiais. A cantilena movimenta-se no final, mas sempre com comedimento.

Segue-se curta cêna entre Carmen e Zuniga. O final do primeiro áto é coroado com a "Seguidilha" de Carmen, colocada como um pendant á Habanera. A emissão de vóz, na seguidilha, deve ser tal, que, conjuntamente com a mímica e com os requébros exerçam influência sobre José.

Segundo áto. É uma descrição musical do meio ambiente; o canto, especialmente, reflete a alegria nos prazeres. Conhecida é a "Chanson bohéme" de Carmen ; com os seus "Trá, lá, lá", ela bem exprime arrogância, audácia e zombaria.

Destaca-se grandemente a canção do "Toureiro", composta para barítono dramático que disponha de tons graves. Tudo no toureiro é mais pose do que verdadeiro heroísmo : o que Escamilo procura é impressionar pela aparência e provocar entusiasmo com suas bravatas. Antes de sair, deixa entender como entre ele e Carmen surgiu contáto intimo.

Segue-se Quinteto dos contrabandistas, um dos pontos culminantes da partitura e uma obra prima de composição. Os cantores que nele tomam parte devem saber transmitir a atmosfe-
ra de sigilo, de artimanhas refinadas, de conseqüências imprevisíveis, tal como a que deve realmente existir entre tal gente. Não é fácil e exige muita técnica de canto.

Ouve-se então, por trás da cêna, a vóz de D. José que entoa a canção do "Dragão de Alcalá". Foi escrita sem acompanhamento com o propósito expresso de distingui-la das cênas anteriores. Depois que D. José aparece na cêna. Carmem canta e dança, acompanhando-se de castanholas, numa demonstração de graça e arte de seduzir. Este "intermezzo" é uma continuação da habanera e da seguidilha.

Vem em seguida a chamada "A aria da Flor" de D. José, que obrigatóriamente tem de ser expressa em franca cantilena. Seu fim não é efeito teatral, mas dar expressão a um amor puro e profundo. O final em sizbemol (si agúdo) foi escrito em pianíssimo por Bizet. E deve ser bem observado o pianissimo para que o trecho obtenha efeito desejado. Entretanto são poucos os cantores capazes disso, dai essa passagem ser cantada "forte" mesmo por bons cantores. Não deve ser gritada, porém; o "forte" deve ser metálico e, quando possível, passar para o "piano".

A cêna seguinte, que é uma discussão com Carmen, deve ser cantada por ambos com caráter dramático sobretudo no trecho culminante, em que José ergue a espada num gesto de revolta contra seus superiores. Depois do trecho em que Carmen se dirige a Zuniga em tom de mofa "Bel officier, bel officier, l'amour vous joue en ce moment un assez vilain tour!". O final se dá com belo canto irônico e zombeteiro de dois dos contrabandistas.

Terceiro áto: Primeiro um bélo "intermezzo", que anúncia novas situações. Em seguida o "Terceto das cartas": Frasquita, Mercedes e Carmen. Contraste encantador entre o cantar das duas primeiras, que exprime uma maneira leviana de encarar a vida, e o de Carmen, que deixa transparecer o fatalismo. E é nesse trecho que fracassam todas as interpretes de Carmen que sejam sopranos típicas (mesmo talvez a Sra. Jeritza, de quem falamos atrás). É que o trecho exige um meio-soprano escuro ou mesmo um contralto, de acordo, aliás com a impressão do momento quando Carmen lê nas cartas de baralho sua morte próxima. As sopranos em lugar de- ré1bemol, que corresponde á ultima palavra da frase "Ensuite lui... pour tous les deux, la mort!", cantam -ré' (ré natural) transpondo de meio tom para cima toda a frase seguinte (En vais pour eviter... Encor! Encor). Em seguida a cêna com Micaela; novo e forte contraste com os acontecimentos que precederam há pouco. O canto de Micaela, que era lírico no I áto, passa agora a ser dramático. Este trecho ("Cest des contrabandiers le refuge ordinaire") se presta muito bem como pedra de tóque para se aquilatar das qualidades de uma boa soprano lírico-dramático.

O final do áto é considerado por muitos críticos como o ponto culminante da ópera. Assistimos á grave desentendimento entre Carmen e D. José em contraste com a maneira branda e, socegada de Escamilo - atitude essa simulada como sempre. Outro contraste logo se estabelece com a entrada de Micaela, que vem trazer a José a notícia da morte de sua mãi. José dá vasão á sua dôr; o trecho não deve ser gritado, para nada perder do seu efeito; a tonalidade geral da passagem deve ser conservada.

Quarto áto. A música, como que descreve a alegria e as delícias de um dia ensolarado. Nesta altura da ópera percebe-se claramente a intenção do compositor não só de destacar nitidamente uma cena da outra, como de conseguir efeitos com "música decorativa", não de maneira rebuscada, mas com pura arte...

O dueto com Carmen é de um lirismo portentoso. É necessario ter em conta que Carmen, ao contrario do que acontecia nas suas aventuras anteriores, agora ama realmente a Escamilo, de modo que este trecho deve ser cantado com mais "nobreza" e posto em contraste com o ritmo malicioso das outras passagens.

No dueto final entre Carmen e D. José é preciso que ambos os interpretes estejam deliberados a produzir uma boa ensenação digna de artistas. Assim, o canto de José deve inicialmente traduzir intenções pacíficas. O trecho correspondente é, por isso, quasi uma cantilena. A repulsa de Carmen, porém, tira ao cantar de José todo lírismo; tornando-o progressivamente inquieto. Carmen deixa-se facinar pelo cântico marcial que, atrás do palco, anúncía a vitória do toureiro, de modo que o dueto vai adquirindo um "tempo" cada vez mais agitado, até que as palavras não são mais cantadas e sim faladas. Só depois que José prostra Carmen morta, ha um retorno ao lírico-dramático no trecho final (" c'est moí qui Vai tué ! Ah ma Carmen adorée !") que José canta em cantilena.


R. WAGNER

Quando se estudam as óperas de Wagner é preciso não perder de vista a afirmativa do grande mestre, de que a música, por mais bela e rica que seja, não deve ser ouvida nem levada em conta quando executada apenas por orquestras e sim quando esta estiver intimamente ligada ao Drama, num conjunto harmonioso. Isso refere-se sobretudo ás vozes. Nas óperas de Wagner ha fusão completa das vozes, da orquestração e do drama num todo e o modo porque o conseguiu é um dos traços do seu gênio .

Laringes que possam ser postas em condições de quasi igualdade com os instrumentos de uma orquestras têm de ser orgãos obustos e só se encontram naquelas constituições endócrinas que Maranon designa como estáveis e cujo timbre vocal tende para o grave. Realmente Wagner não escreveu para vózes muito agúdas, nem para profundos. O feitio mesmo da sua música e a sua intuição genial, talvez, orientaram-no de modo a evitar os dóis extremos da escala vocal humana. No "Parsifal" encontra-se uma ilustração disso: o protagônista "Parsifal" (tenor) canta um total de 12 minutos em toda a ópera; o peso desta recai sobre três baixos, sobretudo sobre Gurnemanz, que canta um total de 50 minutos nas 31 vezes em que se faz ouvir (ver atrás o que dissemos sobre os baixos e barítonos nas óperas de Wagner).

Além dessas qualidades vocais especiais, as óperas de Wagner exigem, em alto grau, musicalidade e compreensão cênica, compreendendo-se assim a dificuldade sempre encontrada no recrutar artistas para os seus elencos. Mesmo os bons artistas nem sempre dão conta de seus papéis integralmente e daí os cortes que freqüêntemente sofrem as partituras.

Para se aquilatar da voz de um artista, cantando Wagner, é preciso ouvi-lo bastante tempo, ao passo que Verdi, por exemplo obriga seus interpretes a darem prova imediata do que sabem de canto.

Outra circunstância a ser considerada nas óperas de Wagner é a época em que foram escritas, e isso com referência especial ao "Tannhauser" que encerra muitas inovações musicais
e vocais. Na segunda ópera que compoz, o "Navio fantasma" (Der fliegende Hollander, que apareceu logo depois da primeira, "Rienzi") introduziu Wagner, um cunho romântico que acentuou mais na sua terceira composição, que foi o "Tannhauser". Esta ópera destaca-se singularmente das óperas do velho estilo, antes de mais nada por apresentar em definitivo a técnica do "motivo", da linha melódica. A música da "Bacchanal" no reduto de Vennus (I áto) é realmente excitante, quasi erótica, com sua rapidíssima linha melódica dada pelos violinos em "tremolo" é a expressão musical exata de uma alegria violenta, mas como que abafada, por ser culposa. A música magestosa do "Coro dos Peregrinos" (III áto), tão justamente popular, é expressão, igualmente exata da alegria jubilosa sentida pelos penitentes, que, absolvidos em Roma de suas culpas, revêm agora com corações purificados, seus rincões queridos.

O "contraponto" - arte de combinar melôdias - é a essência mesma das composições de Wagner, mas é nesta ópera que ele atinge ao sublime. Na morte de Tannhauser (III áto), que só á última hora e pelo sinal do florescimento do seu bordão de peregrino, recebe o perdão de uma vida pecaminosa junto á propria Venus, as melôdias tão completas, mas tão opostas, da bacchanal e do côro dos peregrinos, são associadas magistralmente, como que significando um derradeiro exame de toda a vida, um exame de consciência. Podemos ainda assinalar nesse trecho - que em si é uma obra prima (final do III áto e da Ouverture) - o elevado realismo, bem diferente do que encontramos na "Tosca" de Puccini. Entretanto esse cunho elevado não sé encontra nas óperas que mais fama tem trazido a Wagner (Ouro do reno, Siegfried, Walkyria, Crepusculo dos deuses, que constituem o "Anel dos Niebelungen", a Teatralogia tão falada) ; para isso contribuem não só o fato de terem sido inspiradas na mitologia escandinava como o de terem sido compostas no periodo mais incerto da atribulada vida do genial musico. Realmente outro aspécto tem "Os mestres cantores", que compôs em dias menos tormentosos, e a sua última criação, "Parsifal", terminada um ano antes de falecer (em Veneza, 1883) é nitidamente de uma religiosidade quasi católica.

No I áto de "Tanhauser" ha o grande dueto entre Venus e Tanhauser. Para este (tenor dramático) existem logo no início alguns trechos difíceis, até mesmo perigosos no que diz respeito ao canto, por ex. "... den Halm seh' ich nicht mehr... die Nachtigall hor ich nicht mehr". . ., trechos esses que andam pelas alturas do fá2, o que não é fácil pela duração. Mais fáceis são as três canções de júbilo e amor que Tanhãuser canta e que terminam, todas três com as palavras "O Konigin ! Gottin ! lass' mich ziehen !" ; essas palavras finais freqüêntemente são difíceis de cantar com a enfase necessária por estar já o cantor cantado pela canção de amor, que exige muito esforço, e por isso uma dessas canções pelo menos é suprimida nas representações. No final do dueto a exclamação (de T'anhauser) "Mein Heil ruth in Maria!' (minha salvação está em Maria (Santíssima) deve ser entoada com toda convicção e vigor: trata-se apenas de um lá2 - que corresponde á vogal i de Maria- mas justamente e precisamente durante a emissão daquela nota dá-se uma mudança brusca de cenário, tendo o cantor necessidade de dominar com a vóz não só o barulho resultante dos maquinismos em movimento, como também a massa orquestral, que nesse momento toca em fortíssimo.

O papel de Venus costuma ser cantado por soprano dramático. Quasi sempre as contraltos, que esperimentaram cantar esse papel, fracassaram por não dispor de agúdos que a partitura
exige para ele. Por outro lado uma soprano de vóz agúda também não serve, porque o papel exige graves. Na verdade o todo do papel de Venus é adequado para uma soprano dramático, mas Wagner exige notas do registro lírico, como por exemplo no trecho: "Geliebter, komme ! Sieh ! dort die Grotte, von ros'igen Düften mild durchwallt". Em compensação outros trechos "Zieh ! hin ! Wahn betõrter ... Verrãter," " ... kehr ! wieder mir, suchst einst du dein Heil !" exigem um canto positivamente no registro dramático bem caracterisado. A emissão vocal nesses trechos deve ir num crescendo contínuo e todo cantor sabe que esses crescendos se tornam mais difíceis quando as notas que marcam aquelas subidas de tom, estão colocadas em seqüência e aproximadas. É o que acontece com o papel de Venus e daí a conhecida dificuldade de sua interpretação.

O "Ouro do Reno" é o introito da teatrologia que compõe o "Anel do Niebelungen", e como tal seu lugar é proeminente nesse conjunto de óperas. Apesar das mudanças nas situações, Wagner manteve, para as quatro partituras do "Anel", unidade vocal para cada um dos artistas.

O preludio de "Ouro do Reno" descreve, em MI1bemol (mi bemol da contra oitava), a Criação e os tempos primitivos. A calma magestosa desse mi profundo é completada por variações
sobre o abismo infindável de caos inicial, para em seguida dar lugar a um movimento flutuante (linha melódica das ondas, etc.) a sensação auditiva é realmente a que seria produzida pelo ondular das águas do Reno. Ao levantar da cortina cantam as "Filhas do Reno", que tem a seguir exatamente a linha melódica da música, e por isso mesmo a emissão da vóz deve ser graciosa, leve, ondeante, mantendo, entretanto, calma magestosa. Esse canto das três filhas é logo interrompido pela entrada em cêna de Alberich.

A atuação desse personagem é nitidamente dramática, o que exige que sua vóz tenha também este caráter. No começo da ópera ele executa apenas um canto falado, mas no desenvolvimento da peça seu cantar é alternadamente lírico-dramático mas desenvolvendo bons agúdos : em suma, este papel exige de quem o interpreta, grandes conhecimentos de canto e música. No começo da sua atuação, o canto de Alberich tem ritmo pontuado, bem nítido em certos trechos, de modo a fazer um vivo contraste com o canto precedente das filhas do Reno. Acompanhando seu resvalar nos rochedos do rio, a sua vóz, igualmente, deve-se deslocar em muitos trechos. Isso é de execução bem difícil e deixa com freqüência a impressão de cantar mal. Para evitar esta impressão desfavorável, o trecho deve ser cantado no ramo pontuado, a que nos referimos e isso nitidamente pontilhado.

No canto que executa com as filhas do Reno são vários os temas que orientam as melôdias, como o do anel, o da desistência ao amor, e o do Reno, este o mais característico de todos. Chega depois o momento em que Alberich, num momento de agilidade, galga o rochedo sobre o qual luzia o ouro do Reno e dele se apodera na presença das atemorisadas filhas do Reno. Ha aí um trecho de cunho puramente dramático: "Das Licht lõsch' ich euch aus, entreisse dem Riff das Gold, schmiede den rãchenden Ring; denn hor' es die Fluth : so verfluch ich die Liebe !" Em cada tom isoladamente deve-se perceber a violência com que o amor (repelido) é amaldiçoado. É que as filhas do Reno não podiam acreditar que o amor fosse assim despresado, e por isso nadavam despreocupadas nas visinhanças do rochedo: deixaram-se enganar por Alberich e assim perderam o ouro do Reno.

Intermezzo musical. O cenario do II áto representa montanhas, tendo ao fundo o castelo de Walhall e tem como personagens iniciais Wotan e Fricka. Depois de algumas frases, Wagner faz seu Wotan cantar o belo trecho: "Vollendet das ewige Werk!". Nesses vinte compassos a vóz e a música devem exprimir o mais alto poderio e magnificência da Terra, que são representados por Wotan.

Nesta altura temos que recordar e ampliar o que dissemos atrás acerca das vózes de baixo nas óperas de Wagner. Nas partituras originais de Wagner e nas primeiras edições para piano somente, encontra-se o papel de Wotan assinalado para a vóz de baixo. Várias tentativas para entregar esse papel a um baixo profundo, falharam porque ha várias passagens que se mantem nos agúdos, o que faz com que aquela qualidade de vóz não aguente desempenhar até o fim o papel. Uma destas tentativas foi feita pelo grande baixo austríaco Richard Mayr (falecido em 1935), que dispunha de bons agúdos: depois de estudar, cantou poucas vezes o Wotan de Rheingold, mas sentindo logo cansaço vocal e geral que perdurou algumas semanas, desistiu do papel. (Nota acessoria : outros personagens de Wagrier, como o Hans Sachs, nos "Mestres cantores", depois de algumas tentativas, verificou-se não poderem ser cantados por baixos profundos. O mesmo R. Mayr experimentou ainda cantar o Kezar da "Verkaufte Braut" do tcheco Smetana, e ainda uma vez teve de desistir. Dessas tentativas ve-se claramente que certos papéis só se adatam a determinado tipo de vóz, e que não se pode forçar a natureza a seguir um rumo forçado sem fracasso. Ha raras exceções, talvez, mas citámos o caso de Mayr por ter sido esse artista dono de uma vóz notavelmente boa, que conhecemos em varias temporadas na Ópera de Viena).

A conclusão é pois que o Wotan não é para ser interpretado por um baixo e sim por barítono dramático, que tenha ao mesmo tempo bons graves e agúdos sonóros. Exatamente o mesmo se aplica para o Wotan da "Walküre" e o Wanderer-Wotan de "Siegfried". Nos outros papéis Wagner não deixou de incluir, no canto dramático, numerosos trechos líricos, embora esses mesmos trechos tenham grande vigor dramático. Por isso é que cantores italianos - haveis em extremo em realçar a parte lírica dos papéis que interpretam - freqüêntemente cantam com sucesso (na Europa central) os Wotan de Wagner.

Logo depois do canto inicial de Wotan vem o dueto com Fricka sua esposa, no qual ha uma série toda de "motivos", temas, que dão oportunidade para uma demonstração do que deve ser o canto falado em conversação. Aparecem, depois, os grosseiros gigantes, que vem reclamar o pagamento ou recompensa pela construção do castelo de Walhall. O motivo musical que os acompanha é impetuoso, de modo que seu cantar deve se-lo igualmente. Entretanto mesmo nessa altura há trechos puramente líricos, que recaem de preferência sobre o gigantesco Fasolt, sobretudo na frase: "Ein Weib zu gewinnen, das wonnig und mild bei uns Armen wohne", que o baixo deve cantar com muito calor e lirismo. De permeio cantam ainda dois outros deuses. Froh e Donner; são apenas algumas frases, o que não impede que esses papéis tenham bastante individualidade. Por fim entra em cêna Loge, o deus do fogo, que tinha assumido com Wotan o compromisso de arranjar dinheiro com que pagar os gigantes pela edificação do castelo de Walhall. O seu cantar, além de modulado pelo tema que lhe leva o nome (Logemotiv) e que se caracterisa pelas ocilações cromáticas que procuram reproduzir as de uma chama, deve impressionar permanentemente o ouvinte com a sensação de um rebrilhar instável e meio sibilante de fogo vivo. É um papel extremamente difícil de cantar, e que exige também qualidades cênicas fóra do comum. O seu ponto culminante está no "Recitativo" de Loge (tenor) ("Immer ist undank Loge's Lohn, em portugues "Loge sempre recebe ingratidão como recompensa".) Apesar de não ultrapassar o fá l, este trecho é dificil porque se movimenta sempre pelos médios como por exemplo na frase" ... als Ersatz zu muthen dem Mann für Weibes Wonne und Werth!" e nesta outra "Erd und Luft, lassen will nichts vom Lieb' und Weib", que se conserva na latura do fá1. Seguem-se uns poucos de trechos líricos, bem agradáveis, cantados por Fricka e também por Loge. Os gigantes, em vez que se lhe recusa o ouro, passam, então a exigir a posse da deusa Freya que tem o poder de distribuir a juventude e conservá-la, mesmo entre os deuses, fazendo comer da sua maçã.

A música passa, em seguida, a acompanhar Wotan e Loge na viagem que empreendem para a gruta de Nibelheim. Ouvese o tema dos ferreiros com o ritmo inconfundível das bigornas
e logo depois os queixumes do anão Mime que está sendo castigado pelo outro anão. Alberich. O papel de Mime é típico para tenor-buffo, mas com muito de lírico, tanto no "Ouro do Reno" como no "Siegfried". Esta espécie de vóz só encontra papéis condigno nessas duas óperas de Wagner, pois que nos outros compositores tem de se contentar com colocação despresível. O papel de Mime, sobretudo o Mime no "Siegfried" exige grande caracterização e muito lírismo no canto; é um papel difícil, de responsabilidade. Outros papéis de tenor-bufo: o David nos "Mestres cantores"; o timoneiro no "Navio Fantasma"; Jorge na ópera de Lortzing "Der Waffenschmied".

No "LOHENGRIN" é interessante o papel de "Elza" para soprano lírico-dramático, a vóz tipicamente feminina. O trecho que ela tem a cantar logo no primeiro áto (2 a cena), é a narração de um sonho, é uma pedra de toque que põe logo á mostra o valor da artista, sobretudo para esse papel. O que ela canta não representa propriamente uma resposta á pergunta do rei, é antes um soliloquio. Conseqüêntemente, quando ela inicia "Einsam in trüben Tagen", o ataque de vóz não deve ser muito leve, como no murmurio, mas em piano discreto. Aí já é possível verificar si a cantora sabe traduzir com sua vóz a tensão nervosa de que está possuída internamente. A narração do sonho vai se desenvolvendo com animação crescente, atingindo o seu auge com a frase" ... weit in die Lüfte schwoll". Na palavra "weit" ha um so12bemol e na primeira sílaba da palavra "Lüfte" UM lá2bemol, que devem ser cheios e dominar a orquéstra, que tóca "forte". Desse trecho em diante a narração de Elsa deve ser feita como que obedecendo a uma visão e traduzindo todo o enlevo de alma de que está possuída. Pelo modo como é feita essa interpretação, tão importante numa composição de Wagner, temos mais um elemento com que basear nosso julgamento acerca da artista. O final da narração "Du trugest zu ihm meine Klage, zu mir trat er suf dein Gebot: o Herr..." deve soar com grandiosidade, com deslumbramento. O lá2bemol (palavra "Herr") e as frases seguintes, com seus tons acentuados (marcato) e movimentando-se na região dos meios-agúdos até o la2bemol, devem ter a intensidade e a qualidade de sonoridade correspondentes á tensão emocional dessa cena. Terminada esta, já teremos, sabido muito acerca da vóz - faltando apenas aquilatar da qualidade dos seus agúdos.

Um parentesis necessário. Essa prova é feita em geral no consultório, ou em outro lugar, mas mesmo assim, si a cantora tem pretensão a grande artista, deve dar á sua vóz, aos seus gestos, á sua mímica, a mesma expressão que daria em cêna aberta e na presença dos espectadores. É importante não esquecer isso.

Finalmente quanto aos agúdos: no dueto com Lohengrin ha alguns trechos que os põem á mostra, como por ex.: "Mein Schirm ! Mein Engel ! Mein Erloser." O agúdo (lá2sustenido) de "Erloser" por exemplo, deve soar leve e cristalino.

Depois da oração do rei, que invóca o Juízo de Deus, vem o conjunto que exige da soprano dramático juvenil a posse desembaraçada de agúdos claros e vigorosos que subam, num jato cristalino, até o si2bemol. Este trecho, bem como o final do áto, que logo se lhe segue, nos informam também sobre a motilidade da vóz, especialmente - a sua vibratibilidade e capacidade de se propagar. É preciso que o júbilo resoe na vóz. O si2bemol na frase "Alles, min Alles", a cantora tem de faze-lo ouvir claramente acima do coro e da orquestra em peso.

O primeiro áto basta, assim, para o julgamento da soprano dramático juvenil. Querendo aprofundar esse juizo temos, no II áto a cena no balcão do palácio, pedra de toque para os médios e para os conhecimentos que a artista tem dos legatos suaves e dos pianos, podendo indicar si ela sabe animar seu canto transmitindo-lhe sentimentos íntimos (Es gibt ein Glück, das ohne Reu).

A discussão com Ortrud (contralto), que se segue, serve sobretudo para mostrar ao examinador si as duas vózes combinam, mormente quando é boa a da interprete de Ortrud. Fóra do teatro é preciso conseguir uma Ortrud de empréstimo, para que o confronto se realise.

No conjunto seguinte (muitas vezes suprimido) e na cena final, o examinador tem elementos para julgar da capacidade de caracterização da vóz, qualidade de não pequena significação; o enredo da ópera faz Elsa passar de uma situação de vexação extrema para o alívio indisível de uma esperança fundada.

No III áto, depois da magnífica "Marcha nupcial", que serve de introdução, ha a chamada "cena do aposento nupcial", na qual a artista pode ostentar sua capacidade de dar gradação á vóz. Insuflada pela intriga de Ortrud a curiosidade de Elsa fala apertar Lohengrin com perguntas acerca de sua identidade e a insístência crescente com que o faz, deve se refletir plenamente no seu cantar. No final ha alguns lá2, lá2bemol e si2 que devem soar com brilho radioso.


F. SCHUBERT

No delicioso genero de composições - as Lieder (36) - melôdias com que o seu gênio enriqueceu grandemente a música, Schubert ainda não teve igual. Deixou pouco mais de 600 Lieder. Para os respectivos textos, serviu-se de 82 poetas diferentes, numero elevado, que só por si demonstra que o valor literário, apenas, de um texto, não basta para a criação de uma canção: é preciso, além disso, que tenha uma feição musical que facilite sua tradução em tons. Na escolha dos textos, Schubert foi de uma segurança que só tem o gênio, selecionando apenas aqueles que verdadeiramente a isso se prestavam. Poesia, musica, e um tino infalível para a melôdia formavam um todo harmonioso em Schubert, fazendo dele um dos maiores compositores que jamais existiram. De muitas de suas canções conhecem-se algumas variantes o que mostra que ele nem sempre se satisfazia com a primeira composição, apesar da pasmosa fertilidade de seu gênio. Chamam seus críticos a atenção para o fato, realmente singular, de ter sido ele não só o criador de uma modalidade absolutamente nova de canto, como de ter expandido ao máximo as suas possibilidades.

Dois grupos de canções, as "Müller-Lieder" e as "Winterreise", geralmente as mais conhecidas, distinguem-se sobretudo pela composição lírica do canto. Elas não formam episódios conexos, porque cada uma das canções descreve seu episodio aparte; posteriormente por dedução se quiz enxergar uma trama unindo-as. Outras melôdias: O rei dos Elfos (composto aos 17 anos) ; o Sosia (des Dopplegänger) ; Serenata (Standchen).

De todos os poetas Goethe foi aquele a quem Schubert preferiu, musicando-lhe 66 de suas poesias. Foi o seu cantor, mas quando se quer insinuar preponderância a Goethe por ter fornecido o fundamento poético á edificação de "Lied", é preciso que se sublinhe que sem Schubert, nunca o Lied teria aparecido. Ambos eram gênios da mesma estrutura, mas não iguais. A singeleza criadora de Schubert tornou-lhe possível ser o cantor de Goethe ; o encontro de ambos foi um fato único pelas conseqüências, nos anais da história da música.

Apaixonado, comunicando a suas criações características muito especiais - ternura, pureza, força, grandeza de alma, reunidos em profusão como em nenhum outro compositor - Schubert foi antes de tudo um mestre no manejo da melôdia vocal.

O Lied de Schubert deve ser cantado diferentemente, dos seus sucessores, porque nele a parte vocal ocupa o primeiro plano com o belcanto como é entendido na acepção pura da palavra. Nas melôdias mais recentes (Hugo Wolf, por ex.), e nas modernas, a interpretação e a expressão ocupam lugar mais importante, ficando o canto um pouco relegado, apesar de algumas exceções talvez. Um recital de canções ou melôdias modernas chega ao ponto de não mais parecer canto e sim uma representação, ou antes um meio termo que nada tem de artístico - e desse geito, infelismente, é que as melôdias de Schubert são freqüêntemente cantadas: o canto lírico, sobretudo o de melôdias e Lieder, é uma flor delicada que exige muita cultura vocal.


CARLOS GOMES

Colocamos o nosso maestro em tão ilustre e excepcional companhia não movidos apenas por sentimentos de patriotismo. Forçado pela mesquinhez do meio nativo a completar no extrangeiro a educação musical, sua longa permanência em Milão refléte-se naturalmente em suas composições, que, algumas, apresentam um certo sabor italiano. Conseguindo, porém, não ser imitador dos grandes mestres com quem esteve em contáto, teve com isso, mérito dobrado.

Foi, mesmo, um inovador e é com esse título que o podemos apresentar com satisfação. Com efeito, sua música, que para os críticos europeus é exótica e até "selvagem", apresenta caracte-rísticos de simplicidade e, ao mesmo tempo, de grande vigor, que ele só pode ter haurído em nossa naturesa tropical (A Alvorada, no "Lo Schiavo"; a protofonía no "Guarany"). Inovador também foi Carlos Gomes no modo de tratar as vózes : em suas composições, quer sejam óperas ou canções, ha de o cantor cantar em toda a extensão de sua tessitura. Ele não se limita a compor sobretudo agúdos para sopranos e tenores, nem graves para contraltos e baixos; um soprano, por exemplo, abrange do dramático ao ligeiro e a mesma exigência tem o compositor para as outras qualidades de vózes. Por isso é que somente vózes robustas e de boa escola podem sentir-se bem nos seus papéis, que não comportam vózes medíocres. É esta mesma exigência, de desenvolver ao máximo as suas energias, que defronta o homem branco para que não seja esmagado pelo clima dos trópicos, no qual ficar de pé, é, ás veses, um sacrifício. Carlos Gomes é produto de um esforço constante de uma cultura tropical, cujo único paralélo só se pode encontrar, no Egito, há 40 séculos atrás.

O que os europeus chamavam de "selvagem", nossos cantores mostram-se propensos a considerar como música pesada, para sobrecarregar a vóz (ver á pág. 391-392 a observação do maestro Braunwieser sobre as tessituras encontradas entre nós). O qualificativo mais adequado para tais trechos é, entretanto, o de grandioso: a romanza de Giovanna (meio-soprano) em "Maria Tudor" seu dueto no I áto com o tenor e no ultimo áto com a soprano; a "Invocação aos deuses dos Aimorés" pelo Cacique no "Guarany".

Existe um ponto de contáto com as composições de Verdi e que vem a ser o emprego das subidas em meios tons para alcançar os agúdos. Na romanza de Giovanna, em "Maria Tudor" encontram-se varias passagens com esse característico ("Che Lionello a me s'apressi. . . ") (" No, no, no, il tuo labro. . . "). Entretanto o estílo é muito diverso do que estamos habituados a reconhecer no grande mestre italiano, o qual; por exemplo, faz muito uso de longas cantilenas. Estas não são freqüêntemente, nem longas, em Carlos Gomes ("O ciel de Parahyba", ária de Ilára (soprano) no III áto de "Lo Schiavo").

Outra dificuldade encontrada para a interpretação dos papéis de Carlos Gomes é a intercalação seguida de trechos dramáticos e líricos, sendo exemplo disso o papel de Cecy.

Além de Carlos Gomes, a nossa cultura pode oferecer nas composições de A. Nepomuceno e de Luciano Gallet e, em épocas recentes, número apreciável de obras para vózes - solo ou orfeão. Entre muitos compositores da geração atual devemos citar H. Villa Lobos, com inúmeras composições para coro; M. Camargo Guarnieri, que tem a maioria de suas "Lieder" ainda não editadas; F. Mignone; Lourenço Fernandes, etc...

Notáveis são o número e a musicalidade das canções populares brasileiras, nas quais se distinguem as seguintes formas: as toadas do nordeste, tão bonitas, mesmo aquelas com que pedincham os mendingos ; as rodas; o cateretê paulista, com suas cantilenas monótonas; as módinhas, também de S. Paulo; os cocos; as pagelanças; as congadas (de Portugal) ; as canções infantis. Recentemente, em um dos parques infantis da municipalidade de S. Paulo deparámos com uma lista de nada menos de 72 canções, constituindo o "repertório" da criançada, que as sabiam todas de côr, como nos certificamos escolhendo várias ao acaso. É de notar que apenas três delas foram adatações do extrangeiro (uma canção inglesa e duas canções alemãs).

Mesmo entre os índios encontram-se criações musicais interessantes, informa-nos Braunwieser, que, em tempos, percorreu boa parte do Brasil em missão oficial do Governo de S. Paulo, para o fim de estudar e colher nossa música popular. Diz ainda essa autoridade ser nosso "folk lore" o mais rico que conhece, não excetuando os da velha Europa que em tudo costuma ser modelar.

É, pois, realmente para lastimar que nós mesmos nos conheçamos tão mal a esse respeito e, mais ainda que tenham feito apenas algumas gravações de discos, para fixar certas formas, caracteristicas de canções populares, que, pela sua beleza, constituem verdadeiro patrimonio nacional. É de justiça recordar aqui o esforço dispendido por Mário de Andrade, na tentativa de interessar intelectuais e autoridades oficiais na música popular brasileira. Hoje em dia, Luiz Heitor e M. Braunwieser secundam-no nesse trabalho, tendo o último conseguido realizar uma obra notável com os parques infantis da municipalidade de S. Paulo, utilizando-se do material colhido em suas excursões, como deixamos assinalado.

Não podemos deixar de nos referir á grande variedade de canções afro-brasileiras ou mesmo africanas, que devem o seu ritmo inconfundível ao materialismo que traduzem as "umbigadas" e o "rebolar". Na origem e nos sentimentos elas nos são quasi extranhas, e, entretanto, são apresentadas como "música popular brasileira", sendo como tal impostas por certas estações de rádio a seus cantores.

A recente fundação, no Rio de janeiro, do Conservatorio Nacional do Canto Orfeonico, dotado de ótima orientação ha de ter benéfica influência no desenvolvimento do canto, especialmente do canto em conjunto, e certamente em uma seleção revindicadora.

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