Versão Inglês

Ano:  1943  Vol. 11   Ed. 4  - Julho - Outubro - ()

Seção: Editorial

Páginas: 315 a 325

 

Homenagem

Autor(es): P. MANGABEIRA ALBERNAZ

PROF. EDUARDO de MORAIS
30.03.1884 - 19.08.1943.

Foi sob o peso de uma mágua imensa, que recebemos a notícia do falecimento do Prof. Eduardo de Morais. Se os que tiveram a fortuna de conhecê-lo compreendem a amargura de seus discípulos, não podem, todavia, avaliar o quanto nos feriu Este golpe tão cruel, ainda mais cruel por inesperado. Um processo pneumônico violento, rebelde a todo tratamento e a todo desvelo, veio roubar-nos o, mestre e amigo, em plena atividade, justamente quando nós, seus discípulos, aguardávamos apenas alguns dias para coroar-lhe a fronte nobre e serena com os louros de trinta anos de magistério: magistério, que foi uma cornucópia de entusiasmo pelo trabalho, de amor à ciência, de dedicação à clínica; magistério, que foi um apostolado; magistério que foi luz ! E, no entanto, esta luz se extinguiu de súbito, no momento preciso em que discípulos, amigos e admiradores queriam elevá-la, para bem alto, onde fosse vista por todos, onde pudesse cintilar sem o anteparo que lhe tentaram sempre opor os que não lhe souberam compreender o espírito de escol, o coração cheio de magnanimidade!


Não me sai jamais da lembrança o primeiro encontro com o mestre. Foi em 1915. Cursava eu o terceiro ano médico, quando, por influência materna - esta influência que se funda no instinto precioso que possuem as mães de prever o futuro para melhor protegerem os filhos - procurei a Clínica Oto-rino-laringologica do Hospital de Santa Isabel. Perguntei pelo Prof. Morais. Veio à porta um homem alto, louro, de olhar vivo, em plena mocidade, um homem que era todo trabalho, dinamismo, energia. Tomou-me das mãos o cartão em que eu lhe era apresentado. Leu-o. Olhou-me de frente francamente, e me disse, de maneira incisiva: "aqui se trabalha. ouviu?". Não sei o que lhe respondi nem sei mesmo se consegui responder alguma coisa. Mas quanto influiu em minha vida aquela frase fria e enérgica!


Dizia-me, certa vez, um amigo dileto e colega de especialidade aqui em S. Paulo: "Fico entusiasmado; com ver como vocês se unem na defesa de seu professor; que admiração e amizade vocês lhe dedicam!" Dava o colega a entender, no elogio, que de nas era essa nobreza de sentimento. Quanto se enganava...

Era Morais um homem previlegiado. Alegre, expansivo, bondoso, mostrava-se, de outra parte, exigente e enérgico. Não admitia, a setas auxiliares, chegarem tarde, faltarem ao serviço, não disporem de tudo antes de ele chegar à clínica Nós todos o adorávamos... mas também o temíamos. Nenhum professor de meu tempo, na velha faculdade baíana, teve, junto aos auxiliares e estudantes, previlégio igual ao de que ele desfrutava, talvez Clementino Fraga se lhe aproximasse.

Suas aulas, dadas na pequena sala do próprio serviço, tinham frequência enorme, apesar de serem de uma especialidade para a qual não era exigido exame. Era comum a sala não comportar os ouvintes, muitos de outras séries, às vezes professores.

Cavalheiro na extensão da palavra, de um prestígio social jamais visto em minha terra, era, quando eu estudante, presidente dos três clubes sociais mais importântes da cidade. Era nesta época - devo frisar que faz 22 anos estou fora da Bahia - a maior clínica do norte. Trabalhava exaustivamente, mas, ainda assim, estava a par de tudo quanto era novo na especialidade. Quando em 1919, recém-formado, pensei em me preparar para o concurso de professor substituto de otorino-laringologia, ficava surpreso de ver como os artigos mais modernos das revistas americanas já lhe eram conhecidos.

No consultório cheio, a cunha, nós, seus internos, sabíamos que a maioria era tratada de graça. E, como no Evangelho, ele fazia a caridade cristã: aquela em que a mão esquerda não sabe o que a direita dá. Jovial, risonho, afetuoso, tanto o era para os que lhe pagavam principescamente os honorários, como para os que nada lhe podiam dar.

Aí está hoje eu lhe respondo meu nobre colega de S. Paulo - por que motivo nós, seus discípulos, nos levantávamos como impelidos por uma mola, se, alguem lhe tocava no nome augusto, se alguem lhe pretendia diminuir, perante outros, a reputação inatacável. Não era nosso o mérito era dele! Sempre se apresentara a nossos olhos conto um apóstolo, e nós o admirávamos tanto, de tal modo ele nos seduzira e encantara o espírito, que, de cada discípulo, tinha de sair um irmão, um filho, um amigo dedicado. Dele sim, poderia eu dizer o verso maravilhoso do grande florentino, tanta vez empregado sem razão:


"Tu doca, tu signore, tu maestro!
És o guia, o senhor, o mestre!

Outra face de Morais foi o seu patriotismo exaltado. Já o conhecia de 1916. Culminou em 1942. Mal entrou o país em guerra, tomou ele a dianteira, na Bahia, do movimento de auxílio à Pátria, sendo um dos criadores, se não o criador, da "Legião dos Médicos para a Vitória", organização entre cujos fins sobressaía o de doar à marinha nacional uma lancha torpedeira. Com que entusiasmo se atirou à luta, se bateu pela idéia.

Era um ídolo entre os estudantes. Paraninfo de várias turmas, era-o da deste ano, que cancelou todas as festas, e resolveu, após receber o grau na secretaria da Faculdade, ir incorporada visitar-lhe o túmulo no Campo Santo, homenagem que bem demonstra o quanto era ele querido de seus alunos.

Eduardo Rodrigues de Morais nasceu a 30 de Março de 1884 na Cidade do Salvador. Desde estudante de preparatórios revelou possuir personalidade marcada. Diz Clementino Fraga, no elogio lido perante a Academia Nacional de Medicina: "Acompanhei sua mocidade gentil, apenas despedida da adolescência, educada a primor, sobretudo ressaliente na vantagem com que falava diversos idiomas, principalmente o francês. Apenas matriculado, aos 14 anos incompletos, a todos nós encantava seu fino trato, sua polidez sem eclipses, sublinhada pela doçura de constante sorriso, em precoce compostura, enfeitada por natural modéstia, que não era de feitio habitual nos moços bem nascidos e folgados nos recursos materiais."

Formado em 1904, aos vinte anos apenas - e era o mais moço da turma, partiu logo para a Europa, onde permaneceu por quatro a cinco anos, entre outros mestres com Galezowsky, nessa época uma das sumidades mundiais em oculistica, e com o famoso Killian, um dos criadores da oto-rino-laringologia moderna. Voltando em 1909 ao Brasil, é nomeado professor substituto interino da Clínica Oftalmológica da Faculdade de Medicina do Rio. Pouco mais de um ano depois, torna à Europa. Demorando-se em Paris, é distinguido com a honra excepcional de ser nomeado chefe do serviço de optometria do Hospital da Fundação Rothschild, de que era o único assistente estrangeiro. De retorno ao Brasil, recebe o cargo de assistente da Clínica Oftalmológica da Faculdade do Rio, sob a direção do Prof. Hilário de Gouveia. Só em 1912 vem a ser nomeado professor catedrático de Clínica Oto-rino-laringológica da Faculdade de Medicina da Bahia, cadeira então criada pela Reforma Rivadávia.

E aí, de sua cátedra da Bahia, que desabrocha seu espírito criador, seu amor incansável pelo ensino. Como frisa Clementino Fraga, "na cátedra, sua palavra fácil, espontânea, torrencial, corria parelha com as vantagens de cirurgião especializado, à vontade no ensino técnica, onde fez numerosos discípulos - mensageiros fiéis de sua ágil capacidade de clínico é didata, dos melhores que a nossa gloriosa Faculdade conheceu e admirou em meu tempo."

Não devemos esquecer que, nesta época, brilhavam na velha escola do norte espíritos da elevação de um Prado Valadares, um Clementino Fraga, um Garcês Frois, um Caio Moura, uni Adeodato, um Martagão Gesteira, um Gonçalo Muniz, nomes todos que enchem de orgulho a medicina nacional.

Em verdade, professor nato, palavra ,fácil, fluente, linguagem clara e pura - ele fazia questão de terminologia exata, rigorosa, impunha-se Morais não só na parte propriamente teórica, como na prática quer diagnóstica, quer cirúrgica.

No prefácio de sua recentíssima tese de concurso, diz o Prof. Raul Davi de Sanson, numa oferenda aos professores Hilário de Gouveia e Eduardo Rodrigues de Morais, que eles foram "os primeiros mestres e orientadores da especialidade no Brasil."

Há vários anos venho acentuando ter sido Morais um dos criadores, legítimo pioneiro da oto-rino-laringologia em nosso país.

É de 1912 de sua catedra, disse-vos há pouco, que começa a irradiação do seu espírito sôbre mestres e alunos, entusiasmando sobretudo a estes. O interesse de que se vê cercado não lhe deixa de exacerbar o entusiasmo pela profissão. Clínico notável, anatomista citado a cada passo em nossas aulas da Faculdade cirurgião emérito, vê com isso seis prestígio aumentar dia a dia, e, estimulado por esta aura de admiração, da a especialidade um desenvolvimento que não seria de esperar na província. O norte todo aflue à Bahia, à procura do especialista, dentro de pouco justamente famoso. E os casos de toda sorte aparecem, justificando a necessidade de não ficar o grande mestre adistrito às coisas simples da especialidade.

As operações mais importantes da oto-rino-laringologia foram feitas por Morais, antes de qualquer outro especialista tê-las levado a efeito em nosso país.

Guardo na memória a primeira grande intervenção da especialidade, que assisti. Foi em 1916. Tratava-se de enorme fibroma rino-faríngeo, o chamado Fibroma dos Adolescentes, com invasão dos seios da face e das órbitas. O paciente, um rapazola de 16 anos, natural de Sergipe, voltava do Rio, onde nenhum dos mestres quizera operá-lo. Lembro-me da tragédia que foi a intervenção. Mas também tenho ainda na mente a figura do garboso militar que, em 1919 ou 1920, voltara a visitar a clínica onde fôra operado. Lembro-me, sobretudo, da admiração que causou entre nós todos, estudantes e professores que assistiram a intervenção, a perícia, a segurança, com que o mestre agira.

Em 1916, Morais assinalava o primeiro caso publicado entre nós do sindromo de Gradenigo. Apresentado o paciente a Sociedade Médica dos Hospitais, era novamente aberta a discussão algum tempo depois, desta vez em sessão memorável, Morais ao lado de outro mestre insigne Oscar Freire, para ser mostrada a peça anatômica em que ficara provado ser um tumor da hipófise a causa do sindromo. Era o primeiro caso, registrado na literatura mundial; em que um neoplasma determinava o conjunto sintomático que, para o famoso otológo italiano, só poderia ser de origem ótica.

Morais, como vimos, chega à Bahia no ano de 1912. Discípulo de Killian, com querei praticara por largo período, manejava com facilidade o instrumental de endoscopia das vias aéreas e digestivas : superiores, ainda desconhecido em nosso meio. Creio que foi o mestre baiano um dos primeiros, se não o primeiro, a empregar a esofagoscopia e a broncoscopia no Brasil.

Em 1916, se não me falha a memória, eu e Teófilo Falcão passamos a manhã toda de um domingo, auxiliando o mestre na retirada de duas sementes de pinha (Anona) do brônquio de um menino de 5 anos. Os corpos estranhos, duríssimos e escorregadios, foram dificilmente apreendidos e extraídos, pois naquela época não havia pinças especiais para tal tipo de semente.

A laringo-fissura, a laringectomia total, a labirintectomia; foram intervenções realizadas, pela primeira vez em terras brasileiras, pelo eminente mestre. Houve, é verdade, cirurgiões gerais que levaram a cabo a segunda das, operações citadas, antes do insigne mestre baiano. Mas nenhum oto-rino-laringologista a realizou, entre nós, antes dele.

Em uma de suas viagens à Europa, achava-se, certa feita, em Viena, numa aula do Prof. Haslinger, quando este apresentou aos alunos seu "diretoscópio". Dirigindo-se aos ouvintes, chamou-lhes a atenção para o novo aparelho - havia apenas uns meses que fôra posto à venda - dizendo que certamente se tratava de elemento diagnóstico ainda desconhecido dos que o ouviam. Morais tomou a palavra, disse possuir o aparelho em sua clínica na Faculdade da Bahia e já o ter utilizado algumas vêzes. A convite do mestre vienense, e ante a surpreza não só dele como da assistência, tomou do aparelho, e introduziu-o com a maior simplicidade, deixando-o fixado no ponto exato. Este fato, dentre outros que seria ocioso relatar, prova o quanto Morais se interessava pela especialidade, e como sempre viveu a par de todos os seus progressos.

Sempre foi o grande mestre avesso a escrever. Frequentador assíduo das sociedades médicas baianas, sobretudo da Sociedade Médica dos Hospitais e da Sociedade de Medicina da Bahia, de que era presidente quando a morte o colheu, tomou sempre parte ativa em suas sessões. A não serem, porém, notas taquigrafadas, que ele em geral não reviu, pouco ou nada se conseguiu escrito de Morais. Acompanhou nisto os grandes mestres baíanos que, de certo modo, sempre se revelaram inimigos de publicar, em letra de forma, os ensinamentos notáveis sob qualquer aspecto, que ministravam.

A dedicação à especialidade, encarada sob os aspectos mais diferentes, e estudada em seus problemas reais complexos, ressalta, contudo, aos olhos nas épocas e nos assuntos das várias teses que foram publicadas pelos seus internos, orientadas pelo mestre.

Em 1915, estuda Diniz Borges o nistagmo térmico por meio de observações com o aparelhamento de Brünnings: o oto-calorímetro ,e o oto-goniômetro. Lembro que os estudos do otólogo alemão datam de 1911, isto é, de apenas 4 anos antes. Chegava o autor à conclusão de que a média normal de Brünnings, igual a 60 cents. cúbs., não correspondia à observada na Bahia, onde o estímulo normal oscilava entre 120 e 200 cents. cúbs. de água a 22-27 graus. O trabalho baseava-se em 106 casos observados bilateralmente.

O estudo clínico das labirintites vestibulares serviu de base ao trabalho inaugural de Colombo Spinola (1917). Era, na época, assunto dos mais em voga na Europa.

Data de 1918, a tese de Teófilo Falcão relativa a um problema muito descurado pelos especialistas: o da gagueira.

E' de 1933 o trabalho de Castro Lima "Estados constitucionais em rino-laringologia", igualmente assunto dos mais transcendentes na época e, ainda hoje, na ordem do dia.

Convém salientar que, por algumas vezes, foram as teses do serviço de Morais, feitas sob sua arguta orientação, as que fizeram jus, quer por sua originalidade, quer pelo rigor com que foram elaborados, ao prêmio máximo conferido pela Faculdade: a láurea Alfredo Brito (medalha de oura). Veem-me à memória a de Pedro Falcão - "Síndromo Glaucomatoso" (1929), em que é estudada de, maneira exaustiva a relação entre a hipertensão ocular e as sinusites crônicas latentes; a de Lilí Lages - "Infecção Focal e Surdez", trabalho fundamental, agora mesmo citado como estudo básico no recente tratado de Segura, Canuyt, Errecart e Del Carril; a de Antônio Berenguer - "A Fossa Jugular", estudo primoroso de anatomia, baseada na observação meticulosa de 100 pares de temporais com os occipitais correspondentes; etc.

Morais foi um cientista na verdadeira acepção do termo. Ardoroso, entusiasta, apaixonado, atirou-se ao, estudo, entre outros, das relações entre a patologia ocular e as afecções dos seios da face. Sabemos todos nós como ele se apaixonou pelo problema, e a que extremos chegou. Houve quem o considerasse maníaco. Fui testemunha de vários casos que tiraram proveito dessa abençoada mania. Tive a fortuna de assistir a uma intervenção em todos os seios da face, feita com aquela maestria e rapidez que jamais vi em nenhum rinologista, levada a efeito num; meu conhecido, homem de uns 35 anos, completamente cego. Encontrei-o dias depois - quatro dias depois - em um bonde, indo, por seus próprios olhos, ao consultório do médico "maníaco".

Certa pessoa a mim muito cara arrastou, por mais de vinte anos, além de nevralgia essencial do trigêmeo rebelde a toda terapêutica, e que lhe trouxe amargurada a existência, um enorme bócio, que ainda mais a torturava por ser a pessoa de sexo frágil. Voltando certa feita, à Bahia, encontrei-a com a nevralgia reduzida a dores erráticas, e sem o enorme tumor tireóideo. E com que unção ela pronunciava o nome do médico que fizera o milagre...

Se Morais chegou, no problema da infecção focal, a certo exagero, não mereceu todavia a crítica pouco serena com que o feriram. Ninguem pode negar que ele deu a tal estudo grande impulso, e, sobretudo, que lhe cabe o mérito incontestável de, como especialista notável, quer no ramo oto-rino-laringologico quer no oftalmológico, ter despertado entre nós a atenção para o valor real da infecção de fóco. Trouxe-lhe isso, é verdade, larga messe de dissabores e amarguras, mas está escrito que nínguem atira pedras em árvores sem frutos.

De seus inúmeros trabalhos, perdidos nos, pequenos resumos das sociedades médicas da Bahia, alguns merecem referência particular.

Começarei pelo conjunto mórbido para o qual o Prof. Aristides Novis propôs o nome de "Síndromo de Eduardo de Morais". Descreveu-o o eminente mestre em memorável reunião realizada em junho de 1929, na Sociedade Médica dos Hospitais: Partindo dá similitude com o síndromo das escleras azues de Van Der Hoeve, Morais descreve o "síndromo do seio maxilar azul", constituido de três sinais: distrofia dentária, surdez progressiva, e adelgaçamento notável das paredes do seio maxilar, "condição esta que permite, dada a singular transparência óssea, ver-se colorida de azul a mucosa dos seios". Um capítulo, como se vê, em aberto para os estudiosos de nossa especialidade.

As mastoidites, pseudo-primitivas foram também estudadas pelo professor baíano. Despertou-lhe a atenção a concomitância, mais de uma vez por ele observada, de sinusite crônica e mastoidite, fato também já verificado por Watson-Williams. Aventa a possibilidade de estender-se a infecção do seio à mastoide pela via do zigoma, o que lhe ocorreu, por ver, em paciente operado simultaneamente de mastoide e sinusite, surdirem borbulhas de água oxigenada no seio maxilar, no momento em que era irrigada a cavidade mastóidea.

Lembrarei, por fim, as manifestações sinusais da esquistosomose; doença de Manson-Pirajá da Silva, assunto inteiramente original e ainda à espera de estudiosos que lhe deem a devida atenção.

Assim foi Morais. Um homem em que não sei o que mais adimirar: se o valor científico, se a habilidade cirúrgica, se a capacidade didática, se o amor ao trabalho, se o patriotismo elevado, se a coragem, o altruismo, a abnegação.

Se nada disso ele possuísse, ou, se alguém quisesse negar o que acabei de dizer, ainda ficava intacto o seu maior florão de glória: sua escola, a escola oto-rino-laringológica da Bahia, A ESCOLA DE EDUARDO DE MORAIS. Vós todos sabeis o que ela representa. No momento; dois professores catedráticos, quatro livre-docentes, não sei quantos especialistas esparsos por esse Brasil imenso, de Belém, do Pará, a Bagé, no Rio Grande do Sul. Ermiro de Lima, Artur Sá, Teófilo, Edgar e Pedro Falcão; Carlos Morais, Colombo Spínola, Lilí Lages, Aloísio Novis, Hélio Lopes, Antônio Berenguer; e tantos outros que exercem a clínica, sobretudo aqui em S. Paulo, e contribuem para o engrandecimento da escola do inolvidável mestre.

Foi esta vida preciosa que se extinguiu a 19 de Julho último, apenas aos 59 anos de existência. Elegeram-no, há pouco, membro honorário dá nossa entidade máxima, a Academia Nacional de Medicina. Com que alegria recebera a nova, e com que ânsia mal contida aguardava o momento único e supremo na vida, erra que discípulos e amigos lhe iam pagar uma dívida de honra!

Não o quís o destino! Na angústia dos últimos instantes, surgiu, perante a família torturada, em meio à ascenção térmica, a crise delirante. E entre lágrimas e choros, ouviu-se novamente aquela voz, para tantos abençoada, borbotando em palavras rápidas, em frases de entusiasmo, em votos de agradecimento, formular, aos poucos, o discurso que seu cérebro já começara a arquitetar para a posse na Acadêmia. Morreu como sonhara, ou, pelo menos, embalado pelo último sonho; dos mais lindos talvez.

Não são somente seus discípulos compungidos; não é apenas a minha velha Faculdade, desfalcada de uma de suas colunas mestras; não é a Bahia, alanceada no peito com a perda de um de seus filhos finais eminentes; mas é, sobretudo, a grande família oto-rino-laringológica brasileira, unida pela dor, que chora o desaparecimento de uma de suas figuras mais destacadas.

A REVISTA BRASILEIRA DE OTO-RINO-LARINGOLOGIA vem, profundamente compungida, prestar esta homenagem à memória do inolvidável mestre da Faculdade da Bahia. Homenagem diminuta, é verdade. Maior terá ele com ficar seu nome aureolado ligado para sempre à medicina pátria, com altear-se diante de seus contemporâneos como o protótipo do médico apóstolo - como cristão, como cientista, como mestre. A ele se adaptam, sem favor, as palavras de ouro de Vieira, no incomparável Sermão da Sexagésima:

"O semeador e o pregador é nome; o que semeia, e o que prega, é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter nome de pregador ou ser pregador de nome, não importa nada: as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo".

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