CAPILARES DO SANGUE E OTORRINOLARINGOLOGIA
Autor(es): DR. H. G. WHITAKER - Livre Docente da Cadeira de Otorrinolaringologia da Universidade de São Paulo Membro da Academia Nacional de Medicina
II
ESTADOS ALÉRGICOS
Resfriados freqüentes, como é notório, constituem um dos característicos da sinusite crônica e, na realidade, refletem seus períodos de exacerbação.
Quando, porém, sua freqüência é tão acentuada que "um defluxo vem atrás do outro", queixando-se o paciente de "viver resfriado", quaisquer que sejam as precauções que tome, trata-se, na maioria dos casos, de uma rinite vasomotora.
A rinite vasomotora assume diversas formas e apresenta intensidades variáveis, as quais, até hoje, têm sido consideradas como entidades mórbidas independentes, com denominações diversas, o que traz não pouca confusão. Na verdade, é manifestação típica de desgoverno ou diátese capilar (1).
Na sua forma menos intensa, revela-se por obstrução nasal do lado habitual de deitar, cessando prontamente quando o paciente se levanta, ou passando para o outro lado, quando muda a posição no leito. Pouco incômoda, freqüentemente nem é percebida e, na verdade, não passa de pequeno desvio da normalidade. Ocorrendo, porém, obstrução simultânea dos dois lados do nariz, é caso de recorrer a especialista, que verificará de que provém - correntezas de ar, emoções fortes (inclusive eróticas etc.).
Em casos mais acentuados, a rinite vasomotora provoca coceiras no nariz, no céu da bôca (palato duro), ou na garganta, que se gostaria de alcançar com as unhas, ou, então produz acessos de espirros, com abundante secreção de muco nasal cristalino. É a "rinite alérgica" ou "alergia nasal", que costuma aparecer e desaparecer bruscamente, podendo ser provocada por travesseiros com enchimento de penas de aves, colchões de crina de cavalo, ou cobertas de lã de carneiro ou de penas de gansos ("edredons"). Quando acompanhada de asma, que é outra modalidade de desgoverno capilar, a rinite vasomotora é chamada "rinite asmática".
Curiosa é a posição destacada da "asma nasal", como entidade patológica à parte. Em 1870, Voltolini comunicou dois casos graves de asma curados com a extirpação de pólipos nasais. Voltando estes a crescer, provocaram novas manifestações, que desapareceram também com segunda remoção dos pólipos. Ligou-se, assim, a falta de ar, que caracteriza a asma, à obstrução mecânica do nariz, não sómente por pólipos, mas, também, pelo desvio do septo.
Doze anos depois, em 1882, Hack desenvolveu esse conceito, de modo a fundar uma quase sub-especialidade, a das neuroses reflexas, devidas a doenças do nariz, órgão esse em que via uma "espinha irritativa" que as desencadeava. Desde então, os trabalhos sôbre esse assunto tornaram-se numerosos, sendo difícil conhecê-los todos (2).
Entretanto, a rinite vasomotora, cujos vários nomes são indicativos de sua origem ("rhume des foins", "hay fever", alergia por poeira de livros ou da varredura de casa) é, como dissemos, manifestação típica de desgoverno capilar, sendo quase sempre acompanhada por outras manifestações de tal diátese.
No organismo normal, as condições anatômicas e fisiológicas, regulares e harmônicas no seu funcionamento, fazem com que as partes estejam sempre subordinadas ao todo, para a consecução de uma finalidade: a isso, Claude Bernard deu o nome, aliás adequado, de "arranjo vital". Quando não há ordem nem subordinação das partes ao todo, fica o organismo em situação desfavorável para enfrentar os acidentes normais da vida. Nisso consiste a "diátese constitucional", caracterizada pelo fato de excitantes fisiológicos, ou de fraco poder patológico, provocarem reações com intensidade e feitio anormais, de tal modo que condições de vida consideradas normais transformam-se em oportunidades para manifestações mórbidas (3). A diátese constitucional é, pois, simplesmente um estado de hipersensibilidade, mas esta tem gradações de intensidade que estabelecem passagem suave do normal para o patológico.
Até hoje são descritas várias diáteses, que são sempre de grande interesse, porque a medicina ocupa-se precisamente de reações anormais. Elas não são entidades mórbidas à parte, mas pertencem a um conjunto, o "Desgoverno Capilar", que é a diátese das diáteses, assunto do qual nos ocupamos, principalmente, em nossa Tese de Docência de 1947.
A rinite vasomotora, o edema de Quincke e a doença de Menière - familiares dos especialistas de ouvidos, nariz e garganta, - teem parentesco estreito, pois todas são manifestações de desgoverno capilar, assemelhando-se, além disso, aos estados alérgicos e à inflamação serosa, porque em todos esses estados há considerável aumento da permeabilidade capilar, sobretudo à albumina, com a conseqüente formação de edemas (Eppinger, Müller).
Na rinite vasomotora pode haver secreção cristalina e abundante ou, apenas, obstrução nasal, segundo são atingidos os capilares mais superficiais ou os mais profundos. No notável tratado de O. Müller ou, para os que desconhecem a língua alemã, em nossa Tese para Docência Livre da Cadeira de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em 1947, ver-se-á como e porque se comportam diferentemente os capilares das diversas partes do corpo, ocasionando, por exemplo, o aparecimento de edemas em zonas limitadas.
O desgoverno capilar pode não se manifestar por tempo dilatado. Moléstias infecciosas, todavia, podem provocá-lo inesperadamente, por causa da extrema sucetibilidade dos capilares vasoneuróticos às toxinas microbianas (O: Müller).
Outro fator, já assinalado em nossa Tese de 1947, determinante da rinite vasomotora, é o abuso de frutas do gênero Citrus, cujo ácido facilmente se transforma em gás carbônico (4), aumentando a permeabilidade capilar. O mesmo sucede com as bebidas artificialmente gasosas. Ao lhe ser explicado que o ácido cítrico do limão, laranja, mexerica, grape-fruit, é fator desfavorável na rinite vasomotora, quase todo doente pergunta se o abacaxi ou outras frutas "ácidas" devem ser também evitadas, o que não é o caso. Deve-se-lhe explicar, também, que os "bombons", conhecidos como "drops", contêm ácido cítrico, devendo ser evitados.
Para o tratamento da rinite vasomotora, nada se aplica do que vimos no capítulo anterior acerca das inflamações agudas. A vitamina C, na dose de três gramas por dia, por via oral, atua rápidamente, embora de modo passageiro. Resultados mais duradouros conseguem-se por meio de hormônios, como expuzemos em recente trabalho (5). A galvano-cauterização da mucosa das conchas inferiores é tratamento antigo mas que, às vêzes, pode ainda prestar serviços na rinite vasomotora; não assim, a correção de desvios do repto nasal.
Do edema de Quincke, edema angioneurótico, temos pequena experiência, mas, dado seu parentesco estreito com a rinite vasomotora (6), a mesma terapêutica deve ter o mesmo efeito.
A enxaqueca, outra manifestação de desgoverno capilar, que da mãe pode passar ao filho, sob forma de rinite vasomotora espasmódica (O. Müller), continua sendo um problema terapêutico; freqüentemente, porém, cede à vitamina C, à cafeína ou à combinação de ambas (Corístína) (7), assim como ao Gynergéne (8). Já vimos, em alguns casos, violenta enxaqueca, acompanhada de vômitos, cessar em poucos minutos com a instilação nasal de 3 a 4 gotas de solução milesimal de histamina.
Para a pesquisa da etiologia da rinite vasomotora, do edema de Quincke e da doença de Ménière, da qual trataremos a seguir, além dos sinais do Desgoverno Capilar, é necessária procurar focos infecciosos e causas psíquicas, conforme recomenda O. Müller (9). Temos verificado ser acertada essa recomendação, mas ainda do que êle próprio faz crer. Catorze anos depois de Müller, no primeiro trimestre de 1953, pesquisadores norte-americanos e ingleses deram mais enfase ainda à influência da alma; suas estatísticas demonstram que três quartos de todas as moléstias orgânicas, no âmbito da clínica médica, e não apenas em psiquiatria ou neurologia, são atribuíveis às emoções (estado de alma) do paciente (10).
A síndrome de Ménière é, sem dúvida, manifestação de desgoverno capilar. Esta afirmativa de O. Müller temos visto inteiramente comprovada por nossa experiência clínica, pelas melhoras obtidas com a remoção da causa da permeabilidade aumentada dos capiláres, que traz aumento de pressão do líquido endolinfático sôbre os otólitos. De fato, o ouvido interno é rico em capilares, abundantes sobretudo na stria vascularis do ductus cochlearis, nas cristas ampulares dos canais semicirculares e nas maculae utriculi et sacculi (11).
Sabe-se que o sistema endolinfático do ouvido interno está mais em relação com a função estática do labirinto, ao passo que o sistema perilinfático relaciona-se mais com a função auditiva, o que pode, talvez, explicar os casos de doença de Ménière sem perturbações auditivas e, até, sem zoadas e sem nistagmo espontâneo. Kobrak explica a prova calórica pela ação do excitante térmico sôbre os capilares, que reagem com anemia ou hiperemia, admitindo, também, que as inflamações do ouvido médio possam produzir, nos capilares do labirinto, uma hiperemia semelhante à que se obtém com uma seringada quente (12). O próprio Ménière, referindo-se à necrópsia da jovem, que foi, dos 11 pacientes que figuram nas observações de sua comunicação clássica, a única a falecer durante as manifestações agudas dos sintomas, diz ter encontrado, como exclusiva lesão anátomo-patológica, um exsudato sanguinolento nos canais semicirculares. Na literatura posterior a essa comunicação, são freqüentes as comunicações da ocorrência da doença de Ménière em casos de angioneurose e de artritismo, designações antiquadas de doenças que se englobam no Desgoverno Capilar (13).
São freqüentes os casos de vertigens ou de tonturas enviados, por clínicos, aos especialistas de Otorrinolaringologia, na suposição de que se trate de labirintite ou de síndrome de Ménière. A labirintite conseqüente, sobretudo, à propagação de uma infecção do ouvido médio ao ouvido interno, tornou-se rara após a descoberta dos antibióticos. Seus sintonias violentos - vertigens com vómitos, zoadas intensas, surdez - não permitem ao paciente sair do leito, pelo menos por dez dias. A esclerose em placas pode provocar vertigens intensas, mas menos duradouras e tal hipótese deve ser levada em consideração, sugerindo, sobretudo, pesquisa de reflexos umbelicais e cremasterianos.
Visto persistir a divergência, quase secular, do que seja a Ménière - tendo sido, mesmo, mencionada uma "Ménière sine Ménière" - preferimos adotar a designação popular de "tontura", que significa mau estar geral, incerteza no andar, mas, não, vertigem rotatória. São essas "tonturas" que, geralmente, levam o paciente ao consultório do especialista. É recomendável, então, pesquisar, com cuidado, o nistagmo espontâneo, bem como medir a audição que, amiúde, é normal, ou se apresenta ligeiramente diminuída. Nistagmo espontâneo e surdez acentuada, unilateral, poderiam indicar labirintite. Em seguida, deverá ser feita pesquisa do desgoverno capilar e dos focos de infecção - pois os capilares vasoneuróticos são extremamente sensíveis às toxinas microbianas. Os sinais clínicos dos focos de infecção e os meios de localizá-los, bem como os do desgoverno capilar, são referidos em nossa Tese de Livre Docência da Cadeira de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 1947, e em outro capítulo dêste trabalho.
Pela nossa experiência, os focos dentários costumam ser causa freqüente de tonturas, sobretudo das que se agravam com movimentos da cabeça. Em geral, o doente queixa-se que elas lhe vêm quando está dormindo. Com os mesmos movimentos, voltam, de dia, as vertigens sentidas à noite. Quase nunca, porém, aparece nistagmo na mesma ocasião. Raramente queixa-se o paciente de dor nos dentes, mas, freqüentemente, conta que um deles faz "sentir sua presença", embora o dentista nada tenha encontrado de anormal. Na maior parte dos casos, trata-se de dente desvitalizado e a ionização de sua raiz com KI a 20% (nossa Tese, 1947, pág. 167) traz melhora imediata. Confirmado o diagnóstico, o tratamento caberá ao dentista.
As doenças inflamatórias dos sinus, sobretudo dos etmoidais e esfenoidais, podem ser causa de tonturas fortes. Recentemente, tivemos um caso de tonturas violentas, havia mais de ano e meio, em um paciente de 53 anos com sinusite etmóido-esfenoidal, fácilmente diagnosticada pelo filete de pús que lhe descia pela parede posterior da faringe. O estímulo local da fagocitose (nossa Tese (1947) fê-lo melhorar consideravelmente, durante quase 24 horas. Tais melhoras se acentuaram no segundo tratamento; com mais dois, o paciente voltou a trabalhar e a sair à rua sozinho, obtendo alta. Nunca apresentou nistagmo e a anormalidade encontrada na audição era devida a catarro crônico da tuba, propagado da sinusite posterior. Esse paciente tinha desgoverno capilar latente, que se revelara poucos meses antes, sob a forma de frieiras doloridas nos dedos dos pés, após uma infecção, tratada com penicilina.
Em dois casos de desgoverno capilar, com fortes tonturas e que não apresentavam nistagmo espontâneo nem focos de infecção, mas nos quais havia sensação de um dos ouvidos estar como que "cheio", embora sem otite, tiveram os pacientes alívio imediato com a insuflação de 3 gotas de Pitressin (Parke, Davis) através da trompa de Eustáquio, por meio do catéter comum. Tratava-se de mulheres, uma de cêrca de 54 anos e, outra, de cêrca de 30 anos, a primeira, tendo já ultrapassado a menopausa, a outra não estando em período das regras.
(A continuar)
(1) "Aspectos novos da otorrinolaringologia", nossa Tese de 1947 para a Docência Livre da Cadeira de Otorrinolaringologia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e "Relação entre a Otorrinolaringologia e a Endocrinologia através do desgoverno capilar" J. G. Whitaker, Revista Brasileira de ORL, julho-agosto 1952.
(2) Gustav Hofer: "Die entzündlichen Erkrankungen der Luftröhre und der Bronchien". Handbuch der Hals-Nasen-Ohren-Heilkunde. A. Denker und O. Kahler - III Band págs. 259 e seguintes.
(3) Otfried Muller "Die feinsten Blutgefässe des Menschen in gesundeu und kranken Tagen" vol. II, págs. 7 e 10 e nossa Tese de 1947 págs. 72 e 73.
(4) Cyro Camargo Nogueira, "O balanço ácido-básico dos alimentos". Brasil Médico 20 e 27 de maio de 1943.
(5) J. G. Whitaker, "Relação entre a otorrinolaringologia e a endocrinologia através do desgoverno capilar". Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, julho/agosto 1952.
(6) O Müller, obra citada, vol. 11, pág. 403.
(7) Coristina "Schering" - dois comprimidos.
(8) Gynergéne ampoulas de 1 cm3, contendo 0,5 mg de tartrato de ergotamina; por absorção nasal, duas gotas em cada narina. A cafeína pode ser, tainbém, empregada por via nasal, usando-se, da solução a 25%, que se manda preparar na farmácia, duas gotas em cada narina. Gynergéne e cafeína podem ser empregadas conjuntamente.
(9) O. Müller obra citada, vol. II, pág. 403.
(10) Relatório da Out-Patient Clinic da Universidade de Yale, Connecticut, e o artigo do Dr. G. G. Gladstone Robertson no número de fevereiro da revista mensal inglesa The Lancet (citação do semanário italiano "L'Europeo" de 5 de março de 1953).
(11) A. Eckert Mobius. "Untersuchungstechnik und Histologic des Gehörorgans". Handbuch Denker e Kahler, vol. VI, págs. 321 e 342.
(12) Kobrak, citado por H. Neumann e Franz Fremmel, "Physiologie des Bogengansapparates". Handbuch Denker e Kaliler, vol. 1, pág. 556.
(13) Nossa Tese para Docéncia Livre da Cadeira de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1947, págs. 74 e 78.