Versão Inglês

Ano:  1938  Vol. 6   Ed. 1  - Janeiro - Fevereiro - ()

Seção: -

Páginas: 74 a 78

 

PETRITE E NÃO PETROSITE

Autor(es): DR. PAULO MANGABEIRA-ALBERNAZ

Deve-se a Morgagni, e data de 1740, a primeira descrição de que há notícia, da osteíte do rochedo. Nesta época, por ocasião da necroscopia de um menino de 12 anos de idade, teve o célebre anatomista ensejo de encontrar uma perfuração circular, do tamanho de uma lentilha, situada naquela parte do rochedo que, já naquele tempo, uns chamavam posterior, outros ínferointerna.

Só em 1904 tomou o estudo dêste assunto certo impulso com a descrição, feita por Gradenigo, de um conjunto de sintomas, a seu ver característico de lesões da ponta da pirâmide, o qual recebeu pouco depois o nome de síndromo de Gradenigo.

Em uma tése hoje clássica, expunha, em 1907, Baldenweck as relações patológicas da orelha média com os órgãos do rochedo e de sua vizinhança. Williams, da Fundação Mayo, diz, em publicação muito recente, as seguintes palavras a respeito dessa obra: "A monografia de Baldenweck estuda o assunto com tal minúcia, dá uma descrição clínica tão exata, e sugere medidas cirúrgicas tão racionais, que o resto da literatura referente às petrite não passa de simples anexos e comentários a ela relativos". O trabalho do especialista francês "possue cunho curiosamente moderno, estando mais de acôrdo com as discussões de 1935-1936, do que com as do período de 1931 a 1934".

Conhecida embora há tanto tempo, só em 1927 recebeu a osteite do rochedo denominação especial. Foi Haymann, ao que assevera Ramadier, quem naquele ano, lhe deu o nome de petrosites.

No entanto Profant, em sua conhecida memória (1931 ), diz ter sido êle quem criou êsse nome. São palavras textuais do otologista norte-americano: "Com as devidas ressalvas para sugestão de outro termo médico, creio que a palavra petrosite é apropriada, porque centraliza a atenção para êste possível processo". Linhas adiante, reza a terceira conclusão de seu estudo: "O termo médico petrosite é sugerido por centralizar a atenção para esta complicação possível de verificar-se".

Parece mesmo que, entre os autores (pelo menos entre os norte-americanos) predomina a convicção de ter o vocábulo sido criado por Profant. No primoroso estudo crítico, já mencionado, diz Williams, de referência a êsse autor: "Foi êle o primeiro a sugerir o termo petrosites para designar a inflamação do rochedo". Criado por Profant ou Haymann, não resta dúvida que o vocábulo assumiu grande voga e é usado freqüentemente para designar qualquer processo inflamatório da piramide rochosa. Ramadier deu-lhe o nome de osteíte profunda do rochedo; os americanos, sobretudo os partidários das idéias de Kopetzky; o título, criado por êste autor, de osteíte coalescente do rochedos, Moulonguet, o de rochérite.

A palavra petrosites foi formada tomando-se por base o princípio de terminologia médica de juntar o sufixo ite ao nome do órgão.

E de conhecimento vulgar que esta desinência ite vem do sufixo grego itis, terminação de adjetivos. Assim, por exemplo, glossites quer dizer lingual, relativo à língua. Tomou-se o sufixo para designar processos inflamatórios, porque o adjetivo era usado em grego juntamente ao substantivo nósos, que significa doença: glossites nósos, isto é, doença da língua. Quando dizemos glossite, subentende-se o nósos, doença. Por mera convenção, adotou-se, porém, o sufixo com o significado exclusivo de doença inflamatória. Para formarem-se os termos médicos que designam inflamações, a regra é, pois, juntar êste sufixo ite ao nome do órgão ou de parte dêste.

Não é, entretanto, a regra usar-se do radical em qualquer língua. Se a desinência ite é grega, deve-se pela regra geral, e para evitar hibridismos, só admissíveis quando inevitáveis, usar sempre radicais gregos. Cêrca de 90 %, dos termos médicos em ite foram formados de conformidade com esta regra. A criação de hibridismos tornou-se, contudo, impossível evitar. Assim tivemos que adotar termos cujo radical provinha ou:

1 ) do latim, ou:

2) de nomes próprios:- No primeiro caso: vaginite, sinusite (melhor sinuíte), apendicite, coxite uveíte, gengivite, etc.. No segundo caso: bartolinite (de Bartholin) ; cowperite (de Cowper) ; descemetite (de Descemet) ; highmorite (de Highmore), douglasite (de Douglas), etc.. Este processo de formação é pouco usado, e, como diz com razão Triepel (Die anatomischen Namen, 18.a ed., 1936),.deve ser posto de lado, pois, além de muitas vezes não ser historicamente exato, dá origem à formação de verdadeiras barbaridades linguais.

Em nossos dias tem-se abusado dêstes termos híbridos, alguns desnecessários senão errôneos: cordite (tem-se empregado até o absurdo monocordite!), tramite, basite celulite, etc. Por acaso, êste grupo citado não faz falta em terminologia e só serve para estabelecer confusão. Cordite, por exemplo, pode se referir a muitas cordas que o organismo possue: às cordas vocais; ao cordão espermático (Cordite de referência a êste órgão é muito usado pelos americanos) ; ao coração; à corda do tímpano, etc. Celulite é outro vocábulo que tanto pode dizer respeito à inflamação dos espaços conjuntivos da face e do crânio, como à dos espaços pneumáticos do temporal ou do etmóide.

A regra, ao formar-se o vocábulo, é, portanto, unir-se ao radical em grego, o sufixo ite: excepcionalmente junta-se o sufixo citado a palavras latinas ou a nomes próprios.

Mas a regra é ainda usar para radical um substantivo: pleura, pleurite; rinós, rinite; otós, otite; appendicis, apendicite; papilla, papilite; etc..

Ainda, e só em casos excepcionais, têm-se empregado como radical adjectivos substantivados. Assim de conjuntiva, conjuntivite; de vaginalis, vaginalite. Creio que, nestes raros casos, o radical é sempre latino.

Pelo exposto, vemos que a regra para formação dos termos médicos designativos de processos ou afecções inflamatórias é juntar o sufixo ite ao radical grego que designa o órgão ou parte dêle, radical êste que deve ser um substantivo. Tem-se daí que chegar à conclusão de que o vocábulo petrosite é mal formado.

Vem êle de petrosus, adjetivo latino (o radical não devia ser nem latino, nem adjetivo), derivado de potra, se, rochedo, penhasco. Ora, mesmo que tivéssemos de lançar mão do radical latino, êste devia ser petra, substantivo, e não petrosus, adjetivo.

Acontece, porém, que, em anatomia, é costume designar-se por pars potrosa, ou os pala, a parte do osso temporal que, em português, denominamos rochedo. Os anatomistas ingleses e alemães, que usam largamente a terminologia latina, substantivaram o adjetivo, e empregam correntemente potrosa e petrosam corno sinônimos de pars potrosa e os petrosum. Assim, vemos em Gegenbaur das Petrosum (como aliás das Squamosum!), vocábulo que os melhores glossários médicos (Guttmann, l6." - 20ª. edições; Roth, 10ª. edição) não registram, citando apenas petrosus como adjetivo; em Lillie e Williams "inflammation of the petrosa" ; o mesmo em Kopetzky, em Law, em Friesner, em Meyerson, etc., palavra referida no Dicionário de Termos Médicos de Dorland (14ª edição).

Emprega-se também o adjetivo inglês petrous, como substantivo. Embora os dicionários da língua inglesa - entre outros o famoso The Century Dictionary and Cyclopedia e o Dicionário de Termos Médicos de Dorland - não registrem a palavra senão como adjetivo, encontrei algumas vezes o vocábulo petrous com função de substantivo. Em Profant: "it is a part of the petrous" ; "had a well developed petrous". Em Wells Eagleton: "the petrous belongs to the more primitive type of cartilagem bone". De modo geral, entretanto, o que se escreve em inglês é petrous bone, petrous pyramid, petrosal tip, petrous portion, etc..

Partindo daí é que Profant criou petrosites (de petrosa), que Druss escreveu petrosites (de petrous).

Como em geral se observa nestas questões de terminologia, a liberdade é tal, que cada um propõe o que lhe vem à cabeça, mesmo que o proposto não tenha o menor fundamento. Assim Coates, Ersner e Myers empregaram em seu trabalho o termo petron, declarando, em nota no rodapé: "o vocábulo refere-se ao ápice da porção pétrea". Ora, a palavra petron não existe em inglês, e em grego é apenas o acusativo de pétros, ou (ó) , substantivo feminino da segunda declinação, que significa pedra e não rochedo. Não há, por conseguinte, nenhuma justificativa para Coates e seus auxiliares quererem dar à ponta do rochedo o nome citado.

Baseado em serem os termos médicos correspondentes a processos inflamatórios formados pelo acréscimo do sufixo ite ao radical correspondente ao órgão, Moulonguet propoz a palavra rochérite para designar o que em geral se chama petrosites. Diz o autor francês: "Do mesmo modo que mastoidite é empregado para indicar o comprometimento da porção mastóidea, é lógico igualmente dizer-se rochérite, quando a infecção, estendendo-se à profundidade, atinge os elementos constituintes do rochedo".

A seguir a lógica de Moulonguet, a terminologia médica que já é, sem nenhum favor, uma torre de Babel, chegaria a ser completamente incompreensível. A inflamação da escama, pelo mesmo motivo, tomaria o nome de écaillite; a do pavilhão, pavillonite, etc.. Mas, não era só em francês que a regra deveria ser seguida, mas em todas as línguas: em italiano seria a rochérite traduzida pela palavra rocchite (rocca) ; em português, rochedite (rochedo) ; em espanhol, penasquitis (de peñasco) ; em alemão, Felsenbeinitis (de Felsenbein) ; etc. E' inútil ressaltar as desvantagens do método sugerido pelo especialista francês.

Se o radical deve ser grego e deve ser substantivo, como exige a regra, o vocábulo certo, destinado a denominar a osteíte do rochedo é petrite. Poder-se-ia afirmar que petrosite está certo porque provém de pétros, ou (6), pedra. De fato, todos os derivados científicos relativos a rochedo e a pedra (petródorno, petrógalo, petrografia, petrogenia, petróglifo, etc.), são formados indiferentemente de pétros, pedra, ou de petra, as, (è), rochedo. Mas o argumento não passaria de um sofisma, porque, em rigor, rochedo é petra, e não pétros.

A terminologia médica tem se modificado muito nos tempos modernos. Os vocábulos técnicos antigos foram em grande parte esquecidos.

Tomemos do velho Estêvão Blancard - Lexicon Medicum Graeco latino - germanicum - Fried. Zeitlerum - Halae Magdeburgicae, 1718. Nesta edição, que é a quinta, vemos que os grecos davam ao rochedo o nome de lithoeidès - litóide em português - de lithos, pedra. Diz textualmente Blancard: "lithoides est os petrosum, sic ob duritiem lapideam appelatum. Ex lithos, lápis et eidos*, forma'. Em petrosum lê-se: "petrosum os est interna ossis temporum fácies, sie ob lapidis petrosam duritiem appelata. Ex pétros lápis, et eidos forma". Por ai se vê que os petrosum era a face interna do temporal.

Em um vocabulário justamente famoso, de 1746, o de Bartolomeu Castelli - Lexicon Medicum Graeco-latimun - Frates de Tournes - Genevae - encontramos:

"Lithoeides, lithoeidès, petrosum, sive petrae símile. Epitheton ossis temporum, quod et Lapidosum, saxeum, Gal. 1. 9 de V. . P. cap. 10. quod utrinque ad aures positum petrae speciem referens lambdoidis suturae finibus terminatur, in quo inest processus columnae similis, styloeidès*, belonoeidès*, graphioeidês*, sub quo auditorius meatus continetur, 1. de ossib. C. 1. Barth.libell 4c. 6. ubi ossa temporum appellat."

Procuremos petrosum. O dicionário não registra, mas vejamos pedra.

"Petra, petra*, saxum,,idem fere, quod Lápis, nisi quod Petra duriorem saltem lapidem significare videatur ex uso recepto...

Petraíos* dicitur de osse petroso temporum, quod et saxeum, lapidosum vocatur, de quo vide Barthol, libell 4. Anat. c. 6. item de piscibus, qui alias Lat. saxatiles dicuntur.Gal.1.3. de Al. fac. c. 28.

Vejamos ainda a palavra aures. "Aures, ota*,... Ad hane aurem nimirum internam, concurrunt seqq. partes, Os petrosum, lithoeidès ostõn*, in quo quinque foramina, quorum primum Meatus auditorias, pórus tés ácões*, é ácostikós* dicitur. Hipp. 1. de Glandul...

Ha dois erros no modo de ver de Blancard:
1.°) petrosum, latim, não vem do grego pétros; 2.°) petrosum não pode provir de pétros + eidos. Se o segundo erro é um descuido fácil de perceber-se, com o primeiro já não se dá o mesmo. Petrosus, a, um vem de petra, ae e êste vocábulo se origina do grego petra, as, e não de pétros, ou, como diz Blancard, e como repete Gray em sua anatomia (edição americana baseada na 13: a inglesa, 1897).

Mas Castelli, por sua vez, em petra, refere que o osso petroso chamava-se em grego lithoeidès ostõn e petraíos. E claro que petraíos vem de petra, as, rochedo e não pétros, ou, pedra, Os termos lithoides, lapidosum, saxeum, desapareceram da terminologia médica com o correr dos anos. O os petrosum deu em francês rocher, em italiano rosca, em espanhol penhasco, em -alemão Felsenbein, em inglês petrous tone, em português rochedo. A não ser em inglês, idioma em que não há um substantivo para designar especialmente o osso em apreço, em todas as línguas modernas o significado do nome dado àquela parte do temporal, corresponde em grego a petra, e não a pétros.

O termo médico deve, por consequência, ser petrite, de petra, rochedo. Já existe, aliás, um seu equivalente: metrite, de métra, as (è), madre, útero.

Uma vez que a afecção ainda só é conhecida nos meios otológicos, e uma vez que não há dez anos que recebeu nome, creio ser possível substituir o errôneo petrosites pelo certo petrite, termo aliás já empregado por Belinoff e Balan em seu trabalho acêrca da estrutura da ponta do rochedo




N. B. - As palavras marcadas com um asterisco estão, nos textos, grafadas com caracteres gregos.

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