Ano: 1948 Vol. 16 Ed. 5 - Setembro - Dezembro - (1º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 199 a 230
A OSTEOMIELITE DOS OSSOS DO CRÂNIO E SEU TRATAMENTO - parte 1
Autor(es): DR. PAULO MANGABEIRA-ALBERNAZ (*)
Êste trabalho, de que certos itens vieram a ser apresentados como tema ao Segundo Congresso Brasileiro de Oto-rino-laringologia, reunido em janeiro de 1948 na Cidade do Salvador, foi especialmente preparado e escrito para concorrer ao Prêmio Prof. Eduardo de Morais, da Academia Nacional de Medicina. Por dificuldades técnicas para a obtenção de cópias radiográficas, os originais foram entregues à Academia sem as gravuras - fotografias, cópias radiográficas, desenhos, etc., embora no texto fôsse clara a referência às mesmas.
A comissão julgadora, composta do Dr. José Ribeiro Portugal, relator, e dos Profs. Renato Machado e José Kós, resolveu negar o prêmio ao trabalho. Conquanto seja o relatório secreto, não teve o autor dificuldade em apurar que o motivo da negação fôra a falta de documentação e de bibliografia, reconhecendo embora, a comissão, valor ao estudo.
Fiquem por esse meio avisados os futuros candidatos aos prêmios da Academia, que livro sem figuras e sem relação da bibliografia citada não pode ser premiado, exigência esta que a Academia se tem esquecido de fazer, previamente, aos candidatos.
Os possíveis leitores dêsse estudo vão ser seus verdadeiros juízes... e igualmente da comissão julgadora do Prêmio Prof. Eduardo Morais, de 1948, ao qual o autor concorreu, já em condições de não precisar se interessar pela consagração de seu nome, com o intuito exclusivo de dar movimento ao prêmio, criado faz quase três anos, e até então sem concorrentes. Era apenas mais uma homenagem do autor ao seu inesquecível mestre e amigo.
Dentre os vários capítulos da patologia óssea, poucos apresentam tantos pontos controvertidos, quanto o que trata da osteomielite dos ossos do crânio. Inúmeras são, nele, as questões ainda a a resolver, necessitando estudos mais aprofundados. Verdade é que, nos últimos tempos, muito temos progredido no que diz respeito sobretudo ao tratamento do mal, mas os conhecimentos que dêle possuimos são ainda muito imperfeitos.
A questão terapêutica é a mais discutida. Tratando-se de uma enfermidade, ora insidiosa, ora de marcha rápida, mas, em ambos os casos, sempre de consequências imprevisíveis, é lógico que nada mais importante do que seu tratamento. Qual o mais eficiente, qual o mais inócuo, qual o preferível - o médico ou o cirúrgico; nêste, qual o melhor, o conservador ou o radical; qual o momento de intervir: - tudo isso tem feito correr muita tinta, mas as opiniões continuam absolutamente discordes. A verdade, porém, é que, mormente na questão do tratamento, a diversidade de parecer é mais aparente do que real. A comparação ou a apresentação de casos díspares; a confusão de tipos, dada a inobservância dos mesmos: eis os motivos capitais da discordância nas opiniões.
Pretendo focalizar neste estudo os pontos mais curiosos do assunto, procurando esclarecer uma série de itens ainda pouco ventilados, mesmo em trabalhos modernos. Não se espere ler uma monografia do assunto. Vários pontos serão considerados apenas pela rama, em parte porque já vêm minuciosamente discutidos nos tratados e em trabalhos outros, em parte porque já há perfeito acôrdo a seu respeito.
1) A patogenia.
Três fatores representam papel do maior relêvo na gênese da osteomielite craniana: 1) o terreno; 2) o agente infeccioso; 3) o traumatismo.
O terreno é talvez o fator capital. Sendo a osteomielite, como o próprio nome está a dizer, o processo inflamatório da medula óssea, e sendo esta, nos ossos chatos, reduzida e adstrita à camada diplóica, só existirá osteomielite havendo díploe, e, quanto mais desenvolvida fôr esta camada, maiores serão as possibilidades de surgir o mal. Há, por conseguinte, relação direta entre o tipo ósseo e a enfermidade, e entre esta e a quantidade de tecido diplóico. Êste varia extraordinariamente nos ossos cranianos, sendo mais abundante, por exemplo, no temporal (mastóide e rochedo), e mais escasso em outros pontos, como nas grandes asas do esfenóide e no próprio temporal (escama), onde pode não existir, entrando assim a camada externa do ôsso e a vítrea, ou interna, em relação imediata.
O desenvolvimento da camada diplóica depende de vários fatores. Não se pode negar a ação predisponente ou causal de elementos constitucionais, mas sua maior ou menor abundância está ligada às glândulas de secreção interna, principalmente à hipófise. Levene, Johnson, Lowman e Wissing dedicaram estudos muito acurados a respeito da relação dessa glândula com a osteomielite craniana, as petrites e as flebites cranianas dos grandes seios venosos. Estudando seis mil crânios, dividiram-nos os mesmos, de acôrdo com o gráu de desenvolvimento ósseo, a extensão das células pneumáticas e a expansão da díploe, em quatro grandes agrupamentos. No primeiro grupo, a díploe era desenvolvida e bem vascularizada, enquanto as tábuas externa e internas apresentavam-se particularmente adelgaçadas. A abóbada craniana era espessa, mas de construção leve. É o que se observa na acromegalia. No segundo grupo, a expansão díplóica era nula, o crânio denso e duro, os seios e mastóides atrofiados. Nesses casos há insuficiência hipofisária congênita ou adquirida do lóbulo anterior da hipófise. No terceiro grupo, a díploe era desenvolvida, os seios muito grandes. A esclerose óssea era secundária; tinha início na tábua interna, atingindo depois a díploe. Observa-se nesses casos super-atividade do lóbulo anterior, seguida de hipo-função. No último tipo, as lesões ósseas apresentavam certa semelhança com as do primeiro grupo: pneumatização discreta, suturas patentes, dentição retardada, face e mandíbula pequenas. Trata-se de deficiência congênita (ou do início da adolescência) do lóbulo anterior, a qual causa o tipo chamado manísmo hipofisário. Destas observações, concluem os autores que a estrutura dos ossos cranianos sofre a influência do gráu de atividade do lóbulo anterior da hipófise, e que a incidência das osteomielite está dependendo do tipo do ôsso craniano, particularmente do desenvolvimento e da vascularização da díploe. Os tipos 1 e 3 são os em que, com maior facilidade, pode a osteomielite vir a desenvolver-se.
A díploe recebe a vascularização, quer da face cutânea, externa, pelos vasos do couro cabeludo, quer da face interna, dural, pelos vasos meníngicos. Está, desta sorte, em ligação direta com as duas circulações do crânio, e apresenta riqueza vascular notável. Um verdadeiro sistema vascular especial, descrito magistralmente por Breschet e por Trolard, distribui-se pelos ossos cranianos em todos os sentidos, perfurando-os, ora para o exterior, (como é exemplo capital a emissária mastóidea), ora para o interior. A distribuição desta rêde vascular vem assinalada minuciosamente nos tratados clássicos de anatomia, e não há razão para que aqui seja descrita. Os canais ósseos em apreço, contém, segundo Larger, além de uma veia calibrosa, uma artéria muito fina. Sua ligação com os vasos cutâneos e durais foi demonstrada por Zuckerkandl, mediante a injeção de substâncias adequadas no seio longitudinal superior.
"A topografia dos canais endocranianos de Breschet governa o progresso desta forma especial de osteomielite", afirmou Luc, reportando-se à forma invasora.
Quer o processo seja de origem hemática direta, quer de origem metastática, quer propagado da vizinhança, só poderá existir, quando houver camada diplóica ampla e ricamente vascular.
Outro fator a ser levado em consideração na questão do terreno é o próprio quimismo ósseo. Markus assevera que, nos ossos cranianos, há deficiência de elementos geradores de cálcio e de substância formadora de fibrina, elementos êstes responsáveis pela diminuição pronunciada de resistência local. Esta atividade nula da medula dos ossos cranianos, totalmente diversa da dos ossos longos, é um fenômeno que representa papel de importância no desenvolvimento do processo osteomielítico.
Isto, no que diz respeito à osteomielite em geral. O terreno deve ser ainda considerado no tocante a certos tipos do mal, mormente a osteomielite post-sinusítica, que é o tipo mais frequente e que mais nos interessa neste estudo.
Já demonstrara Zuckerkandl que a vascularização do seio frontal, isto é, de sua mucosa, estava em relação com a da díploe do ôsso frontal e do endocrânio. Injetando substâncias apropriadas no seio longitudinal superior, chegavam elas à mucosa da cavidade em estudo.
O processo de sinusite pode estender-se à díploe, mas, para que tal se dê, necessário se torna haver condições adequadas de terreno. De fato, o seio frontal é, do ponto de vista ósseo, formado por duas camadas de vítrea, uma anterior e outra posterior, que se unem em ângulo muito agudo, na parte mais alta e mais externa da cavidade. Êste tecido compacto pode por vêzes não existir. Já Schilling demonstrara que, em raros casos, tanto a parede anterior como a posterior, eram ambas formadas de tecido esponjoso, isto é, havia nesses casos falta da vítrea.
Furstenberg, por sua vez, verificou, no estudo seriado de 50 crânios, que, quer em caso de seio frontal amplo, quer pequeno, havia cavidades forradas por uma camada de asso compacto, mas em outras era abundante o tecido esponjoso, tanto na parede anterior como na posterior.
O estudo mais completo a respeito do problema é o de Sitsen. Em condições normais, o seio frontal cresce até os vinte anos. Observa-se, nesse período, marcada osteoclasia e intensa osteogênese nas paredes ósseas da cavidade, originando-se a primeira sobretudo da mucosa, e a última dos espaços medulares. Durante o crescimento do indivíduo, a osteoclasia diminui de intensidade, enquanto a osteogênese aumenta, dando, destarte, origem à formação de uma camada de ôsso compacto, de 200 a 300 micros de espessura, que separa a camada diplóica da mucosa cavitária.
Nas inflamações comuns do seio frontal, em particular nas crônicas, as paredes ósseas apresentam-se revestidas de osteoblastos, geradores de ôsso novo, o que quer dizer que tais inflamações vêm acompanhadas de um processo de osteíte superficial caracterizada pela osteogênese predominante, de que resulta às vêzes espessamento e esclerose do ôsso.
Esta osteíte superficial da sinusite comum nada tem de importante do ponto de vista clínico. Os germes podem, entretanto, ganhar profundidade, atingir a parte diplóica, medular, e desta sorte ter início o processo osteomielítico.
Tais estudos de Sitsen vêm demonstrar que a presença da camada vítrea no seio frontal não põe o paciente a salvo da osteomielite. É óbvio, porém, que, em ela não existindo, mais fácil e mais ràpidamente a osteomielite pode vir a instalar-se.
Convém, todavia, assinalar que pode haver um processo de osteomielite, sem haver seio frontal. No caso, referido por Brunner, de osteomielite do frontal consecutiva a escarlatina a lesão manifestou-se do lado esquerdo, onde não havia seio frontal.
Vê-se, pelo expôsto, que papel de suma importância representa o terreno na gênese do mal.
Na questão do terreno há ainda a ser levado em conta o estado do organismo. Os indivíduos mal nutridos ou depauperados, quer por deficiências alimentares, quer por doenças deprimentes anteriores (sobretudo a gripe, a febre tífica, etc.) são mais fácilmente vítimas do mal.
A fase de crescimento, de grande atividade, do sistema ósseo, influi muito no aparecimento do mal. Se é verdade que a osteomielite é observada em qualquer idade, é rara no velho e é mais frequente na criança e nos jovens.
Influem em demasia sôbre o terreno certas condições climáticas, e o estar o indivíduo sujeito a grandes variações térmicas. Nêsse particular é impressionante, nos Estados Unidos, a relação entre a osteomielite aguda difusa e a natação, sobretudo os mergulhos e saltos.
O agente infeccioso é o segundo fator. Sem êle, poder-se-ia dizer, o processo não pode existir. Acontece, porém, que os agentes causais são, na maioria dos casos, hóspedes normais do organismo. Nas fossas nasais, na pele, na bôca, nas amígdalas, etc., os estafilococos e os estreptococos existem, independente de qualquer estado patológico. Não será preciso assinalar sua existência, em estado de virulência e patogenicidade, nos casos de processos inflamatórios sinusais, agudos ou crônicos. Ora, são justamente êstes germes, e principalmente os primeiros, os agentes mais comuns dos processos osteomielíticos cranianos. Ao que afirma Woodward, o estafilococo é encontrado, como agente causal, em 73% dos casos.
Em trabalho recente, Galloway chega à conclusão de que a dificuldade, até agora existente, de explicar a difusão do processo, decorre de ser o agente etiológico, não os estafilococos, mas estreptococos anaeróbios ou micro-aerófilos, que veio a encontrar após utilizar técnicas especiais. Já Williams e Heilman, como Pastore e Williams, assinalaram o fato, atribuindo a causa principal da osteomielite do crânio a estreptococos hemolíticor anaeróbios. Êstes autores seguiram a técnica de Watkyn - Thomas e Mac Kenzie, de retirar o material de exame do interior do sequestro.
A osteomielite pode ter por agente o micrococcus militensis. Lowe e Lipscomb descreveram, há pouco, um caso em que o processo se localizou na região parietal direita.
Guillot descreve também um caso de osteomielite do frontal, cujo agente determinante foi o bacilo de Friedlander.
De qualquer sorte, porém, o agente causal mais comum são os estafilococos e estreptococos, sendo que os primeiros são em geral os responsáveis pelos processos tórpidos e mais rebeldes, e os segundos pelos de marcha rápida e violenta.
O terceiro elemento causal é o traumatismo. É óbvio que êle só apresenta esta importância em determinados tipos de osteomielite. Nas formas hemáticas diretas e nas metastáticas, o traumatismo pode deixar de existir. Representa êle papel de importância indiscutida nas formas ditas de propagação, quando o traumatismo muitas vêzes, senão na maioria delas, é cirúrgico. As osteomielites consecutivas às intervenções nos seios da face são consideradas, por todos os autores, as que apresentam maior letalidade. Ainda assim, queremos crer que o papel atribuído ao traumatismo tem sido muito exagerado no seu valor. Autores há que ligam importância enorme a certas manobras cirúrgicas, em particular às operações feitas com limas, como as de Vacher. Outros acentuam a influência perniciosa da cureta. Entretanto, vemos casos post-cirúrgicos fatais, em que a cureta não foi empregada, tais os de Lack. Isto é a prova de que, se o traumatismo pode sem dúvida influir na gênese da osteomielite craniana, seu papel é apenas coadjuvante, não se podendo comparar ao do terreno e do elemento infeccioso.
No estudo da patogênia, é de grande importância saber por onde tem início o processo patológico e qual das tábuas é mais atingida pela osteomielite.
Para diversos autores, o mal começa pela camada diplóica. Os estudos de Zuckerkandl estabeleceram a ligação das circulações venosas pericrânica e endocrânica com a zona diplóica dos ossos. Daí se admitir que o processo tenha início na díploe (na medula óssea e no tecido esponjoso com a rica rêde venosa), o que facilita a propagação aos ossos vizinhos, não respeitando as suturas interósseas.
Há quem conteste esta hipótese. Wílensky, por exemplo, é de opinião que as lesões ósseas são predominantes na tábua externa. Pollock acentua o fato, mas faz ver que a tábua externa só é mais facilmente atacada nos processos por continuidade, isto é, na osteomielite consecutiva a sinusite operada. No caso de sei o processo hemático, é a tábua interna, a seu ver, a atingida em primeiro lugar. E o citado Wilensky reputa a tábua interna a mais resistente à infecção.
Furstenberg estudou, em cortes histológicos, o processo, e chegou à conclusão de que a osteomielite tem início pela tábua interna. Encontrou inúmeros sinais de lesão precoce nesta parte do ôsso.
Não é idêntico o parecer de Sitsen, baseado igualmente no estudo histo-patológico. As alterações mais graves surgem no ôsso compacto: a díploe oferece grande resistência. O início do mal dá-se no periósteo, mas o autor acentua que por periósteo deve entender-se o periósteo externo, a dura-máter e a superfície interna dos seios da face.
Há aqui a considerar: lo.) por onde o processo tem início; 2o.) por onde se dá a difusão.
Quanto ao primeiro, não resta dúvida que o processo tem de começar pela díploe, uma vez que sem díploe não há osteomielite. Não havendo medula, no máximo pode haver osteíte. Sitsen pôde demonstrar, pelo menos nas sinusites, que estas se acompanham - já o vimos há pouco - de um processo de osteíte superficial, que, uma vez aprofundado, atinge a díploe e pode propagar-se aos ossos. Poder-se-á considerar a parede do seio frontal como parede interna? Cremos que não.
Por onde se dá a difusão? Vimos que os pareceres são discordantes. As hipóteses de Wilensky caem por terra diante da observação clínica, pelo manos em nossa experiência. A explicação de Pollock também não satisfaz.
A verdade é que, quer o processo seja hemático, quer seja por continuidade, a parede mais lesada tanto pode ser a interna como a externa. É uma ilusão supor que o aspecto externo do crânio corresponda ao estado da tábua interna. Em certos casos, as lesões predominam, corroem em extremo a tábua externa, respeitando mais ou menos a interna. Em outros, porém, é a interna a mais atingida. No caso 5, a tábua externa (Fi. 24) estava totalmente corroída. No caso 4, as lesões eram quase nulas na tábua externa, mas extensas na interna e na média (caso suspeito de hemático: sinusite-septicemia-osteomielite; (Fig. 18). Isto prova que a. difusão do processo por esta ou aquela parede, a preferência por uma delas, não está bem estabelecida. Queremos crer que depende de maior ou menor riqueza vascular do periósteo interno ou externo, ou do grau de micro-tromboflebites que se processem nos vasos, quer de uma parede quer de outra, pois que a morte do ôsso depende da falta de irrigação sanguínea. É preciso, neste particular, pôr em realce o osso branco, já morto, e o osso necrosado, em face de destruição.
Nas formas com sequestros, vemos bem a lesão total do osso, sem preferência por esta ou aquela tábua.
II) Os tipos clínicos
Quem quer que se dê ao trabalho de estudar a osteomielite craniana, notará desde logo que os autores não estão de acôrdo na distribuição das formas clínicas. Há alguns, por sua vez, que, referindo-se, nos títulos de seus artigos, a osteomielite progressiva e difusa, descrevem em realidade, na casuística, observações de osteomielite localizada. O que, porém, torna mais evidente a necessidade da classificação, é a diversidade de opiniões no que diz respeito á terapêutica. Se analisarmos com cuidado os argumentos dos não-intervencionistas, esmiuçando-lhes as observações, veremos claramente que não existiria esta discórdia na questão do tratamento, se os casos tratados pelo método conservador tivessem sido previamente classificados, isto é, se os observadores, antes de tratar dêles, tivessem levado em consideração as diversas modalidades por que a enfermidade se apresenta. Alguns autores tentaram contornar a dificuldade, com o parecer demasiadamente simplista de achar que os casos super-agudos são sempre fatais, e os sub-agudos e crônicos podem ser resolvidos pelo método conservador, que denominaremos de oportunidade. Quanto mais nos aprofundamos no estudo do problema, mais nos convencemos de que certos tratamentos conservadores, são indiscutivelmente preciosos, mas apenas nos casos em que há, para êles, indicação. Não podemos encarar o problema - e adiante vamos ver os seus pormenores - com a simplícidade adotada por muitos autores. Êle é, em verdade, extremamente complexo, e cremos que a base da terapêutica tem de ser o estabelecimento de uma classificação clínica tão precisa, quanto possível.
Inúmeras são as classificações propostas. Citarei, em primeiro lugar, a mais comum e mais simples, que divide os tipos em dois: Limitado e difuso. É claro que isto não basta para a orientação terapêutica, nem para o estudo nosológico da osteomielite craniana.
A da Mayo Clinic, apresentada no trabalho de Williams e Heilman, considera três tipos: 1) o fulminante, 2) o localizado, 3) o difuso.
Em seu exaustivo estudo, Bayer admite quatro formas clínicas: 1) a traumática, 2) a posterior a doenças inflamatórias dos seios da face, 3) a de origem hemática metastática, e 4) a primitiva.
Campbell propõe a sistematização em quatro grupos: 1) o agudo fulminante, 2) o localizado com sintomas graves e edema ràpidamente progressivo, 3) o localizado com sintomas graves e formação de sequestros, e 4) "um tipo em que há necrose óssea associada a traumatismo".
Para Sitsen, cujo trabalho é dos mais documentados e originais, há quatro tipos: a) o traumático, b) o consecutivo a processos inflamatórios das cavidades pneumáticas do crânio, c) o metastático, d) o chamado primitivo. Do ponto de vista histopatológico, admite o mesmo autor apenas duas formas: a) a exsudativa, em particular a purulenta seguida de necrose mais ou menos extensa do osso; e b) a produtiva que, por ser precedida da primeira, é caracterizada principalmente por elevada produção óssea.
Das classificações, a mais completa é a de Brunner. Estabelece êle, de início, a separação, de acôrdo com a marcha do processo, adotando os tipos agudos e crônicos. Dos agudos assinala: 1) o tipo fulminante (osteoflebite fulminante) e 2) o tipo protraído (ou prolongado), sub-dividindo êste em a) progressivo e b) auto-limitado. Nos crônicos, admite: a) o crônico de tipo primitivo, isto é, crônico cujo início apresenta as manifestações clínicas da osteomielite aguda; e b) o crônico que não tem tais características, e que chama de crônico de tipo secundário.
Ressalta da exposição destas classificações a falta de sistematização. É lógico que, para estabelecer uma divisão precisa de tipos, não podemos encarar simultâneamente origem e evolução. É necessário, por conseguinte, estabelecer uma classificação que se baseie na origem, e outra na evolução. Desde logo fique, porém, declarado que, do ponto de vista terapêutico, o papel mais importante deve caber, exceção feita dos casos de origem específica (tuberculose, sífilis, etc.), à classificação pela evolução.
Quanto à origem, devemos admitir três tipos:
1) Primitivo - hemático: sífilis, tuberculose, doenças eruptivas, brucelose, etc.
2) Metastático: a) simples, b) salteante.
3) Secundário (por continuidade): a) espontâneo; b) traumático.
O primitivo é raro. A lesão inicial primitiva do processo osteomielítico, sem lesão outra qualquer, em outro ponto do organismo, foi assinalada por von Bergmann, segundo afirma Schilling. Fischer relatou igualmente um caso de osteomielite do parietal, em uma mulher de 39 anos, que nada apresentava no aparelho auditivo, nem nas fossas nasais e suas cavidades acessórias. O tipo de origem luética ou tuberculosa é igualmente raro. Em geral o aspecto é localizado. Vejamos o caso abaixo, muito elucidativo neste particular, e de grande raridade pelo seu aspecto pluri-lesional.
Caso no. 1 (Resumido) - Maria José L., branca, com 32 anos, solteira, brasileira, apresenta-se ao Hospital da Sta. Casa de Campinas a 8 de Maio de 1947. Diz que, desde o mês de março vem sentindo dores de cabeça de localização variável, mas não muito intensas. Cêrca de quinze dias antes da entrada no Hospital, surgiram pela cabeça caroços (sic) pequenos, dolorosos ao toque, e as dores de cabeça tornaram-se mais intensas.
Exame - Nada nas fossas nasais. Ausência quase total dos dentes. Amígdalas pequenas com bom aspecto. Nada na rino-faringe. Nada nos condutos e tímpanos.
Esparsas pelo crânio, observam-se, em número relativamente elevado, pequenas saliências arredondadas, as maiores do diâmetro máximo de 2 a 2, 5 cents. Dolorosas à pressão um pouco forte, são moles, deprimiveis, em absoluto comparáveis ao chamado abcesso de Pott. As maiores apresentam-se na região temporal direita; várias são percebidas na fronte, nas proximidades da linha dos cabelos.
Fig. 1
Radiografia: lesões múltiplas, por todo o crânio, de aspecto osteítico, bem limitadas, de tamanho variável (Figs. 1 e 2). Vê-se nitidamente que a descalcificação interessa as três camadas ósseas.
fig 2
fig 3
Tratamento - Apesar da paciente não representar sinais clínicos de sífilis, foi instituído o tratamento específico pelo arsenox, combinado ao bismuto (bismugalol). As melhoras foram rápidas, e a paciente curou-se (Fig. 3). Examinada em começos de abril de 1948, nada mais apresenta no crânio.
Ainda do tipo hemático são os casos resultantes de doenças gerais. Brunner refere um caso grave de osteomielite crônica, após escarlatina.
O tipo metastático é o em que o processo aparece em relação a outro já existente (ainda ou prèviamente existente). Metge registrou um caso em que o processo craniano manifestou-se após o aparecimento, no antebraço, de um abcesso consequente a um tiro. Cita ainda outro em que a osteomielite, localizada no occipital, apareceu após nefrectomia.
Neste tipo há duas formas: a simples, comum, e a salteante, de Luc, em que o processo não apresenta a marcha normal, progredindo lenta e sorrateiramente pelo ôsso, mas se manifesta por lesões em pontos diferentes do crânio, deixando entre si zonas indenes.
O tipo secundário é o mais frequente. É em geral consecutivo a sinusites. Ainda aqui, devemos levar em consideração duas formas diferentes: a forma espontânea e a forma traumática. No primeiro caso, o processo inflamatório, localizado geralmente no seio frontal, atinge os ossos do crânio, independentemente de qualquer tratamento cirúrgico. Algumas vêzes tem se querido atribuir à simples punção do seio maxilar o ponto de partida do processo osteomielítico. Isto, porém, só seria admissível, se ficasse demonstrada a existência de lesões ósseas no maxilar superior, antes de apresentarem-se elas no frontal ou no parietal.
A forma secundária traumática é a em que o processo pode ser considerado claramente como uma complicação de processos cirúrgicos. É o tipo mais frequente, e, como vários autores o assinalam, tanto podem os casos ser observados nas mãos dos aprendizes mais bizonhos, como dos mestres mais abalizados.
Como acabamos de ver, esta sistematização, salvo no que se refere aos tipos determinados pela sífilis e pela tuberculose, não apresenta grande importância quanto à terapêutica.
No que diz respeito à evolução clínica, devemos dividir a osteomielite dos ossos do crânio em quatro tipos:
1) Super-agudo
a) localizado
b) difuso, tipo fulminante
2) Agudo
a) localizado
b) difuso, tipo salteante de Luc.
3) Sub-agudo - lento, difuso, progressivo dito osteomielite invasora.
4) Crônico
a) contínuo
b) por fases
O tipo super-agudo é de violência insólita. O processo manifesta-se com tal impetuosidade, que bem merece o nome de fulminante. Ataca o osso de maneira rapidíssima e a violência do processo é tal que, na forma difusa, já êle se estende dentro de pouco às meninges e ao encéfalo, causando a morte em 24 a 48 horas.
Entretanto, se o paciente apresenta desenvolvimento rudimentar da díploe, a inflamação fica resumida a pequena área. É o caso da seguinte observação.
Caso no. 2 - Marcos N., branco, 19 anos, brasileiro, solteiro, operário, apresenta-se à consulta na Clínica Oto-rino-laringológica do Hospital da Sta. Casa de Campinas a 20 de Dezembro de 1941, queixando-se de que apanhou um resfriado há dez dias. Imediatamente começou a sentir dores violentas de cabeça, localizadas na fronte, e a testa ficou inflamada. Não sente obstrução nasal, e diz haver corrimento, como um catarro amarelado, por ambas as fosses nasais. Queixa-se de febre diária, que não excede de 38,o6. Estado geral bom. Não consegue, porém, conciliar o sono, tal a intensidade da dor. Não teve calafrios até agora.
Exame - Grande abaùlamento da testa, acompanhado de intensa rubefacção. Tumefacção dura, reluzente. O edema atinge as pálpebras, superiores e inferiores, impedindo a abertura dos olhos (Figs. 4 e 5). Não é possível o menor contacto com o processo frontal, tão fortes são as dores.
Fossas nasais permeáveis. Pus amarelo, espêsso, no meato médio esquerdo. Septo desviado, convexidade não muito pronunciada à direita. Meato médio direito livre. Dentes: ausência do primeiro molar superior direito; primeiro molar superior esquerdo reduzido a raizes. Amígdalas enormes em estado de inflamação críptica purulenta aguda. Secreção purulenta discreta na região coanal esquerda. Bloco de adenóides no centro.
fig 4
fig 5
Radiografia: Opacificação total, homogênea, dos seios maxilares, veladura dos frontais. Pontos suspeitos de destruição óssea no osso frontal, bem acima dos seios (Fig. 6).
Fig. 6
Tratamento - No mesmo dia - 20. XII, o doente apresentou se à consulta, de urgência, às 17 horas - cibazol 3 grs. de vez, depois 2 grs. de 4 em 4 horas .
No dia seguinte, abertura larga da coleção frontal. Deu uns 300 cc. de pus espêsso extremamente fétido. Ôsso desnudado e rugoso.
Exame de pus: flora microbiana rica, vários germes. Exame da urina: traços de albumina leves, alguns leucócitos isolados, raros cilindros hialinos.
A 27 de Dezembro, operado. Abertura dos seios maxilares, que se apresentaram cheios de secreção purulenta, mucosa profundamente alterada, muito espêssa. Esvaziamento dos etmóides pela via transmaxilar. Abertura dos frontais por via externa (operação atípica). Ressecção da parede anterior dos seios, por osteomielite algo extensa. Descolamento e extirpação da mucosa doente. Pus na parede posterior do seio frontal direito, surgindo repetidamente após enxugamento. Trepanação da parede: abcesso extra-dural pequeno, com paquimeningite localizada. Sutura lateral. Dreno no centro (Fig. 7).
Fig. 7
Epícrise - Sequeqùências normais. Alta curado após 20 dias.
19.V.1942 - Re-admitido com novo abcesso na testa, com flutuação franca. Re-operado: enorme abcesso no mesmo local.
24-VI. Alta curado.
28.X.1942 - Apresenta-se para exame. Nada mais sentiu e nada de anormal apresenta.
14.VII.1944 - Nada mais sentiu até a data (Fig. 8).
Exame - Nada nas fossas nasais. Amígdalas grandes, adenóides em quantidade regular. Secreção muco-purulenta no cavum. Nada na região coanal. Hipertrofia bilateral da mucosa do septo, na região coanal.
Não se pense, entretanto, que êstes casos de osteomielite localizada deixam de apresentar sério perigo para a vida. Vejamos o Caso no. 3.
Fig 8
Caso no. 3 - Sebastiana S., mestiça, 27 anos, solteira, brasileira, residente à rua Prof. Luiz Rosa, 30, apresentou-se ao Serviço de Oto-rino-laringologia do Hospital da Santa Casa de Campinas no sábado 15 de Agôsto de 1942, no período da tarde, trazida pela Assistência. Queixava-se de dores violentas, insuportáveis, na testa e na metade esquerda da face. Foi-lhe feita medicação de urgência (cataplasmas, analgésicos), que prescrevi por telefone, e só a 17 tive ensêjo de examinar a paciente.
Exame - Grande edema da testa, deformando-a por completo. Dores violentas, cada vez mais intensas. Pronunciada irritação do pituitária. Pus no meato médio esquerdo. Ausência do segundo premolar superior esquerdo. Primeiro molar reduzido a raizes. Nada de anormal na gargarta Secreção purulenta na região coanal esquerda.
Radiografia: opacificação difusa dos seios frontais, mais pronunciada no esquerdo; ainda assim, não atinge a parte mais elevada do seio. Seios maxilares pouco claros. Trama óssea do frontal apagada na metade esquerda do ôsso, sobretudo na parte mediana.
18.VIII. - O estado da paciente exige a abertura da coleção frontal. Anestesia por infiltração. Abertura do processo purulento e exposição da parede óssea do seio frontal esquerdo. Esta se apresenta arroxeada e sangra muito. Abertura da cavidade: mucosa muito espessa, pus fétido em abundância. Cavidade enorme. Abertura de lâmina papirácea, e esvaziamento do etmóide, que está sèriamente comprometido.
O seio frontal esquerdo dirige-se para trás e francamente para a direita, invadindo largamente êste lado. Abertura do septo inter-sinusal. Seio direito igualmente cheio de pus fétido. Abertura e raspagem do conduto fronto-nasal direito. Sutura. Drenagem com gaze iodoformada, pela fossa nasal esquerda.
27.VIII. - Apresenta-se com temperatura de 37o, 37o, 6, mas em estado de torpor. Responde com dificuldade às perguntas que lhe são feitas.
Exame ocular (Dr. Martins Rocha) : Reflexo à luz preguiçoso à esquerda. Fundos normais.
Re-oporada neste mesmo dia. Ressecção dos seios frontais. Limpeza das cavidades. Trepanação da parede posterior, na região suspeita, do seio frontal esquerdo. Exposição da dura-máter, cujo aspecto é normal, Apesar disso, incisão da dura, punção do cérebro, em vários pontos e em várias direções, tôdas em branco. Gaze iodo formada. Ferida operatória largamente aberta. Cibazol, um comprimido de 4 em 4 horas (tomou 35 comps.). Vacina antipiogênica de estoque. Extrato hepático (Figs. 9 e 10).
26.X.1942 - Ainda há secreção. Radiografia: opacificação total dos seios maxilares.
27.X. - Operação. Seio maxilar esquerdo cheio de pus fétido. Mucosa espessa, poliposa. Etmóide vazio. Conduto fronto-nas°1 muito amplo. Ligação franca entre os seios maxilar e frontal.
Seio maxilar direito cheio de pus fétido. Mucosa espessa. Etmóide seriamente comprometido. Abertura ampla do seio esfenoidal, que também está doente.
15.I.1943 - Plástica frontal.
21.III. - Alta curada.
2.IX.1943 - Novo abcesso frontal. Operada. Ressecção de tôda a parte doente do ôsso. Tratamento a céu aberto.
23.III.1944 - Curada
30.IV.1944 - Novo abcesso. Operação mais ampla, com ressecção mais larga do frontal.
25.VIII. - Alta curada, com a plástica feita.
24.XI.1945- Nada mais apresentou até esta data. Não há secreção nas fossas nasais.
fig 9
fig 10
Os tipos agudos podem igualmente se apresentar sob a forma localizada e a difusa. É neste tipo que se observa a osteomielite salteante de Luc. O processo parece proceder aos saltos, de um ponto para outro, sem seguir por continuidade, como se observa no tipo dito progressivo.
O tipo sub-agudo é o mais comum e é o em geral consecutivo às sinusites, sobretudo etmóido-frontais, agudas ou crônicas, quase sempre agudas ou em surto agudo. Caracterizam-se por aquela marcha insidiosa, traiçoeira, que a pouco e pouco se difunde a quase todo o crânio, estendendo-se por fim em direção à base, quando então já nada mais há a fazer. Esta é a osteomielite dita invasora lenta, em contra-posição à invasora rápida, que é a super-aguda e raramente a aguda.
O tipo crônico, bem estudado por Brunner, pode apresentar variações. Sua característica principal é a evolução pois assim dizer contínua durante anos, ou a evolução por fases, o que explica o fato de certos autores afirmarem só poder o mal ser considerado curado, após dois anos de observação sem sintomas, o que evidentemente é exagêro. Brunner refere um caso, muito característico, em que foi necessário espaço de tempo de nove meses para formar-se um sequestro, e êste não .sofreu alteração nenhuma durante três anos e meio. Outra observação curiosa do autor diz respeito a um homem de 25 anos em que, após a operação do seio frontal, pequenos sequestros se eliminaram espontâneamente, durante um ano, pelas fossas nasais.
Os tipos de osteomielite consecutivos às sinusites comportam-se de maneira diferente. Ainda não observei nenhum caso de processo post-sinusítico espontâneo de marcha rápida, e também nenhum caso de osteomielite post-sinusítica cirúrgica de marcha tórpida. Pode, e já vimos, haver casos em que a marcha é lenta, mas não tão sub-aguda quanto na forma espontânea. Verdade é que com a terapêutica bem orientada, a marcha do mal pode ser, até certo ponto, modificada.
O diagnóstico da forma clínica, isto é, de sua classificação, torna-se por vêzes difícil, sobretudo quanto à causa. Veremos dentro de pouco o Caso n ° 4, em que, após sinusite maxilar aguda bilateral de uma semana de duração, surgiu septicemia estafilocócica. Depois que esta foi jugulada pela terapêutica sulfamídica auxiliada por transfusões e imuno-transfusões, é que apareceram lesões de osteomielite no alto do frontal e na sutura paríeto-frontal direita. O processo indubitávelmente foi sub-aguda progressivo. Mas foi consequente à sinusite ou hemático? É pergunta difícil de responder.
Parecerá a priori artificial a divisão de tipos por nós apresentada. Hirst já disse que "é mais importante reconhecer as possibilidades de difusão, do que gastar tempo e esfôrço tentando a diferenciação de tipos". É justamente para poder aquilatar a possibilidade de difusão do processo, que a classificação se torna necessária. Porque ninguém poda negar que há tipos em que há tendência a essa difusão, e há outros em que ela não existe. Separá-los é, pois, o primeiro esfôrço a ser feito para a orientação terapêutica.
Em verdade, não é teórica a divisão do processo pela evoluçao. Quer ela dependa do terreno, quer do agente infeccioso, não padece dúvida que há processos agudos e super-agudos. O fato já assinalado de um caso localizado passar a ser difuso, de um caso agudo ou sub-agudo apresentar marcha super-aguda, não contesta a regra, uma vez que tôda terapêutica tem de tomar por base a evolução do caso. Brunner, extremamente pessimista para os casos de marcha crônica, não esconde que a terapêutica, nestes casos, é preventiva: evitar que o caso agudo passe a crônico é o ideal terapêutico.
II) Diagnóstico
Há a considerar, no estudo da osteomielite dos ossos do crânio, três fases: a) a de início; b) a de estádio; c) a final, das complicações.
A de início não tem características próprias, definidas. Imaginemos algumas hipóteses.
Primeira - Um indivíduo no período de estádio de escarlatina, ou com um fleimão perínéfrico, apresenta dores de cabeça, insônia, instabilidade nervosa, etc.. Admitamos que o exame de sangue revele grande leucocitose - 20.000, e polinucleose marcada. Poderá o clínico ou o cirurgião suspeitar de osteomielite do crânio?
Segundo - Outro indivíduo sofre de sinusite crônica, de que às vêzes aparecem surtos agudas; ou, após um resfriado, vêm se queixando de dores mais ou menos fortes na, fronte, na região superciliar, deres que se exacerbam pela compressão. Ao cabo de dias, aparece febre mais ou menos elevada, as dores se tornam menos localizadas, e o estado geral vem a ser atingido em gráu mais ou menos intenso. O exame do sangue - hemocultura e contagem com hemograma - dá resultado negativo para o primeiro e revela o quadro assinalado na primeira hipótese, quanto ao segundo. Poderá o clínico ou o cirurgião justificar, com esses dados, o diagnóstico de osteomielite?
Terceiro - Um terceiro indivíduo, operado há dias de sinusite etmóido-frontal por via externa (ou interna), apresenta, em pleno post-operatório normal, aumento da supuração, dores de cabeça mais ou menos localizadas, elevação de temperatura (38°, 6-39°), mal-estar geral. O laboratório traz os mesmos dados obtidos nos casos 1 e 2. Poderá o clínico ou o cirurgião firmar o diagnóstico de osteomielite?
Estas três hipóteses, mormente as duas últimas, são as mais comuns. Não há quem possa fazer o diagnóstico de osteomielite com esses dados. Serve isso para demonstrar que o diagnóstico da osteomielite, na fase inicial, é impossível. Yerger diz categoricamente que "o diagnóstico precoce é essencial, mas é às vêzes difícil nos casos de marcha insidiosa". Em qualquer caso, com exceção dos fulminantes, é clinicamente impossível fazer-se o diagnóstico precoce.
Decoulx, Patoir e Bédrine opinam que "o período de início é muito importante de ser conhecido, pois é sòmente nesta época que o tratamento cirúrgico pode ser eficaz. É, portanto, preciso, saber despistar os primeiros sintomas". O que os autores não dizem é em que consistem êstes sintomas, e de que modo pode ser feito êste diagnóstico do período inicial.
Na própria fase de estádio, não é ainda fácil o diagnóstico. Richter refere um caso de osteomielite consecutiva a infecção geral aguda que, existindo embora ao tempo da primeira operação, não foi percebido no ato cirúrgico.
Em seu exaustivo estudo, diz Bayer que, "em presença de corrimento nasal mais ou menos profuso, dor frontal, edema mole da testa, cefaléia, edema das pálpebras e quemose, náuseas e vômitos, febre elevada e pronunciada leucocitose, pode fazer-se uma tentativa de diagnóstico da osteomielite".
É claro, pois, que mesmo na fase de estádio, o diagnóstico está longe de ser simples. Vejamos, em estudo isolado, os vários sintomas dêste período, esclarecendo-lhes o valor real.
1) O edema fofo - O sintoma que a maioria dos autores reputa mais característico da osteomielite craniana é o chamado edema fofo, abcesso ou tumor mole, edema deprimível, o tumor fofo de Pott. Em verdade foi o eminente patologista inglês Percival Pott o primeiro a perceber, em 1750, a relação entre o abcesso pericraniano (e também o extradural) e a osteomielite craniana, descrevendo o sintoma pelo nome de edema ou tumor fofo. Daí, a designação Pott's puffy tumor por que é conhecido o sintoma.
Pode dizer-se que não há discussão a respeito do valor dêste sinal. Alguns, como Yerger, chegam a reputá-lo patognomônico do mal. Wilensky acha igualmente que o edema mole do couro cabeludo representa um aspecto clínico expressivo da afecção. Já em 1909, em sua clássica monografia, Luc declarava: "O que é mais característico da infecção da medula óssea é o aparecimento do edema flutuante a certa distância da região do seio, em vista da formação de uma coleção sub-perióstea que absolutamente não se comunica com a cavidade sinusal".
Campbell insiste no valor do edema deprimível, mole, mas chama a retenção para a possibilidade da confusão diagnóstica do mesmo com o edema devido a um abcesso sub-periósteo localizado. Não estou de acôrdo com êste parecer, pois o tipo referido em segundo lugar é duro, muito doloroso, e se acompanha de fenômenos inflamatórios em que a pele toma parte, o que não se observa no edema fofo.
Certos autores confundem igualmente a reação observada nas sinusites ditas fluxionárias e nas osteomielites frontais localizadas, com o sintoma em estudo. Simpson, por exemplo, considera o primeiro sintoma do mal o edema da região da fronte com oclusão do ôlho correspondente ao seio doloroso. Foi o que vi-ma. no nosso caso no. 2.
Não são tão entusiastas do valor do sintoma alguns autores que se têm ocupado do assunto. Hirst, numa de suas observações, declara: "Três semanas depois e cêrca de seis meses após a mastoidectomia, notou pela primeira vez, um dos sintomas mais tardios da osteomielite ótica progressiva, isto é, um edema no lado direito do crânio, acima da porção escamosa do temporal".
Mosher, com tôda sua autoridade, foi quem pôs de novo em fóco o valor do edema fofo. Em 1933 já dizia êle que o edema da testa era sinal muito positivo de que a medula óssea estava atingida pela infecção, até o limite do edema. Em seu trabalho fundamental com Judd, acentua que "o edema dos tecidos moles da testa é o primeiro sinal de infecção da medula óssea e do periósteo".
Em nossa opinião, o edema fofo é um sinal de alto valor diagnóstico, mas já indica fase avançada da enfermidade. Ninguém põe em dúvida que êle traduz o abcesso pericraniano, e já Schilling acentuara, em 1905, que esta formação externa corresponde sempre a processo idêntico interno, isto é, a abcesso extradural. Ora, para que chegue uma coleção purulenta a formar-se por baixo do osso, e depois, sôbre ou fora dêle, é necessário que o processo já tenha passado pela fase de microflebite, descalficação e necrose óssea, o que, nas formes sub-agudas e crônicas, leva dias para desenrolar-se. Acresce que, ao que observamos, parece que o abcesso interno (extradural) forma-se antes do externo, pericraniano. Em dois doentes encontrei abcessos extradurais correspondentes a fócos de necrose óssea, sem ainda existirem os abcessos externos, isto é, sem haver dinda o abcesso ou tumor fofo. Isto demonstra claramente que êste sintoma, de valor diagnóstico indiscutível, está longe de ser precoce na osteomielite.
Mosher assevera que o edema fofo precede de sete a dez dias as manifestações ósseas demonstráveis pela radiografia. Num de nossos casos (Caso no. 4), o que observamos foi que a rádio só foi declaradamente positiva quando o edema apareceu. Aliás, é difícil concriar a hipótese de preceder o edema as lesões rádio-visíveis com o mecanismo patogênico. Se o edema é já o abcesso, a lesão óssea rádio-visível tem que forçosamente o preceder.
Pela citação há pouco feita de Campbell, está-se a ver que o edema mole é às vêzes confundido com o edema comum. Vários autores falam em edema mole, edema da testa, etc.. A verdade é que o edema da testa que aparece, por exemplo, em certos casos de sinusite frontal, pode nada ter que ver com a osteomielite. O edema fofo é característico, por assim dizer inconfundível. Apresenta-se em pontos diferentes, como uma saliência mole, deprimível (de onde a designação de pitting edema, edema excavado). Em verdade, pela palpação, sente-se o plano profundo, em nível mais baixo do que o da zona circunvizinha. A impressão é mesmo de uma bolsa de ar, mal cheia, o que traduz rigorosamente o cognome puffy abscess, que lhe dão os autores de língua inglêsa.
Do expôsto, infere-se que o edema fofo possui valor diagnóstíco indiscutível e talvez seja o sinal mais característico da enfermidade. Mas, infelizmente, é um sintoma tardio, que só se apresenta em período avançado da fase de estádio.
2) A cefalalgia - É um sintoma constante na osteomielite craniana. De intensidade variável, depende em grande parte da localização do processo. Toma, às vêzes, carácter muito significativo. No caso de osteomielite hemática observado por Zollner, o sintoma predominante eram dores de cabeça intensas e inexplicáveis. O exame cuidadoso permitiu encontrar-se um foco de osteomielite na parte mais elevada do crânio, independente de qualquer ligação com o aparelho auditivo e os seios da face.
Para Brown, "o sintoma de que os doentes mais frequentemente se queixam é a dor de cabeça, que pode variar de desconfôrto medíocre a dor cruciante".
A dor varia muito, de acôrdo, como já o vimos, com a sede da inflamação, mas varia ainda mais com o tipo. No nosso Caso n.° 4, as dores eram pouco intensas, mas incômodas. Nos primeiros dias, eram menos toleráveis à noite, mas cediam de todo ao emprêgo de um analgésico. Neste tipo hemático (provàvelmente) de marcha tórpida, a dor de cabeça nada tinha de característica, muito embora, na operação, fôsse encontrado enorme abcesso extra-dural e intensa paquimeningite. Nos casos consequentes a sinusite etmóido-frontal de tipo espontâneo, as dores podem ser violentas, mas naturalmente se confundem com as da sinusite. Se o indivíduo apresenta, como nos casos 2 e 6, grandes processos edematosos e mesmo coleções purulentas na testa, as dores são intoleráveis, mas não se pode dizer que corram por conta da osteomielite, e sim por ação da pressão do pus na cavidade frontal e na cavidade do abcesso.
Desta sorte, o sintoma cefalalgia possui valor muito relativo.
3) A febre - É igualmerte um sinal pouco expressivo, e que está diretamente dependente do tipo de infecção. Em geral, nos casos de osteomielite sub-aguda progressiva, a temperatura muitas vêzes não excede de 37, o5. Nos casos post-sinusíticos, surge após a operação. Aí, de fato, a volta da febre leva a admitir a hipótese de uma complicação, e o especialista ficará de sobreaviso, pois, indubitàvelmente pode ser que se trate de osteomielite. Não vai, porém, além disso, o valor diagnóstico da febre.
4) O aumento do corrimento nasal é um sintoma particular, pois só existe nas formas ligadas às sinusites. Seu valor só pode ser levado em consideração na osteomielite post-cirúrgica. Nesse caso, assume êle, de fato, papel de certo valor, pois, pelo menos, alerta o especialista para a hipótese de uma recrudescência no processo sinusítico com provável complicação.
5) A septicemia crônica acompanha sempre a osteomielite do crânio, asseveram alguns autores. Não nos parece exata esta afirmativa, no que diz respeito à generalização. Na maioria dos casos de osteomielite, a hemocultura é negativa. Froboese, em se referindo à osteomielite dos ossos longos, diz que: nela está sempre presente a bacteremia, a qual se cura muita vez espontâneamente. A hemocultura negativa, diz êle, não é prova de que não exista uma infecção latente, uma vez que sabemos que os germes, especialmente os estafilococos, têm afinidade especial pela medula óssea vermelha. Além disso, como demonstrou Askanazy, êstes germes podem manter-se vivos por longo espaço de tempo - 32, 35 e até 40 anos - na estrutura dos tecidos. De outra parte, devemos nos lembrar de que, em muitos casos, admitem os autores que os germes causais são os estreptococos anaeróbios, e a hemocultura dá resultado negativo, porque os meios empregados não são apropriados ao desenvolvimento dêsses germes.
Entretanto, o estado geral do doente, e sobretudo o hemograma, demonstram que a hipótese da septicemia, em todos os casos, não pode ser admitida.
Estudados, em suas linhas gerais, os sintomas mais imporatntes do mal, devemos acentuar agora a diversidade que êles apresentam segundo o aspecto clínico do caso, isto é, levando em conta os tipos ou modalidades apresentados pela osteomielite craniana. Só então cuidaremos da parte relativa aos exames subsidiários, principalmente o rádio-diagnóstico.
Nos tipos super-agudos, o diagnóstico impõe-se. Vimos o Caso n.° 2, da espécie localizada. O grande abcesso cutâneo, a história do caso, o exame nasal, a reação geral e local ostentavam o tipo nosológico. Na forma dita fulminante, não há igualmente dificuldade diagnóstica. Esta começa a aparecer nos tipos agudos, sobretudo nas ligados a sinusites agudas ou sub-agudas, justamente porque os sintomas da doença inicial e da complicação coincidem em seu aspecto. Nas formas hemáticas e metastáticas, igualmente o diagnóstico é sempre tardio, porque o estado geral já se acha afetado, e só as manifestações locais chamam a atenção sóbre a osteomielite.
Mais difícil ainda se apresenta o diagnóstico nos tipos subagudos e crônicos, quer post-sinusíticos, quer metastáticos. Casos há em que, mesmo estando o doente sob observação permanente e cuidadosa, a osteomielite surge, desenvolve-se paulatinamente, e só chegamos a lobrigá-la quando já em estado adiantado, como se deu no meu caso no. 4, adiante narrado em suas minúcias. O paciente apresenta sinusite maxilar bilateral violenta, extremamente dolorosa, seguida logo de septicemia estafilocócica. Quando esta cede e o estado geral é ótimo, começa o doente a queixar-se de dores de cabeça discretas, mórmente â tarde e à noite, dores que cedem a analgésicos comuns. Só alguns dias depois - o paciente é visto diàriamente - nota-se edema deprimível, mole, na região parietal. A radiografia revela, pela primeira vez, o processo osteomielítico, neste ponto e na testa. A operação mostra lesões absolutamente inesperadas quanto à extensão, inesperadas quer pela estado local, quer pela reação orgânica geral.
O exame clínico, a evolução do caso, o aspecto local e geral não permitem, por conseguinte, em grande número de casos, e em vários tipos de osteomielite craniana, chegar-se a diagnóstico.
Vimos o parecer de Bayer. Ouçamos outra autoridade na matéria, Herbert Tilley. No seu modo de ver, nos casos post-sinusíticos, devemos levar em grande conta as manifestações seguintes: lo.) o aparecimento de cefaléia intensa, pungitiva, difusa; 2o.) a persistência de temperatura elevada ou simplesmente média, nas sequências operatórias; 3o.) a existência de uma zona de edema localizado; 4o.) o aumento do corrimento purulento.
Tilley, como Bayer, tenta criar uma síndrome que permita ao menos suspeitar da osteomielite. Tudo, porém, não passa de tentativa. E as síndromes descritas evidentemente se reportam apenas a um determinado tipo do mal, e sob forma aguda, justamente nos casos em que o diagnóstico apresenta menor dificuldade.
Chegamos, por fim, ao estudo dos meios diagnósticos subsidiários de que, sem favor, o mais valioso vem a ser o exame radiográfico.
1º . - O exame radiográfico representa, no diagnóstico da osteomielite craniana, um dos elementos mais valiosos. Parecerá à primeira vista que êle deveria resolver, de modo definitivo, o problema, mas infelizmente assim não acontece. No que diz respeito a seu valor real, as opiniões estão mesmo francamente divididas.
Adson e Hempstead consideram extremamente valioso o exame radiográfico, pois que "a rarefação óssea pode ser demonstrada, antes de aparecer a flutuação". Êste é igualmente o parecer de King: "O estudo precoce e repetido, por meio da radiografia, localiza a área doente pelo aspecto adelgaçado e pela descalcificação, antes de haver propriamente necrose".
Já Markus se contenta em dizer que a radiografia demonstra frequentemente de modo precoce a existência do processo. Cita um caso de Schmitz, em que o diagnóstico pela rádio foi possível no quinto dia de doença.
Infelizmente não é essa a opinião dominante. No estudo, por exemplo, da osteomielite experimental dos ossos longos, em cães, Scheman, Lewin, Sideman e Janota verificaram que o quadro clínico se apresentou com inflamação localizada, dor, calor, rubefacção, mas sem lesões radiológicas precoces. Só nos estádios seguintes, sub-agudo e crônico, apareceram alterações radiológicas definidas.
Mosher declara que a radiografia só dá evidências positivas da osteomielite, após sete a dez dias do início do edema, portanto da infecção da medula, pois que êste é o prazo necessário ao desenvolvimento da necrose. Macmillan, por sua vez, acentua que o ôsso está infeccionado de 4, 5 a 5 cents. além da área necrótica visível na radiografia.
O estudo mais pormenorizado até agora feito sôbre o assunto é de autoria de Bayer. Fêz o autor experiências em cadáveres frescos, perfurando o ôsso com trépanos de calibres diferentes, afim de determinar a lesão mínima que a radiografia pode demonstrar. Chegou á conclusão de que é preciso mais de uma incidência para tornar visível a lesão óssea, o que depende não só da sede, como da extensão da mesma. Por vêzes tem de se recorrer à estereografia e mesmo á tomografia. É de parecer que, em poucos casos, pode a doença ser diagnosticada pela radiografia tão precocemente quanto no sexto dia, e em muitos casos a descalcificação não é aparente até a segunda e a terceira semana (14 a 21 dias). Nas formas agudas exsudativas da osteomielite, é, sobretudo, possível que a radiografia não seja de muito valor no descobrimento das lesões ósseas. E afirma, por fim, que pode existir um processo osteomielítico de uma semana a vários meses de duração, sem nenhuma evidência radiológica nítida no ôsso.
Como bem o frizam Mosher E Judd, a rádio apenas mostra ôsso necrótico, não ôsso infectado.
É possível, entretanto, em determinadas localizações do mal, perceber suas manifestações com certa precocidade.
No nosso Caso n.° 4, o abcesso mole apareceu na região têmporo-parietal esquerda a 9 de Junho. O doente tivera uma sinusite maxilar aguda com início a 7 de Maio; a 15, septicemia (hemocultura positiva em 24 horas para estafilococo dourado), a 24, hemocultura negativa. A radiografia de 14 de Maio revelou obscurecimento, não opacificação, do seio maxilar esquerdo, e véu discreto no frontal do mesmo lado. As de 23 de Maio mostraram obscurecimento de ambos os seios maxilares e veladura dos dois seios frontais. Na radiografia sagital direita, percebe-se, nas imediações da sutura coronal, certo gráu de opacificação, representado por uma placa esbranquiçada, mais densa, pois, do que o osso normal, de uns três centímetros de comprimento, cujo centro é menos, muito menos calcificado, do que o osso normal. Êste aspecto concidiu rígorosamente (até pela superposição das chapas), com a necrose franca observada nas rádiografias feitas a 20 de Junho, após a abertura do abcesso fofo (11 de Junho) ter mostrado o processo osteítico. É, pois, indubitável que a lesão óssea rádio-visível precedeu o aparecimento do abcesso fofo, pelo menos de dezessete dias.
Infelizmente, porém, êstes cases são esporádicos, e a verdade é que, mesmo nesse paciente, as manifestações radiográficas nele patentes dezessete dias antes do aparecimento do abcesso fofo, só foram na realidade percebidas pelo estudo posterior das chapas de 23 de Maio e só então percebi as alterações da estrutura óssea já mencionadas. Não se pense, entretanto, que isso se deu por não ter estudado as radiografias com o devido cuidado, como veremos dentre de pouco.
É preciso levar em conta, na osteomielite dos ossos do crânio, a questão da calcificação óssea, até agora descurada pelos que se têm ocupado do assunto.
Comecemos por investigar com cuidado as manifestações ósseas radiográficas da osteomielite. As alterações da estrutura óssea têm, já o vimos, como característica principal, a descalcificação mais ou menos pronunciada, típica do processo necrótico. Há, a princípio, uma condensação, determinada pela congestão local, e que tem por caráter mais evidente o apagamento da trama óssea. A esta fase, vai seguir-se a de absorção (desde o ôsso branco morto, à necrose total), que se manifesta pela rarefacção óssea em grau crescente, até sua ausência por destruição completa, radiológicamente demonstrada pela ausência localizada do tecido ósseo. Temos, por conseguinte: lº ) condensação óssea, falta de nitidez da estrutura: - aspecto radiológico de placa mais clara, menos permeável, do que o osso normal; 2.°) rarefacção discreta, irregular: - aparecimento de placas, sulcos, manchas de contorno irregular, em que a calcificação existe, mas é menos densa do que a do osso normal; 3o) descalcificação total ou, pelo menos, muito pronunciada: - ausência de tecido ósseo em placas irregulares, como se o osso estivesse perfurado. No caso da formação de sequestros, vemos em meio da zona descalcificada, ilhas de super-calcificação, de formas variegadas, em pontos diversos.
Expostos êstes fatos, passemos a estudar a calcificação normal do asso. Obedece ela a uma regra constante, fixa, apresentando-se uniforme em todo o osso, em particular no frontal? De nenhum modo. Inúmeras vêzes vemos alterações da estrutura óssea, perturbações da calcificação verdadeiramente insólitas, em indivíduos que não apresentam processos inflamatórios ou outros, atuais, dos seios da face, como também não sofrem de nenhuma afecção óssea local ou geral. Estas alterações da estrutura óssea são absolutamente análogas às das fases 1 e 2, acima descritas na osteomielite, o que demonstrei em trabalho anterior.
Nas casos referidos no estudo a que acabo de reportar-me, notava-se, não só diversidade e variedade dos tipos das alterações da estrutura óssea, como também seu aparecimento em qualquer idade: tanto aos 15 como aos 63 anos. O sexo e a raça igualmente não mostravam ter influência sôbre o fenômeno.
A leitura dos casos clínicos citados e da descrição das lesões ósseas, demonstradas nas figuras, provam de modo absolutamente indiscutível que há, muita vez, no ôsso reputado normal, distúrbios de calcificação que, por seu aspecto, tornam impossível o diagnóstico radiográfico precoce da osteomielite. Tais manifestações estão longe de ser excepcionais. Reunindo um total de 852 radiografias, correspondentes a 802 pacientes (chapas estas selecionadas num grupo de perto de 1.500), verificamos que havia
seios normais em 216
seios patológicos em 636.
A calcificação apresentou-se normal em 161 casos apenas; era irregular em 691.
Dividindo as radiografias em grupos obtivemos:
a) Calcificação normal e seios normais............................. 74
b) Calcificação normal e seios patológicos............................87
c) Calcificação irregular e seios normais...............................155
d) Calcificação irregular e seios patológicos.........................536.
Convém não esquecer que estas radiografias foram em geral solicitadas como exame subsidiário para o diagnóstico de sinusites, daí a grande freqùência de seios patológicos.
Destas pesquisas, conclui-se que, em 636 radiografias com seios patológicos, havia 536 com perturbações da calcificação, sobretudo do osso frontal, portanto 84, 2% de calcificações irregulares. Em 216 radiografias, em que os seios apresentavam aspecto normal, em 155 foram encontradas perturbações da calcificação, portanto 71, 7%. Se levarmos em conta o fato, há pouco assinalado, de que as radiografias foram exigidas para diagnóstico de sinusites, chegamos à conclusão de que as perturbações de calcificação incidem na mesma porcentagem, quer haja manifestações patológicas dos seios, quer não.
Diante de tais fatos, como pode o especialista firmar o diagnóstico da osteomielite, mesmo no caso de manifestar-se no curso de sinusite ou em conseqùência de uma operação de sinusite? Daí a explicação de, na maioria dos casos, a intervenção ser tardia. O diagnóstico é feito, quase sempre, no estádio avançado do mal, quando as complicações já se apresentaram.
O valor da radiografia simples é, pois, muito relativo para o diagnóstico. Na doença em franca fase destrutiva, porém, é ela um elemento indispensável para o estudo da marcha da doença e para fiscalizar o resultado da operação, se foi completa ou não.
Pouco há a acrescentar no tocante aos exames subsidiários. A hemocultura e o próprio hemograma têm valor relativo, como veremos no Caso n .O 4, sobretudo.
Em suma, o diagnóstico da osteomielite craniana é feito sempre na fase tardia das complicações. De modo geral, só por acaso, nas formas sub-agudas e crônicas, pode ser firmado o diagnóstico no período de início e no de estádio. O sintoma mais característico é sem dúvida o abcesso fofo de Pott.