Versão Inglês

Ano:  1945  Vol. 13   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - ()

Seção: Notas Clínicas

Páginas: 332 a 336

 

ABCESSO CRONICO DA LINGUA - Sobre dois casos(*)

Autor(es): DR. MAURO CANDIDO DE SOUZA DIAS

São Paulo

O abcesso da lingua na sua forma aguda, si bem que raro, é geralmente bem conhecido de todos, notadamente depois do magnifico trabalho de Mangabeira Albernaz apresentado no Brasil Medico de 1934. Talvez cada um dos especialistas mais antigos tenha no seu ativo um ou mais casos, aos quais não se deram ao trabalho de apresentar. Depois do trabalho de Mangabeira Albernaz acima citado, seria inutil, sinão mesmo uma ousadia da nossa parte, debater um assunto tão bem focalizado pelo autor acima.

Mas os nossos casos não são daqueles que se enquadram dentro do tipo classico de abcesso agudo da lingua, de decurso tempestuoso terminado pela rotura expontanea ou pela drenagem cirurgica, quando então serenam os sintomas aparecendo pronta a cura. Os nossos casos são de abcessos cronicos da ponta da lingua, ou melhor, da sua parte anterior colocada adiante da aponevrose hio glossa, de decurso pobre em sintomas, longo, levantando problemas diagnosticos mais delicados.

OBSERVAÇÃO N.º 1

Trata-se de A. A. C., de 14 anos, brasileiro, estudante, que nos procurou em nossa clinica privada em 6-8-44 contando-nos a seguinte historia: Ha um ano mais ou menos apareceu-lhe um pequeno tumor ao nível do dorso da lingua, com dores e febre, e dificuldade na deglutição. Nega traumatismo previo. Esse tumor em alguns dias supurou, dando saida a certa quantidade de pus em jacto com melhora, instantanea do paciente. Permaneceu entretanto uma pequena fistula no local do tumor que dava saida intermitentemente o, uma pequena quantidade de pus. Em Janeiro de 1943 foi operado por um colega a bisturi eletrico, no local da fistula, sendo então feitos alguns curativos sem melhores resultados, apresentando dentro de pouco tempo uma formação de tipo de um tumor avermelhado no centro do qual saia a fistulazinha. Esse tumor foi destruido por coagulação e recidivou. Resolveu então o colega praticar uma biopsia. Essa biopsia, que foi examinada pelo Dr. Carini revelou tão somente um tecido de granulação com acantone. Foi então que decorrido um ano de molestia nos procurou o paciente.

Ao exame direto notava-se a presença da formação tumoral acima descrita como um tumor do tamanho de um grão de feijão localizado no dorso da lingua na sua linha mediana a meia distancia entre o vertex do V e a ponta. A presença da fistula, colocada no eixo vertical da tumoração só se percebia exercendo forte pressão sobre a lingua com o abaixador o que fazia surdir um liquido amarelado purulento muito escasso. O exame e a cultura desse material realizado pelo Dr. A. Taunay nada revelou. Conseguimos então, a muito custo, cateterizar o orificio fistuloso com um estilete rombo muito fino e tivemos a impressão que se dirigia para baixo,e para frente. A palpação do orgão denotava um endurecimento da ponta; era a unica parte dolorosa ao toque. Procuramos então, como Mangabeira Albernaz fez em um dos seus casos, introduzir iodipina a 20% na provavel bolsa e todos as nossas tentativas resultavam em fracasso, apesar da bolsa admitir cerca de 3 cc. do oleo, mas a musculatura da lingua reagia imediatamente, expulsando o contraste. Foi então introduzida uma sonda ureteral fina e notamos que se dirigia francamente para a ponta, como foi muito bem, visto em radioscopia, e sendo então medida a estensão da sonda que penetrava de 5 cm.

Começamos então fazendo curativos diarios, cateterizando a entrada da pequenina fistula com uma agulha fina de injeção sem ponta aguçada e dobrada em angulo reto e injetando 3 cc. de NO3Ag a um por mil. Com alguns curativos o tecido de granulação desapareceu e a fistula fechou-se, não mais permitindo o seu cateterismo. Esse estado de coisas persistiu apenas por dez dias, quando voltaram novamente as dores e voltou a abrir-se a fistula, soltando o pus retido em jacto. Foram feitos então curativos com um preparado contendo sulfamida e a fistula fechava-se e abria-se, repetindo o que já acontecera. Decidimos então a intervir. O nosso plano seria a abertura ampla da bolsa no dorso da lingua a partir do ponto fistuloso para diante, colocada previamente uma sonda no trajeto que guiaria a nossa incisão. Como se aproximassem as epocas para exame de promoção no ginasio, foi a operação adiada para depois destes.

Em 30-12-43 apareceu-nos de volta o paciente, mostrando não mais a fistula dorsal mas um ponto de supuração na base do freio da lingua, na sua face inferior portanto. O abcesso mal drenado pela sua parte superior procurara caminho no ponto declive e surgira na face inferior. Revolucionou-se então a nossa estrategia: a bolsa seria incisada pela face ventral da lingua em toda a estensão da linha mediana. Isso foi feito a 10.1 no Sanatorio Esperança, na presença do Dr. J. E. Resende Barbosa. Exame ,clinico previo. Coagulação sanguinea normalizada. Anestesia de base pelo sedol. Tentamos infiltrar os linguaes, no que não fomos felizes. Infiltração do corpo da lingua com 8 cc. de novocaina a 1% com otimo resultado. Sujeita a ponta da lingua por uma pinça em losango. Incisão na face ventral em toda a sua estensão com bisturi eletrico, caimos imediatamente dentro da bolsa dando saida a pequena quantidade de pus espesso. Colocado um afastador apareceu um espaço de forma eliptica de longo eixo no sentido antero posterior compreendido entre os 2 genioglossos e atingindo a perto de 4 cm. de comprimento; o seu limite posterior era constituído por lamina fibrosa resistente que identificamos como a apanevrose hio glossa. Paredes da cavidade recobertas por um enduto necrotico que foi cuidadosamente curetado. Não conseguimos encontrar o caminho da fistula primitiva para o dorso da lingua. A cavidade encheu-se com cristais de sulfamida, dreno de gase iodoformada. Não foram dados pontos.

Hospitalizado por 3 dias. Trocou-se diariamente o dreno de gase até 10 dias. A cavidade fechou-se aos 14 dias. Alta a 28-1. O paciente foi visto em Junho ultimo em bom estado.

OBSERVAÇÃO N.º 2

A. C. S., branca, brasileira, do sexo feminino, casada, domestica.

Compareceu à consulta em 27-9-44, contando que ha 11 anos, durante um tratamento odontologico, recebeu ferimento ao nivel do dorso da lingua com uma broca. Esse fato determinou um imediato aumento do volume do orgão, dôres intensas e formação de um abcesso que foi incisado. A cura nunca se efetivou totalmente porque permaneceu no local uma fistula que drena pús escasso. Ha quatro anos fechou-se essa fistula provocando retenção e nova crise igual à primeira. Foi então novamente incisado o abcesso, desta vez pela face ventral. Entretanto a fistula estabelecida na parte superior persistiu e continua a dar saida a pús escasso. Este fato a perturba muito, dando-lhe uma sensação permanente de gosto "ruim". Tem o costume de espremer a fistula entre ambas as arcadas dentarias, o que lhe dá um alivio temporario.

Ao exame objetivo nota-se a presença de um orifício no dorso da lingua e na sua linha mediana junto à ponta de onde, pela pressão do orgão, surde secreção purulenta. A ponta do orgão se apresenta endurecida ao palpar e discretamente dolorosa. Estado dentario mau. Faringe, fossas nasaes e ouvidos normais. Exame físico geral nada digno de nota. Wassermann e Kahn no soro negativos. O material enviado a exame bacteriologico revelou: bacilos subtilis, enterococo, neisseria e levedo. Dario Pedroso. (a). O levedo foi identificado como de genero Candido saprofita da cavidade bucal.

Exame radiologico (fig. 1) : injetando contraste (neo iodipina a 20%) e batida ao mesmo tempo a chapa radiologica verifica-se a presença de uma cavidade situada na linha mediana do orgão um centimetro para trás do freio. Lacerda Soares (a).





De acordo com a experiencia apreendida no caso anterior foi planificada uma tecnica igual, tanto mais que no caso presente a bolsa se encontrava muito mais proxima da fase ventral, livre da lingua. A doente foi operada no Sanatorio Esperança em presença do Dr. J. E. Rezende Barbosa a 7-11-44.

Preanestesia Sedol. Anestesia por infiltração da região da ponta do orgão com solução de novocaina a l% (6 cc.) que foi ótima. Sujeita a ponta da lingua com uma pinça em coração e incisado a bisturi eletrico na linha mediana em toda a altura da face ventral, livre. A bolsa que fôra previamente cheia com uma solução de azul de metileno foi imediatamente encontrada e cuidadosamente curetada. Cavidade enchida com cristais de sulfa e drenada a gase iodoformada. Pela tarde orgão muito edemaciado, doente febril. Esse edema regrediu em sete dias. Curativos diarios trocando o dreno durante 10 dias quando o mesmo foi retirado. A fistula no dorso da lingua foi mais resistente que no caso precedente, levando cerca de 30 dias para sua oclusão. Entretanto nunca mais supurou. Ao cabo desse praso foi dada alta, completamente curada.

Tambem neste caso foi verificada a posição nitidamente mediana do abcesso, posição claramente demonstravel no espaço intergenio glosso.

Trata-se pois de dois casos de abcessos cronicos da lingua, mais raros que os agudos, e foram resolvidos de modo diferente das normas classicas sob uma via de acesso cirurgico atipica.

Na literatura que compulsamos não vimos caso igual descrito, a não ser um caso que conhecemos só de título, já que não pudemos conseguir o artigo e que está assim rotulado: "Novo tipo de fleimão da lingua" (fleimão intergenio glosso mediano). Arquivos de Medicina e Farmacia Navaes, de Abril-Junho de 1934, francês. Apenas pelo titulo pudemos identificar este caso como sendo igual ao nosso, que era um abcesso crorico da lingua intergenioglosso, como ficou muito claramente demonstrado no ato cirurgico. E este fato vem em apoio do que afirma com muita propriedade Mangabeira Albernaz: a lei de Killian não deve prevalecer nos abcessos da língua. De fato, Killian afirmava que os abcessos da lingua sempre se formavam numa hemilingua e dentro de um de dois dos seguintes, espaços: 1) entre o septo lingual e o genio glosso; 2) entre o genio glosso e o hio glosso. Este caso era um abcesso central entre ambos os genioglossos e na espessura mesma do septo lingual.




(*) Comunicação a Secção de O. R. L. da Associação Paulista de Medicina em 17-8-44.

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