Versão Inglês

Ano:  1945  Vol. 13   Ed. 3  - Maio - Junho - ()

Seção: -

Páginas: 209 a 215

 

UM PROBLEMA DE TERMINOLOGIA OTOLÓGICA: OTITE SÊCA, OTITE ADESIVA, OTITE CICATRICIAL.

Autor(es): Paulo Mangabeira-Albernaz 1

O problema da linguagem técnica não tem merecido a importância a que faz jús de parte dos médicos. Consagra o uso designações inexpressivas, intempestivas, absurdas, sem que uma voz ao menos se levante em prol, já não direi da defesa do idioma e da medicina, mas simplesmente do bom senso.

Neste caso inclui-se a questão dessas manifestações que nos, otologistas, continuamos a denominar otite sêca, otite adesiva, otite cicatricial.

Comecemos pela primeira. Que se entende por otite sêca? Na infância e na adolescência é de observação comum a ocorrência repetida de ataques à orelha média, ora por simples ação mecânica de obstrução da trompa, causada em geral processos inflamatórios da rino-faringe, ora por lesões inflamatórias discretas da caixa do tímpano. De fato, uma vez obstruída a trompa, dá-se o vasio no interior da caixa. Daí, congestão intensa da mucosa. O estado pode não passar dessa fase: é a otite congestiva. Em verdade, basta que a trompa se desobstrua, para que a congestão da mucosa automaticamente venha a cessar. Se, porém, tal não acontecer, a mucosa transuda por efeito ainda da pressão negativa e da absorção do oxigênio, e forma-se a coleção de soro dentro da cavidade: otite serosa ou otite exsudativa.

A repetição das crises da otite congestiva (ou hiperêmica) pode não trazer grandes perturbações. Se, porém, elas se prolongam, as articulações dos ossículos, imobilizadas por largo tempo, perdem sua ação, esclerosam-se. Temos um processo de ancilose, que perturbará para sempre a função auditiva, criando uma surdez de transmissão, pouco intensa, mas indiscutível. O grau de surdez, naturalmente, varia.

Examinada a motilidade da membrana por meio do cateterismo da trompa seguido de ducha, ou, melhor, pelo espéculo pneumático de Siegle, verificaremos que a membrana pouco se move dada a fixação do martelo.

É a isso que se dá o nome de otite sêca.

Admitamos, entretanto, que o líquido de transsudação foi contaminado pelos germes oriundos da rino-garinge. O líquido passa ao tipo catarral e ao purulento. A otite, no entanto, por pouca virulência dos, germes ou por defesa enérgica orgânica, regride espontaneamente ou após tratamento adequado. Como, porém as crises se repetem, a membrana do tímpano está retraída, e a mucosa é lesada, pode formar-se entre esta e a mucosa da parede interna da caixa, mormente na região do promontório, uma sinéquia mais ou menos extensa, que imobilizará para sempre, não só a membrana, como a cadeia de ossículos.. Na primeira hipótese aventada, a membrana foi imobilizada pela ancilose articular; nesta, a soldadura da membrana é que imobiliza as articulações, as quais é lógico, acabam igualmente por esclerosar-se.

Êste segundo tipo é o que se chama otite adesiva.

Na otite dita cicatricial o processo causal foi uma otite média supurada aguda, tanto do tipo simples, como do tipo necrossante, ou uma otite média supurada crônica. Após longo tempo, a cura foi conseguida, e do mal restou destruição maior ou menor da membrana, da membrana de Shrapnel, da cadeia de ossículos, etc. A caixa do tímpano é então ocupada por um processo cicatricial que desorganizou mais ou menos ou totalmente as estruturas anatômicas.

Lermoyez, Boulay e Hautant dizem em seu inegualável tratado: "Esta denominação clara e exata" - reportam-se ao título "Otite média crônica sêca" - "aplica-se não a uma afecção definida, mas a um grupo completo de lesões que têm por característico comum a transformação fibrosa do revestimento da orelha média: esclerose trivial e progressiva, de que a imobilização dos ossículos é a fase final" .

"Diversas designações incorretas têm contribuído a conservar noções confusas a respeito desta otopatia vulgar".

"Otosclerose, palavra imitada de arteriosclerose que significa transformação fibrosa da parede das artérias, seria sem ,contestação a denominação ideal. O uso desviou-a infelizmente de seu sentido lógico, para aplicá-la a certa distrofia óssea do rochedo, que não é absolutamente um processo esclerosante. Por sua falta, adotamos a designação otite sêca, igualmente recomendável, porque êle nos desperta as mesmas idéias que pleurisia sêca, artrite sêca, isto é, faz-nos pressentir uma lesão constituída de bridas fibrosas e aderências retrácteis, levando a orelha média à sínfise anatômica e à inércia fisiológica, sem de nenhum modo prejulgar as causas diversas que as determinam".

"As outras denominações usuais da otite sêca são medíocres. Catarro sêco convém a urna mucosa inflamada que não segrega, mas não se aplica a um tecido em degeneração fibrosa. Otite crônica hiperplástica visa apenas uma forma anatômica e de nada vale nos casos em que o tímpano está atrofiado, em que a trompa se acha dilatada. Otite adesiva parece muito compreensivo. Esta palavra evoca somente a imagem de aderências, não faz distinção entre as cicatrizes estáveis das otorréias antigas e as bridas retrácteis da esclerose progressiva, o que é um êrro de princípio".

Escat, em sua monografia Surdités Progressives et Otospongiose, reune tais lesões sob o nome geral de oto-distrofias própriamente ditas ou otoscleroses. Aí se enfeixam todos os processos degenerativos secundários da caixa do tímpano, de que existem duas variedades: a) a otite adesiva, fase degenerativa da otite média catarral crônica; b) a otite cicatricial, fase reparadora da otite purulenta aguda ou crônica; 2) a capsosclerose (e não capsi-sclerose, como escreve Escat) ou otosclerose da cápsula óssea do labirinto; 3) a labirintoscleroze ou otos-clerose do labirinto membranoso, que, por simplificação, o autor chama labirintose.

Os americanos - Kerrison, Keeler, Lederer, Fowler - admitem dois tipos principais de catarro crônico da orelha média: a otite media crônica hipertrófica (catarro exsudativo ou catarro adesivo) e a otite media crônica hiperplástica (catarro sêco ou catarro esclerótico). O próprio Kerrison não esconde que "em muitos casos, eles representam provavelmente estádios diferentes da mesma enfermidade".

Fowler é claro na sua crítica à terminologia. Reportando-se ao que êle chama otite média curada, assinala entre parenteses o seguinte: 1) otite média não supurada, curada; 2) otite média supurada, curada; 3) otite média reincidente supurada ou não supurada, curada; 4) otite média adesiva; 5) catarro sêco da orelha média; 6) otite média catarral crônica; 7) otite média previamente latente. Terminada esta enumeração de que pode ter dado origem à otite média curada, declara textualmente: "Existe um tipo de inflamação do aparelho auditivo que está a requerer uma nomenclatura apropriada, para o uso geral: é a otite média curada, que se designa usualmente por otite média catarral crônica". Adiante, insiste ainda Fowler: "A velha designação otite média catarral crônica transforma-se usual. mente em otite média não supurada, curada, latente". "Se se consegue anamnese. precisa, pode-se classificar o processo, por meio do acréscimo de aguda, crônica eu reincidente em vez de latente. Isto é muito mais enfadonho do que o conveniente vocábulo otite média catarral crônica, tirado da cesta de papeis. É, entretanto, muito mais exato, e não dá a impressão errônea de que, nos casos dêsse tipo, existe corrimento aquoso crônico continuo pelo conduto".

Os autores alemães contornam em geral a dificuldade registrando apenas o nome criado por Politzer :- processo adesivo. No tratado de Denker e Kahler, Eschweiler, que estuda o capítulo referente ao assunto em debate, dá-lhe o título seguinte: "Rückstände und Verwachsungen der Paukenhöhle (Residuen und sog. Adhäsivprozesse) - isto é, "Remanescentes e aderências na caixa do tímpano (Resíduos e o chamado processo adesivo).

Lê-se no estudo de Eschweiler: "Estas alterações pertencem ao grupo das cicatrizes, motivo por que são também designadas pelo nome de otites média cicatricia".

Citemos, porfim; Portmann e Kistler. Em seu estudo fundamental "Les Otites Moyennes", dizem eles que "as otites esclerosas não são otites médias; não há inflamação de orelha média". "Devem elas ser, em verdade, classificadas entre duas otopatias diferentes: a otite esclerosa atrófica que é uma otospongiose,, e a otite esclerosa hipertrófica". "Se a integridade da mucosa da caixa foi lesada, daí resultam, porfim, aderências endotimpânicas, estado patológico descrito por Politzer sob o nome de processo adesivo". "Le terme otite catarrhale adhésive sèche est un non-sens au point de vue clinique et anatomo-pathologique".

Da exposição ora delineada, torna-se claro que os mestres da otelogia não escondem a imprecisão, e, mais do que isto, a impropriedade da terminologia relativa aos processos cicatriciais da caixa do tímpano. É intuitivo que qualquer inflamação tubo-timpânica chegará, ao cabo de certo tempo, a uma fase final, seja de reparação, seja de cicatrização, termos que, em histo-patologia, absolutamente não são sinônimos. Não cabe, pois, razão a Escat, quando considera a otite cicatricial apenas a fase reparadora da otite purulenta aguda ou crônica. Na realidade, trata-se de uma fase cicatricial.

Por mais antigo que seja um processo cicatricial da caixa do tímpano ou de qualquer parte do organismo, a histologia patológica dispõe de elementos para asseverar se êle foi ou não consecutivo a uma inflamação. São ilhotas de linfócitos que se congregam ao redor dos capilares a assinatura dêsse processo flogístico, cuja existência se verificou há meses ou há anos.

Não padece dúvida igualmente de que, nas chamadas otites sêca, adesiva e cicatricial, nada mais existe de inflamatório. Do ponto de vista histológico, há apenas tecido fibroso, tecido escleroso, característico das cicatrizes. É óbvio que não podem tais processos levar o rótulo de otites, pois que não se trata, de nenhum modo, de inflamação quer aguda, quer crônica, e a desinência ite é usada, em medicina, exclusivamente de referência a esses processos.

Note-se, na terminologia proposta por Escat, evidente intenção de separar as várias modalidades de esclerose, às quais são dadas designações bastantes precisas. Mas a verdade é que, como acentuam Lermoyez, Boulay e Hautant, a palavra otosclerose não pode mais ser empregada para designar os processos de esclerose de qualquer tipo do aparelho auditivo, e sim única e exclusivamente uma entidade nosológica especial e característica que, começando via-de-regra pelas bordas da janela oval, invade a seguir tanto a caixa do tímpano como o vestíbulo.

A designação tímpanosclerose está sem dúvida perfeitamente de acôrdo com a patogenia do mal, pois da a idéia de um processo cicatricial (esclerose) localizado na caixa do tímpano. Acontece porém, que o têrmo tímpano, a indicar, a rigor, a caixa, também designa a membrana, e, nos tempos atuais, é mais usado nesta última acepção, de modo que, ao dizermos timpanosclerose, a idéia que nos vem à mente é a de endurecimento da. membrana do tímpano. Daí, de certo, não se ter o vocábulo generalizado.

Outra tentativa de dar nome a tais lesões devemos ao especialista patrício Capistrano Pereira. Diz o Prof. Pedro Pinto, na 2.a edição de seu Dicionário de Têrmos Médicos (1938) "Otose (1) sensação auditiva falsa". "Otose (2): Afecção crônica não inflamativa do ouvido, como a tímpano esclerose, com a otose adesiva, a otose diatésica, otospongiose..., alquando chamadas otites adesiva etc ... sendo de notar-se que a terminação ite designa inflamação. Otose, de formação análoga a nefrose, é neologismo necessário e foi, com felicidade, sugeride pelo oto-rino-laringoiatro compatrício Capistra no Pereira".

Otosis, no primeiro sentido, foi um vocábulo inventado pelo Prof. Haldeman, de Pensilvânia, para designar uma ilusão do ouvido, uma impressão auditiva falsa, e é inútil acentuar que o têrmo está mal formado, e não dá a menor idéia de alucinação acústica. Segundo as regras de terminologia médica, nefrose, já de uso geral, nada mais é do que um sinônimo de nefropatia. A desinência grega osis foi, de fato, adotada, em medicina, para designar principalmente doença, enfermidade: leishmaniose, micose, treponemose, triquinose, psicose, neurose, etc. (V. "Da origem dos sufixos ose o íase nos têrmos médicos" in Questões de Linguagem Médica de P. Mangabeira Albernaz, p. 55). Enquanto as desinências ose e íase formam os nomes das afeções quase pela sua etiologia ou pelos sistemas, o sufixo patia ficou reservado às afecções dos órgãos: otopatia, gastropatia, oftalmopatia, enteropatia, etc. Otose, por conseguinte, prestando-se a confusão com o vocábulo de Haldeman, designando ainda otopatia, deve ser posto à margem, até porque não tem a precisão necessária a trazer à mente a natureza - lesão.

Vemos pois, que: 1.º) os autores estão de acôrdo em considerar absurdo dar o nome de otite a processos em que não há mais vestígio de inflamação; 2.º) alguns não escondem a necessidade de um nome preciso para designar as sequelas das flogoses óticas; 3.º) os poucos nomes propostos não correspondem à necessidade nosográfica; 4.,) não padece dúvida de que as lesões estudadas são tôdas processos cicatriciais post-inflamatórios .

Baseado nisso, temos de criar um têrmo que, lembrando a natureza do processo (esclerose, cicatriz), dê indicação da sede.

Cicatriz, no caso, corresponde, em, língua grega, a oulé, és, vocábulo que, para passar ao latim, sofrerá a transformação do ditongo ou em u. A designação osis, afecção, será acrescida ao radical ulo, de onde ulosis. Tal palavra, depois de tê-la formado, verifiquei já existir em terminologia médica. Registram-na o dicionário de Smith (The Century Dictionary Supplement - The Cent. Co - New York, 1910), o American Illustrated Medical Dictionary de Dorland (14.a edição, 1927), etc. No primeiro, encontraremos:

ulosis [ N. L. < Gr. oulosis < oulousthai, to be
scarred > oulé, scar ] Same as cicatrization.

Juntando-se a essa palavra o radical oto (de ous, otós, a orelha, isto é, o aparelho auditivo), teremos

otulosis = otulose

vocábulo que significa doença ou enfermidade por cicatrizes do aparelho auditivo.

Como há três tipos dessas lesões residuais, isto é, o sêco, o adesivo, o cicatricial, podemos distinguir:

a) otulose com ancilose, correspondente à otite sêca;

b) otulose com sinéquia, correspondente à otite adesiva;

c) otulose com destruição, correspondente à otite cicatricial.

Os três tipos são designados simplesmente por:

a) otulose sêca;
b) otulose adesiva;
c) otulose destrutiva.

Creio que, desta sorte, podemos pôr de parte as errôneas expressões otite sêca, otite adesiva, otite cicatricial, substituindo-as por uma designação concisa e precisa.

A otulose pode verificar-se na orelha externa ou na orelha interna. Não há, porém, necessidade de usar da designação em tais setores, uma vez que o termo na realidade só faz falta na patologia da orelha média.




1 Professor de Clínica oto-rino-lalingológica da Escola Paulista de Medicina, São Paulo; oto-rino-laringologista-chefe do Hospital da Santa Casa, Campinas.

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