Ano: 1949 Vol. 17 Ed. 1 - Janeiro - Abril - (4º)
Seção: Casos Clínicos
Páginas: 43 a 51
SOBRE UM CASO GRAVE DE FEBRE REUMÁTICA DESENCADEADA POR AMIDALECTOMIA (*)
Autor(es): Dr. SILVIO MARONE
(Assistente extra-numerário da Clínica O.R.L. da Faculdade de Medicina de S. Paulo)
Os processos de amidalite e sua intervenção, por serem os mais frequentes em nossa especialidade, devem merecer estudos cuidadosos. Sabemos que a mais importante das condições da intervenção é justamente quando, tais processos, como foco infeccioso, determinam manifestações de carater grave.
Cada especialista sabe, entretanto, que a operação nem sempre se mostra tão simples e sem complicações como à primeira vista pode dar idéia o seu grande numero praticado em clínicas. Surpresas nos assaltam quer durante o ato operatório quer no evolver post-operatório, permitindo-nos meditar mais na seriedade dessa intervenção.
É certo que, de início, se lutará nesse sentido com o próprio paciente, pois já se acha enraizada no espírito do povo a idéia errônea da banalidade da intervenção, o que é devido em bôa parte ou exclusivamente a nós próprios. Não cabe aqui o exame das causas que determinaram e ainda continuam a determinar êsse estado de cousas: fatores de ordem psicológica (do médico e do paciente) e mesmo sociais. Mas a verdade é que devemos todos realizar trabalho reeducativo junto aos clientes no sentido de se dar à intervenção, tão desmoralizada, o seu devido valor, exigindo-se primeiramente toda uma série de exames clínicos e de laboratório, internando-se, após, os pacientes a fim de se instituir adequada terapêutica pre e post-operatória.
E mesmo com todos esses cuidados, ainda surpresas nos são reservadas!...
É o que tivemos com o caso que passaremos a relatar:
R. M. L., masculino, 16 anos de idade, residente nesta Capital, foi-nos enviado por clínico a 20 de Fevereiro de 1947 a fim de praticarmos a amidalectomia e adenoidectomia, pois apresentava passado de coréa, reumatismo politarticular agudo e estenose mitral.
Sob o ponto de vista oto-rino-laringologico a anamnese revelou passado de inflamações e dores de garganta repetidas e febrícula; resfriados fáceis; dificuldade respiratoria nasal, obrigando-o a respirar pela boca; respiração ruidosa noturna e salivação abundante.
No exame encontrámos hiperemia de todo o oro-faringe, notadamente dos pilares anteriores e das amídalas; aqueles apresentavam-se espessados, infiltrados, indicando processos inflamatórios repetidos; e as amídalas de volume pequeno, encastoadas, com superfície revestida de criptas, onde se notava puz. A rinoscopia posterior notámos grande massa de vegetações adenoides, hiperemiadas e recobertas por secreção catarral.
Diante de tal indicação clínica, baseados nos comemorativos gerais e no quadro local, pedimos a determinação do sangramento e coagulação a fim de submeter o paciente à intervenção o mais breve possível. Entretanto, dado que os tempos de sangramento e coagulação revelaram respetivamente 1'45" e 7,30", instituímos medicação prévia à base de Vitamina K e marcamos a operação para o dia 26 de Fevereiro, isto é, seis dias depois.
Utilizámos na intervenção, depois de convenientemente anestesiado, a técnica de dissecção das amídalas e curetágem das adenoídes. Sob o ponto de vista da anestesia e hemostasia, nada de anormal.
O doente foi internado com órdem de seguir os cuidados comuns quanto à dieta.
A tarde do mesmo dia (26/2) fomos chamados ao hospital, pois o paciente se queixava de acentuadas dores nas articulações dos ombros, pés e joelhos. Ao exame, notámos intenso edema e hipermia de ambos os joelhos, além de nodulos hiperemiados, simétricamente dispostos, isolados e polimorfos (nodulos eritematosos reumáticos). Intensa dôr à mais leve movimentação. Febre de 38º4 (vide gráfico A). Nos pés e nas articulações dos ombros, edema e hiperemia mais discretos; havia tambem acentuada dôr à mais leve movimentação.
Diante desse quadro pensámos em exacerbação do processo reumático devido ao trauma operatório. Instituimos imediatamente medicação salicilada (Leukotropin 10 cc na veia) e Penicilina (30.000 unidades de 3 em 3 horas).
No dia seguinte (27/2), persistência da febre alta (38º2), além dos edemas e dores articulares, agora comprometendo maior número de articulações (braços, mãos). Notámos que o paciente se apresentava com audorese abundante, agitado, com movimentações desordenada dos membros, de aspecto coreico, inconciente, não obedecendo às órdens dos enfermeiros; em determinado momento de distração destes, levantou-se do leito, inteiramente despido e, descalço, dirigiu-se ao banheiro, atravessando todo um corredor, expondo-se, banhado em suor, às correntezas de ar daquele corredor. Para conte-lo no leito, foi então necessário utilizar camisa de força.
No dia imediato (28/2) a febre mantinha-se alta e então, além da medicação à base de salicilato na veia e Penicilina intramuscular, instituimos ainda Soluthiazamida forte (1,0gr) na veia de 6 em 6 horas e Sulfatiazol (10 comprimidos por dia).
Estado de inconciencia, agitação e dores articulares ainda durante mais quatro dias, chegando a febre a atingir 40 graus (dia 3/3), 40º6 (dia 4 3) e 40º2 (dia 5/3).
fig quadro A pág 45
fig quadro B pág 45
No dia 4 de Março, quando a febre atingia a 40º6, apesar de ter sino administrado até então só de Penicilina cerca de 2.400.000 unidades, pensámos em comprometimento pulmonar (processo pneumônico). Entretanto, os exames clínicos e radiograficos resultaram negativos.
Chamado em conferência, o Dr. Plínio de Lima, confirmou a hipótese de reumatismo agudo exacerbado, tendo concordado com a medicação. Foi-lhe, nessa ocasião, dado tambem salicilato por via oral (Etsil).
Foram, nessa ocasião, realizados os seguintes exames:
EXAME DE SANGUE (REAÇÃO DE WIDAL)
EXAME CITOLÓGICO DO SANGUE:
NÚMEROS GLOBAIS
Hemoglobina em grs. % - 14,7 grs.
Hemoglobina em % do valor normal - 92 %
Glóbulos vermelhos - 4.7000.000 p.mmc.
Glóbulos brancos - 13.240 p.mmc.
Valor globular - 0,9
HEMOGRAMA DE SCHILLING
Mielocitos - 0,0%
Fórmas jóvens - 1,2%
Granulocitos neutófilos com núcleos em bastonete - 28,4%
segmentados - 49,6%
Granulocitos eosinófilos - 0,0%
Granulocitos basofilos - 0,0%
Linfocitos - 20,4%
Monocitos - 0,4%
Observações: - Série vermelha: - sem particularidades.
Série branca: - leucocitose moderada com neutrofilia acentuada e desvio acentuadíssimo para a esquerda. Desvio degenerativo evidente (granulações tóxicas em quasi todos os neutrófilos, anisocitose, alguns vacúolos citoplasmáticos); anaeosonofilia; linfopenia discreta; monocitopenia acentuada.
O quadro leucocitário é de um processo infeccioso, agudo, inicial, provavelmente supurativo, extenso.
(a) Dr. João Ruggiere.
HEMOCULTURA
O sangue, retirado por punção venosa, foi semeado asseticamente em meios líquidos e mantidos em estufa a 37º C.
Após a primeira repicágem em meios sólidos não observamos o crescimento quer de germes patogênicos quer de germes de contaminação. Resultado: NEGATIVO. (a) Dr. João Ruggiero.
O EXAME DE URINA revelou o seguinte:
Densidade - 1020
Ácido úrico - 0,46
Cloretos - 6,6
Fosfatos - 1,8
Uréa - 14,0
Indican e escatol - traços
Urobilinogênio, Albumina, glicose, acetona, ádico diacético, pigmentos biliares, ácidos e sais biliares, sangue, urobilina: não contem.
Exame microscópico: - elementos celulares escassos e sem particularidades a assinalar. Ausência de hemátias, cilindros e cristais. (a) Dr. João Ruggiero.
No dia 5 de Março instituimos estreptomicina (uma ampola de 1 gr. de 4 em 4 horas), durante o dia todo, num total de seis ampolas. Não se obteve resultado quanto à remoção da febre e dôr.
Diante da negatividade de tão intensa terapêutica, fizemos nova conferência, agora com o Prof. Celestino Bourroul, o qual confirmou o diagnóstico anteriormente feito e, em vista do estado do paciente, estabeleceu prognóstico reservado quanto à evolução. Nessa ocasião, o doente apresentava-se em acentuado estado de torpor e inconciência, sudorese abundante e grande abatimento geral; formação de escaras. Foi-lhe sempre e continuamente administrado sôro glicosado hipertônico na veia, gota a gota, e isotônico subcutâneo.
No dia 8 (11.º dia de operação e de início da molestia) a febre passou a ficar ao redor de 39º durante 3 dias e ao redor de 38º durante mais 4 dias. (Vide gráfico B).
As dôres se acentuaram gradativamente, exacerbando-se à simples movimentação passiva da cabeça. O paciente mantinha-se calmo embora incociente. De quando em quando, manifestações de delírio febril.
No dia 16 (com 19 dias de moléstia) foi feita punção occiptal resultando:
Punção sub-occiptal: deitado
Pressão inicial: 15; final: 2 - Manómetro Claude
Volume: 15 cc.
Aspecto: límpido, incolor.
Paciente: calmo.
Exame citológico:
Cels. em mm3: 1,4 (normal de 0 a 3)
Hemátias em n.m3: 0 (normal 0)
Exame químico:
Proteinas totais: 0,12 grs.% (normal 0,10 a 0,25 %)
Globulina: -
Relação: -
Cloretos em ClNa 7,43 grs.% (normal 7,0 a 7,55%)
Substâncias redutoras de glicose: 0,79%
Uréia: -
Reações das globulinas: R. de Pandy: Negativa
R. de Weichbrodt: Negativa
R. de Nonne (F.I.): Negativa
Benjoin: 00000. 02220. 00000
R. de Wasserman: negativa
R. de Steinfeld: negativa
R. para cistocercos: negativa
R. de floculação: negativa.
Quadro liquórico dentro dos limites da normalidade. (a) Dr. João Batista dos Reis.
No dia 17 houve surto de aumento de temperatura (39º4); entretanto, começava a apresentar-se mais lúcido, com ligeira melhora do estado geral, chegando a aceitar alimentos que se lhe punha na boca; persistência das dôres articulares.
Do dia 18 em diante a temperatura foi lentamente cedendo, chegando a atingir, no 23.º dia de tratamento, a 37º8, sendo então removido para sua residência, onde continuou a medicação antibiótica.
Na residência, a temperatura foi lentamente cedendo, até que no dia 23 de Abril deixa toda a medicação, pois a temperatura então passou a ser de 37º2.
O estado geral foi gradativamente melhorando, com sensivel diminuição das dôres e edemas.
Dois meses depois recebemos a visita desse paciente que se apresentava então bem disposto, bem nutrido, lucidez normal, não acusando, nesse intervalo, manifestações reumáticas.
Fazendo-se um balanço geral da terapêutica, enquanto esteve sob nossas vistas no Hospital, isto é, durante 23 dias, o paciente recebeu 5.500.000 unidades de Penicilina; cerca de 13,0 grs. de salicilato por dia (por via endovenosa e oral), ou seja aproximadamente um total de 2.300 grs.; 22 ampolas de Soluthiazamida forte e 210 comprimidos de Sulfatiazol ou seja um total de 116 grs. de sulfa; 6 grs. de Estreptomicina, além de grande quantidade de soro glicosado hiper e isotônico e de 600 grs. de sangue.
COMENTÁRIOS
Estudando-se cuidadosamente o evolver do presente caso, que constituiu problema para nós e alguns clínicos, no sentido de nos darmos a nós mesmos explicação sobre tão extranho fato, pareceu-nos que a melhor explicação nos era dada pelo quadro mórbido da febre reumática, hoje estudada no grande capítulo das moléstias alérgicas.
De fato. No post-operatório da presente observação vimos intensa febre que, embora não tivesse o caracter de infecciosa, contudo pela sua duração nos fez pensar em processo infeccioso em atividade, tanto que administrámos a competente medicação. Apesar de ter sido intensiva, não se obteve resposta à terapêutica, pelo fato de não existir, como os exames bacteriologicos demonstram, processo infeccioso.
É o que precisamente se dá no reumatismo: jámais germe específico foi encontrado, embora incansáveis pesquisas foram realizadas no sentido de se verificar, tambem nessa entidade mórbida, a obediência aos postulados de Koch : microrganismo específico encontrado sempre e somente no mesmo processo patológico, com capacidade de reprodução experimental.
Não se encontrando tal agente específico, Gräff, invocou a teoria, endossada tambem por Aschoff, do virus atuando na substancia intercelular colágena.
Mais recentemente, Weintrand deu ao reumatismo nova concepção - moléstia alérgica - em tudo semelhante ao que se observa na moléstia do sôro tão bem estudada por Von Pirquet e Schick. E de tal maneira tais processos - moléstia do sôro e reumatismo - se assemelham que o diagnóstico diferencial é feito sobre o conhecimento da administração ou não do sôro.
A explicação que se dá é a seguinte: um microrganismo, patogênico ou não, em contacto com as células do hospedeiro, produz proteínas específicas, a que se denomina de antígenos, que vão provocar nessas mesmas células reação de defesa tão intensa quão intensa fôr a invasão do germe; vencido o invasor, as células adquirem sensibilidade específica, de tal modo que o mais leve traço de antígeno vai desencadear grande reativação de defesa. As células, assim, atacadas agudamente por um germe adquirem capacidade crônica de defesa.
Nasce, para explicar todo esse mecanismo de sensibilidade, a, teoria interessante das cadeias laterais, analoga às dos compostos orgânicos.
O que se dá no organismo é precisamente esse fenômeno. Um germe aparentemente inócuo, fixado em qualquer setor do organismo (cárie dentária, amídalas, sinus, apêndice...) vai paulatinamente determinar sensibilização das celulas atacadas as quais, produzindo antígenos, vão enfraquecer a defesa, num processo de sensibilização lenta e geral. Constitue o que Lichtwitz denominou de quinta coluna (fifth column) bacteriana e sobre o qual devemos orientar a nossa observação. Assim se explica por que, muitas vezes, simples resfriado, o frio e outras causas de somenos importância podem desencadear processo, por exemplo, de nefrite grave e mesmo fatal.
Foi o que se observou em nosso caso. Paciente com surtos de reumatismo poliarticular agudo e consequentemente lesões sérias para o lado do coração, celulas nervosas, foi certamente sensibilizado de maneira lenta pelos germes das amídalas, de tal modo que o trauma operatório, desencadeando maior invasão de toxinas para as quais esse organismo estava sensibilizado de modo exuberante, resultou todo o quadro descrito, isto é, febre intensa e irremovivel, recrudecimento do reumatismo poliarticular, manifestações coreicas e agravamento da lesão cardíaca.
O agente responsavel pela sensibilização do nosso paciente se achava localizado nas amídalas. E assim acontece em grande número de casos.
De fato, Higbee, nos Estados Unidos, observou que, em mais de 50% de casos de febre reumática, esta é precedida de faringite e amidalite na infância. Eis aí um dado importante que deve ser bem explorado na anamnese. Outros dados existem que devem merecer a nossa atenção na história clínica. São pequenos sintomas indicadores do início da moléstia: fadiga e irritabilidade fáceis, perda de apetite e febrícula. Aquele A. teve a oportunidade de observar dois casos de febre reumática com comprometimento cardiaco: um em que não foi procedida a amidalectomia e outro em que, feita a intervenção, se desenvolveu quadro semelhante ao que apresentámos. O A. é de opinião que a amidalectomia é de valor antes do primeiro ataque de febre reumática e aconselha a remoção profilatica das amídalas nos casos em que se lhe conhece a tendência hereditária. Entretanto, quando a febre reumática já estiver estabelecida, a intervenção constitue ainda problema.
Em nossas observações posteriores a esta, com semelhante história clínica, orientamos sempre no sentido de saturar o organismo, nas vesperas, no dia e nos subsequentes, á intervenção, depenicilina e principalmente de salicilato, o qual se tem mostrado de atuação mais enérgica e valiosa.
CONCLUSÕES
1.º) A febre reumática é complicação grave que pode advir de amidalectomia, principalmente nos casos com predisposição hereditária ou sensibilização prévia por processos infecciosos;
2.º) nos casos suspeitos (passado reumático, coreico e demais complicações gerais), é útil saturar-se o organismo de penicilina e principalmente salicilato nas vesperas, no dia e nos subsequentes á intervenção;
3.º) nem sempre ha resposta benéfica a tais medicamentos, evolvendo então a moléstia dentro de seu ciclo; e
4.º) em casos de ocorência de febre reumática post-operatória, os anti-têrmicos, principalmente os salicilatos, parecem atuar mais eficientemente que as sulfas, penicilina e estreptomicina.
BIBLIOGRAFIA
Lichtwitz L. "Patologia e terapêutica da febre reumática" S. Paulo 1948
Higbee D. "A brief review of rheumatic fever. The role of tonsillitis in its etiology". Resumo in "Excerpta Medica Oto-Rhino-Laryngology" Vol. 1 n.º 1 Jan.º 1948 Amsterdam.