Versão Inglês

Ano:  1953  Vol. 21   Ed. 5  - Setembro - Outubro - ()

Seção: -

Páginas: 181 a 188

 

ABCESSO DO SEPTO NASAL DE ORIGEM DENTÁRIA

Autor(es): DR. JOÃO DANIEL LOPES - SÃO PAULO

O abcesso do septo assim como o hematoma, são processos relativamente raros. O hematoma do septo é uma coleção sanguinolenta ou sero-sanguinolenta, que se localiza entre a cartilagem e a pituitária. Na maioria dos casos, resulta de um traumatismo que ocasiona a fratura da cartilagem quadrangular. Daí a frequência de encontrar-se o hematoma do septo nos boxeurs e em pessoas que sofreram contusões no nariz. O derrame sanguíneo, se coleta entre as duas faces do septo fraturado dando lugar a um tumor em sacola (Laurens).

Excepcionalmente podemos observá-lo espontaneamente em pacientes com varíola, escarlatina, epistaxe ou convalescentes de febre tifoide.

Outrora, a evolução do hematoma levava muitas vezes à formação do abcesso; hoje graças aos antibióticos esta entidade morbida tende a desaparecer.

O abcesso do septo, bem mais raro do que o hematoma, pôde se apresentar em relação com varíos elementos que lhe dão origem. Segundo Mangabeira Albernaz dividem-se em:



Os traumáticos cirúrgicos, são consequentes às operações realizadas no septo nasal, nos cartuchos ou nas paredes das fossas nasais ao se infectarem.

Os traumáticos por acidente, muito mais comuns, são precedidos sempre pelo hematoma que evoluiu sèpticamente. Constituem mesmo, no dizer de Laurens, "o último termo da evolução do hematoma". É o abcesso hemático de Lermoyez.

Os traumáticos, segundo J. Richier, constituem 80 % dos abcessos do septo.

Os não traumáticos ou propagados, são muito mais raros: 20%.

Os propagados diretos podem ter origem no rinofaringe, após uma intervenção cirúrgica ou uma angina, como sucedeu no caso descrito por Passow, em que, horas após a raspagem das adenóides e ablação da cauda dos cartuchos inferiores em um rapaz de 15 anos, manifestou-se uma angina com febre alta seguindo-se o abcesso do septo.

Os de origem sinusial aparecem como complicações de sinusites; Bourgeois, citado por J. Richier, relatou um caso de abcesso do septo, após sinusite gripal agúda.

Os de origem nasal, são consequentes às rinites agúdas ou crônicas. Mangabeira relatou um caso de abcesso do septo em paciente portador de leischmaniose nasal.

Os de origem cutânea, os mais comuns desse grupo, apresentam-se como complicações de lesões cutaneas vestibulares, principalmente na infância: furúnculos do vestíbulo, etc.

Os de origem dentária, são os mais raros (15% dos não traumáticos diretos). São geralmente resultantes de um granuloma ou abcesso peri-apical localisado em um incisivo central, lateral ou em um canino.

Os não traumáticos indiretos ou metastáticos são complicações de infecções gerais. Têm sido observados como complicações de erisipela grave (caso de Viale), em doentes com diabetes (caso de Stefani), em doentes com varíola, gripes, escarlatina e em convalescentes de febre tifóide.

Conforme dissemos inicialmente, os abcessos do septo são manifestações morbidas bastante raras.

Lambert Lack em 17 mil doentes examinados, encontrou 12 casos.

Mangabeira Albernaz em 11 anos (até 1930), encontrou 4 casos.

J. Richier em 4 anos, encontrou 5 casos: 2 em boxeurs e 3 em acidentados de automóvel.

Em nossa clínica civil e hospitalar, em 5 anos, tivemos oportunidade de observar 5 casos, dos quais 2 em uma semana... (25-11-52 e 29-11-52).

Clinicamente o abcesso do septo se caracteriza por tumor em sacola, semelhante ao observado no hematoma e que obstrue as fossas nasais, temperatura elevada, dores ao nível da piramide nasal, que se propagam para a face, edêma do lábio superior e às vezes edêma da face.

O prognóstico do abcesso do septo quanto à estética nasal é muitas vezes mau. A necrose da cartilagem quadrangular e sua destruição determinam uma curvatura em sela e um entalhe em golpe de machado ao nível da crista nasal, no limite da cartilagem com os ossos próprios.

O tratamento deve ser cirúrgico e precoce. Incisão ampla, retirada dos sequestros, lavagem do interior das membranas com solução fisiológica com antibióticos, e, se necessário, cauterizações. Manter a drenagem enquanto houver secreção; curativo compressivo com o fim de aproximar as duas faces da pituitária. Deve-se também usar altas doses de antibióticos e renovar o curativo pelo menos cada 24 horas.

As complicações do abcesso do septo, hoje pouco frequentes graças aos antibióticos, são várias, desde as que se referem apenas à deformação do nariz, até as que põem em perigo a própria vida do paciente tais como as trombo-flebites, as osteomielite dos ossos do crânio, a meningite e os abcessos do cérebro.

Após estas considerações de ordem geral, entraremos no assunto que motivou êste trabalho: um abcesso do septo de origem dentária.

Se os abcessos do septo em geral são raros, muito mais raros são os obcessos do septo de origem dentária. São tão raros que muitos compêndios da especialidade não o mencionam e poucos são os especialistas que tiveram a oportunidade de ver um caso. A literatura mundial, segundo a Enciclopédia Médico Cirúrgica de Oto-Rino-Laringologia de 1951, não se refere a mais de 30 casos.

No Brasil, segundo Mangabeira Albernaz até 1931 haviam sido apresentados 3 casos de abcesso odontógeno do septo: 2 do professor Eduardo de Moraes, citados por alto num estudo apresentado à "Semana da Criança", em 1927, na Bahia, e um, seu, em 1927. Alem destes conhecemos mais 3: 1 do Dr. Homero Cordeiro, publicado em 1933 nesta Revista; 1 do Dr. Olivé Leite, apresentado ao I.º Congresso de O.R.L. em 1938, no Rio de Janeiro; e, finalmente, um do Dr. Mauro Candido de Souza Dias, ainda não publicado.

O primeiro caso de abcesso odontógeno do septo foi publicado por Killian em 1889 e o segundo por Riccie em 1903 (Mangabeira).

Tivemos a oportunidade de compulsar grande número de compêndios e revistas da especialidade, entre êles o Year Book de 1940 a 1950 e os Archives, não encontrando nem uma publicação a respeito.

O modo como esta infecção, partindo do dente, atinge o septo nasal, é explicado, pelos que se dedicaram ao assunto, de quatro maneiras
1.º) por via linfática;
2.º) por continuidade atravéz o osso;
3.º) pelos condutos vasculares e nervosos;
4.º) pela infecção de um processo morbido pré-existente.

julgamos a infecção por continuidade atravez o osso a mais frequente; o processo partindo do dente atinge o ápice, formando um granuloma ou abcesso. Do desenvolvimento do processo supurativo resulta comprometimento do osso, aí revestido por cortical muito fina, e daí, pode facilmente atingir a base septal, atacar o periósteo e o pericôndrio e constituir o abcesso.

O caso que tivemos a oportunidade de observar foi o seguinte

OBSERVAÇÃO

Nome: R. J. Marques
Idade: 22 anos.
Côr : branca.
Estado civil: solteiro.
Profissão: cozinheiro.
Residência: S. Paulo.
Data da consulta: 29-11-52.

Anamnese - Há dias sentiu dores de dente, que aumentaram progressivamente, seguindo-se inchação na gengiva superior, ao nível do incisivo central esquerdo. No dia seguinte as dores aumentaram intensamente, refletindo-se em toda a cabeça, seguindo-se tonturas, astenia, mal estar geral, entupimento do nariz e febre.

Julgando estar resfriado, foi a uma farmácia e tomou uma injeção antigripal; seguiu-se um ataque que lhe deixou o corpo todo arroxeado (sic). Diz que em seguida vomitou muito e que perdeu os sentidos, tendo sido atendido por um médico.

A noite sentiu-se pior; o nariz mais entupido e dolorido, a febre alta acompanhada de calafrios, as dores no dente e na cabeça não lhe permitiam dormir. Notou então que o lábio superior começou a ficar edemaciado.

Pela manhã procurou um dentista para arrancar o dente que doía (incisivo central superior esquerdo). Diz que o dente extraido apresentava um granuloma. Informa que após retirar o dente não sentiu melhora, porém à noite a gengiva desinchou um pouco, e que pela fossa nasal esquerda começou a sair uma secreção amarelada extremamente fétida; o nariz se tornou mais sensível, a respiração mais dificil e as dores de cabeça continuaram. Há 3 dias começou a sair secreção mucosa pela fossa direita.

Como se achasse pior, aconselhado por um farmacêutico, resolveu procurar o nosso consultório.

Sempre teve bôa saude, nunca tendo sofrido afecções nasais ou para-nasais nem sofreu traumatismo no nariz. Não é sujeito a dôres de cabeça nem de dente.

Antecedentes hereditários: sem importância para o caso.

EXAME

Paciente muito nervoso, faties abatido, hálito e expiração horrivelmente fétidos.

Rinoscopia: tumoração em sacola, mole e simétrica, obstruindo totalmente ambas as fossas nasais. Secreção muco purulenta mais abundante na fossa esquerda, recobrindo parte da cabeça do cartucho inferior e a porção visível do assoalho da fossa, A pressão, com estilete, nota-se saída de secreção serosa atravéz de pequenas fissuras ao nível da zona de Kisselback do lado esquerdo. Intensa dôr à pressão no dorso do nariz e ao nível dos seios da face, principalmente do esquerdo. Dorso do nariz, alargado. Devido ao forte máu cheiro não fizemos rinoscopia posterior.

Boca: Edema do lábio superior. Dentes em bom estado. Falha na arcada esquerdo superior no ponto correspondente ao incisivo central esquerdo extraído há 5 dias, notando-se, porem, secreção muco purulenta no interior da cavidade alveolar. Nada para o lado da abobada palatina.

Faringe: mucosa ressecada; nada mais digno de nota.

Pescoço e ouvidos: nada de anormal.

Firmado o diagnóstico de abcesso do septo de origem dentária e devido à gravidade do caso, quanto à estética nasal (pois o paciente está assim há 7 dias) e mesmo quanto ao estado de intoxicação em que se encontra, resolvemos intervir imediatamente, o que foi feito em nosso Serviço no Hospital Sta. Edwiges. Pedimos imediatamente exame radiográfico da cavidade nasal e dos seios da face, (fig. 1) ; eis o laudo do Radiologista:

- Diminuição da fenda respiratória nasal esquerda, notando-se aspecto fusiforme da mucosa junto ao septo nasal. - Ass.: Dr. J. Moretzsohn de Castro.

Após anestesia local, com solução de percaina a 2%, fizemos, pela fossa esquerda, ampla abertura do abcesso, no ponto clássico para a operação submucosa de Killiam, pela qual saiu abundante secreção muco purulenta muito fétida.

Cuidadosamente, com uma cureta céga, limpamos o interior das mucosas e retiramos os restos da cartilagem transformada agora em massa, com aspecto de caseum. Destruição completa da cartilagem quadrangular.

Em seguida, com uma seringa-enema de jacto contínuo, lavamos o interior da cavidade com 150 cc. de água fervida à qual foram adicionados 10 cc. de tintura de merthiolate, iseguindo-se nova lavagem com 20 cc. de soro a que juntamos 200.000 u. de penicilina.

Deixamos um pequeno dreno de borracha na incisão e fizemos tamponamento bilateral compressivo, com gáse penicilinada e curetamos delicadamente a cavidade alveolar.

Durante a tarde e à noite saiu pelo dreno pequena quantidade de secreção mucosa com máu cheiro. Receitamos 400.000 u. de penicilina e meia gr. de estreptomicina para ser aplicadas cada 12 hrs.

No dia 30, examinamos novamente o paciente pela manhã. Encontramo-lo nas melhores condições gerais. Passou bem a noite e não teve mais febre. O lábio superior está menos edemaciado e o paciente, enfim, está se sentindo bem. Retiramos o dreno e o tampão; fossa direita ampla. Fossa esquerda com secreção mucosa no assoalho e sobre o cartucho. Já não se nota o máu cheiro que havia ontem. Após limpeza da fossa esquerda, fizemos lavagem do interior das mucosas com 20 cc. de sôro e 200.000 u. de penicilina. Em seguida, colocamos novamente o dreno e tamponamos cuidadosamente ambas as fossas, procurando aproximar ao máximo, as membranas.


Fig. 1 - Diapositivo I antes da operação - Diminuição da fenda respiratória nasal esquerda, notando-se aspecto fusiforme da mucosa junto ao septo nasal.


No dia l, fizemos novo curativo pela manhã; lavagem com sôro mais penicilina. Já não há máu cheiro. Retiramos o dreno. Deixamos um compressor de repto, o qual foi retirado à noite e substituído por um tampão de gase penicilinada.

No dia 2, o paciente não sente mais dôres, mesmo à pressão na piramide nasal. As membranas já se apresentam bem coaptadas e em cicatrização. Ausência de máu cheiro. Deixamos apenas na fossa esquerda um tampão de algodão com pomada de penicilina.

No dia 3, o paciente está em boas condições. Mucosas cicatrizadas. Não sente mais dores nem máu cheiro. O lábio superior sem edema, apenas permanecendo o dorso do nariz ligeiramente alargado.

Fizemos tirar nova radiografia de frente e de perfil: (laudo do radiologista nas figs. 2 e 3).


Fig. 2 - Frente: Adelgaçamento do repto que apenas é perceptível como linha divisória entre as duas fossas nasais. Ambas as fendas respiratórias apresentam as mesmas dimensões. Nota-se a zona de erosão alveolar correspondendo ao incisivo superior.



Fig. 3 - Lateral: Nota-se erosão ossea do maxilar superior ao nível do assoalho da fossa nasal esquerda no 1/3 anterior e continuando-se com a zona de erosão do alvéolo correspondente ao incisivo lateral extraído (Veja radiografia antero-posterior 3 dias após a operação, para mostrar essa zona do maxilar superior).


Dia 3, alta hospitalar. Continuou fazendo curativos no consultório. Foram aplicadas mais 2 milhões de unidades de penicilina (400.000 u. cada 24 hs.). No nariz, assou por mais alguns dias pomada de penicilina.

Durante 10 dias o paciente compareceu ao consultório para controle de tratamento, tendo recebido alta completamente curado no dia 15 de Dezembro. Não houve, graças aos cuidados a que se submeteu e às altas dóses de antibióticos que usou (6 milhões de u. de penicilina em 10 dias e mais 5 grs. de estreptomicina nos 5 primeiros dias), modificação da estética nasal conforme se pôde observar nas fotografias tiradas 15 dias depois da alta. (Figs. 4 e 5).

 

Fig. 4 e 5


SUMMARY
The author makes the study of the abscess of the septum of dental origin, making reference to its rarity. He says that the medical world litterature up to 1952 makes reference to only 30 cases and Brazilian medical litterature has know only 3 cases and refers to 3 more.

He presents the following case which he had the opportunity to attend, with X rays and photographs of the patient.

BIBLIOGRAFIA

1. GEORGE LAURENS - Compendio de O.R.L.
2. O. KORNER - K. GRÜNBERG - Enfermidade de la Garganta, Nariz y Oido.
3. THOMPSON - Diseases of the nose and throat.
4. DENKER-ALBRECHT - Oto-Rino-Laringologia.
5. SEGURA y CANUIT - Oto-Rino-Laringologia pratica.
6. MANGABEIRA ALBERNAZ - Oto-Rino-Laringologia pratica.
7. MANGABEIRA-ALBERNAZ - Clínica Oto-Rino-Laringológica.
8. OLIVÉ LEITE -Abcesso do septo de origem dentária: Revista Brasileira de O.R.L., Vol. VII n.9 2, Março-Abril 1939.
9. HOMERO CORDEIRO e BRAZ GRAVINA - Sobre um caso de abcesso do septo nasal post-traumatico complicado de meningite. Rev. Oto-Laryng. de S. Paulo. N.º 5 - vol. I - Set.-Out. 1933.
10. PEAR BOOK - 1940 a 1950.
11. ENCICLOPEDIA MÉDICO-CIRURGICA, Volumes de O.R.L.

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