Versão Inglês

Ano:  1941  Vol. 9   Ed. 2  - Março - Abril - ()

Seção: -

Páginas: 129 a 142

 

INTERDEPENDENCIA ENTRE A OFTALMOLOGIA E A RINOLOGIA

Autor(es): DR. OCTACILIO LOPES (1)

(A PROPOSITO DE UMA OBSERVAÇÃO)

CATANDUVA - SÃO PAULO

Num trabalho, relativamente recente, intitulado "Complicações Oftalmicas da Sinusite Maxilar" (1), esforçamo-nos para demonstrar com fatos indiscutíveis, com observações colhidas na nossa clínica e com citações de autoridades incontestes, a interdependencia entre a Oftalmología e a Rinología. Acreditamos que não tenha sido de todo improfícuo o nosso esforço, pois recebemos algumas provas nesse sentido. Entre elas, o ato da Academia Nacional de Medicina, conferindo-nos o Premio Moura Brasil de 1940, após julgamento por uma comissão composta de oftalmologistas e oto-rino-laringologistas eminentes: Edilberto Campos, Rego Lopes e David Sanson. Foram tambem de muito estímulo as críticas e referencias elogiosas com que nos distinguiram, entre outros, os Profs. J. Marinho, Edilberto Campos, Flaminio Favero, Francisco Hartung, Vital Brasil, Bernardes de Oliveira, Eduardo Monteiro, David Sanson, Moacir Alvaro, Dutra Oliveira, Cantidio de Moura Campos, Renato Machado, Martagão Gesteira, Aristides Monteiro, Inácio de Menezes, Ivo Corrêa Meyer, Aloisio de Castro e os Drs. Augusto Linhares, Octavio Gonzaga, Heitor Maurano, Teófilo Falcão, Roberto Oliva, Vital Brasil, Fábio Belfort, W. Belfort Matos, Paulo Saes, Mario Ottoni de Rezende, Alvaro Tourinho, Durval Prado, Olivé Leite, Paraiso Cavalcanti, Selman Nazaret, Canabrava Filho e tantos outros entre nós, ao lado de A. Sargnon e G. Worms, da França; Alonso e Régules, do Uruguái; Segura, Juan Manoel Tato, Mazza e Ricardo Bisi, da Argentina; Ladislau Labra, Charlin, e Anibal Grez, do Chile; Franz Conde Jahn e Lopes Villoria, da Venezuela, Harry Gladly e Clifford Walker, da America do Norte. Guardo essas críticas e referências como um grande incentivo e uma grande honra, sentindo meu esforço plenamente recompensado.

No prefácio que com muita honra para nós, escreveu para o referido trabalho, Mangabeira Albernaz afirmou, com muita propriedade:

"O estudo das manifestações patológicas oculares decorrentes de processos inflamatórios dos seios da face, e mórmente do maior deles, o maxilar, parece assunto por demais resumido. Mas ainda é um campo aberto a indagações de natureza vária, e muito menos especializado do que deixa, à primeira vista, transparecer".

"Não quero fazer crítica aos oftalmologistas, mas a mim parece que eles - aqui, como alhures - não demonstram noção suficientemente precisa da importância, em patologia ocular, dos seios da face. E tanto isto é exato, que as monografias publicadas a respeito do problema, ou são de rínologistas, ou oftalmo-rinologistas. Isto vem, até certo ponto, demonstrar, que cabe uma grande dose de razão aos especialistas que exercem simultaneamente a rinologia e a oftalmologia".

Não ha meios de fugir á realidade deste asserto que não atinge aos oftalmologistas a não ser para lhes incentivar a aumentar o seu campo de ação, a sair do âmbito limitado do escrínio orbitário, abrangendo com sua intervenção acertada uma extensão um pouco maior.

Estamos de acôrdo come Cícero Flores de Azevedo quando, na sua "Filosofia da Molestia (2), afirma que

"No estado atual da ciencia, com um numero tão grande de conhecimentos, é impossível progredir-se em qualquer dos seus ramos sem uma especialização cuidadosa e rigorosa. Só os altamente especializados, explorando principalmente a experimentação, poderão aumentar os domínios científicos".

Nem por isso nos rebelamos contra Theodore Heiman quando com sua autoridade de sábio escreve nas páginas do seu formidavel tratado "L'Oreille et ses Maladies" (3) : - "Sans doute, les conaissances des spécialistes ne peuvent se borner à leur specialité: pour être un bon specialiste, il faut avoir une education médicale génerale" Esta opinião criteriosa de Heiman não o impede, entretanto, de achar natural que se devam delimitar as especialidades, pois os seus diversos campos se estendem e se alargam incessantemente com os progressos científicos.

O necessario é que esses conhecimentos de determinada especialidade não fiquem presos entre barreiras imaginárias de um limite que tanto pode ser alargado como estreitado, de acórdo com o evoluir dos conhecimentos humanos. E temos de reconhecer que estas barreiras, puramente teóricas, devem ser transportadas quando o entendimento no-lo ordenar. Pois não tem razão Francisco de Castro, o luminoso Mestre ao afirmar que

"não ha, não haverá nunca, medicina matemática, que consinta no problema clínico, complexo como a vida, de que ele é apenas uma expressão fragmentária e fugitiva, o rigor das equações na simplicidade dos sináis algébricos? ".

Tudo isto demonstra que a tése que defendemos é justa e rigorosamente criteriosa e científica. Entretanto, não se aceita, geralmente, que, na prática, se associem a oftalmologia à oto-rino-laringologia. Poucos colegas compreendem, como bem afirma Olivé Leite (4), culto oftalmo-rino-laringologista em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, "quanto é util à clínica que o rinologista seja doublé de oculista; aos oculistas puros como aos oto-rino-laringologistas, escapam muitos pequenos detalhes, que associados, trazem grande luz ao diagnóstico, prognóstico e tratamento".

Ainda Mangabeira Albernaz, no prefácio atrás referido, escreve:

Em que - e por que - deve o rinologia ligar-se mais à otologia do que à oftalmologia? Se exerço exclusivamente a oto-rino-laringologia e reconheço que ninguem, por mais que se esforce, consegue atualmente abranger-lhe todo o campo de ação, não posso negar que o oftalmo-rinologista leva grande vantagem sobre o oculista puro. A extenção dos conhecimentos não impede o exercicio das duas especialidades, do contrário, não haveria clínicos gerais, pediatras, neurologistas, etc., que jogam com dados e elementos ainda mais copiosos".

Quando por ocasião do 1.º Congresso Brasileiro de Oftalmologia, Roberto Oliva (5), ilustre oto-rino-laringologista em S. Paulo, teve ensejo de manifestar-se sobre o assunto da seguinte maneira:

"As relações entre a oftalmologia e a oto-rinolaringologia, tornam-se cada vez mais íntimas, à medida que novas contribuições científicas põem em fóco os fatos incontroversos. De longa data as duas especialidades são consideradas como complemento uma da outra, quer por suas relações de vizinhança, quer por acometimento reflexo. Os antros da face e a cavidade nasal são frequentemente responsaveis pela propagação de elementos tóxi-infectuosos para dentro da cavidade orbitária, provocando aí lesões muitas vezes irremediáveis".

Procura na mesma oportunidade reforçando sua opinião, lembrar que ha outros pontos de contacto ainda mais íntimos entre as duas especialidades quais "os que se processam no ponto extremo do osso temporal. Refiro-me, diz, á ponta do rochedo".

Cabe aquí, para mostrar as relações em outro setor, recordar a observação de Mangabeira Albernaz relativa a "Estrabismo e Adenoides", publicada na Revista Oto-Laringológica de São Paulo, em 1938, assim como, entre tantas e tantas outras observações que não citaremos para que este trabalho não se alongue demasiadamente, a de "Oftalmoplegia e amaurose passageira na anestesia do septo" (7), resumida na Revista Brasileira de O. R. Laringologia, em 1939.

Poderiamos estender uma lista de infindaveis citações de defensores da união, ou, quando menos, do maior cuidado no descobrir os entrelaçamentos das duas especialidades, entre os quais teria forçosamente de incluir os nomes de Vachez, um dos pioneiros, Lemaitre, o ilustre autor da mais notavel publicação referente ao assunto em todos os tempos (8), Eduardo de Morais e seus discípulos, entre nós, e Sargnon com um grande acervo de concludentes observações publicadas em numerosas revistas médicas e em diversas ocasiões, e, tambem, autor de um valioso trabalho sobre o assunto, intitulado "Nez et Oeil" (9) que bastaria, por si só, para deixar o assunto de vez esclarecido.

Quem, entretanto, se interessar pela materia, poderá encontrar bibliografia, relativamente extensa, na nossa obra já citada (1) e cuja repetição seria fastidiosa.

Alem das observações ali contidas, possuímos muitas outras posteriormente anotadas na nossa clínica e que constituirão objeto de futuro trabalho. - Entretanto, para ilustrar, para objetivar as idéias agora expendidas e que constituem a nossa maneira de pensar, ou melhor, de interpretar os fatos diuturnamente observados, nenhum outro caso clínico melhor se prestaria do que o seguinte:

J.C., ficha 11.588, br., brasil., comerciante, residente em Catanduva, S. Paulo, veio á consulta em 3 de Janeiro deste ano (1941 ).

Queixa-se dos olhos. Sofre ameúde de terçóis. De vez em quando sai-lhe um, e, depois, fica vários dias com a pálpebra irritada. Sofre, alem disso, de um incômodo no nariz. Não respira muito bem, ficando ora com a fossa nasal esquerda, ora com a direita obstruida.

O exame oftalmológico mostra a existência de blefarite ciliar com hordeolos na pálpebra inferior direita. Presença de folículos no fundo do saco superior (A. O.) e de pannus somente visivel à lampada de fenda. (A.O.).

O exame nasal deixa ver o septo com pronunciado desvio (em S itálico) e hipertrofia da concha inferior direita. Voltada nossa atenção para esta hipertrofia, sinal de Montgomery, fizemos uma diafanoscopia ficando da mesma a impressão de uma diminuição de transparência do seio maxilar direito.

Aconselhada uma radiografia dos seios da face, tivemos a suspeita perfeitamente confirmada pois a radiografia revelou uma sombra regular, arrendodada no seio direito (Figura 1 ). - A radiografia dentária revelou apenas alguns canais mal obturados.

Prescrevemos o uso de Anatoxina Antipiogênica Torres, Comprimidos de Stanoxil e pomada de óxido amarelo para uso ocular. Aconselhamos ainda a operação de desvio do septo, assim como a abertura do seio maxilar.

Como, porem, o que mais incomodasse e que fôra a causa única da consulta, fosse a inflamação palpebral, o paciente resolveu fazer, em primeiro lugar, o seu tratamento, para cogitar, posteriormente, dos outros achados clínicos.

De 6 em 6 dias, voltava ao consultório para fazer a injeção de Anatoxina. As melhoras obtidas não eram, porém, de entusiasmar. A um hordeolo seguia-se sempre outro. Em fins de Janeiro, J, C. aparece ao consultorio com um terçol de tamanho regular, ainda em evolução. Queria lancetá-lo. Aconselhamos o contrário. Tivesse paciencia, fizesse o regime
alimentar que lhe indicamos e não abandonasse o tratamento que nem sempre dava resultados rápidos.

Poucos dias depois, três ou quatro, voltou ao consultorio. Estava passando muito mal. Com a mão espalmada sobre o olho direito fotofóbico, a cabeça baixa, o cabelo em desalinho, a fisionomia cerrada, deixou-nos a impressão de que realmente estava sofrendo dores.

Contou-nos, então, que desanimado com o tratamento que lhe dava melhoras muito lentas e estando o terçol a incomodá-lo e doendo, resolveu procurar um farmaceutico que satisfez o seu desejo, abrindo-o , expremendo-o, e em seguida, queimando a parte incisada com tintura de iodo.

Sentiu dores muito vivas, atribuindo-as, porem, á lancetada.

No dia seguinte, estava peor, com a pálpebra inflamada, o olho doendo muito, não suportando a mais leve claridade e - o peor - com a vista muito escura, "As dores são tão violentas que não pode conciliar o sono.

Após instilação de uma gota de colírio de neotutocaina, fizemos demorado exame do paciente. O bordo da pálpebra inferior mostrava ainda a séde do terçól em cicatrização. Conjuntivas palpebrais e bulbar congestionadas -e um pouco edemaciadas. Cornea opacificada parcialmente, apresentando uma ulceração em forma de lua (em crescente), estendendo-se da periferia, das 4 ás 6 horas mais ou menos, até o centro, apresentando toda esta zona ulcerada com coloração acinzentada. Uma gota de um colírio de azul de metileno associado a dionina e atropina, cotou toda a mancha referida, delimitando perfeitamente a solução de continuidade. Ao lado do limbo, na sua vizinhança, extendendo-se das 4 até as 6 horas, a conjuntiva bulbar se apresentava empolada.

Provavelmente colocado o iodo na pálpebra revirada, esta, ao tornar á sua posição, pô-lo em contato com a cornea, produzindo a queimadura.

Fizemos um penso oclusivo com um antisséptico brando (Noviformio Lux a 2%) e injetamos uma empola de Protinjectol B no paciente. No dia seguinte; voltou peor. Não descansara um minuto sequer! As dores eram insuportaveis. Tinha a impressão de que o olho estava cresceido e ia estourar. Realmente, não notamos melhora no estado das lesões que, ao contrario, nos pareceram mais extensas.

Diante de caso tão grave, de úlcera infectada da córnea evoluindo tão rapidamente, achamos prudente aconselhar o internamento do paciente afim de que pudesse ter assistencia médica mais pronta e ser melhor observado em todas as minúcias.



FIG.1

    
FIG.2   FIG.3



Como o paciente recusasse, por motivo que não quiz declinar, talvez pela impressão desagradavel de ficar hospitalizado, aconselhamos que voltasse a noite, de automovel, para fazer novo curativo e, tambem, uma injeção analgésica afim de poder repousar à noite.

Realmente, às 22 horas, veio à Clínica, queixando-se de dores violentas. Novo curativo, novo penso oclusivo e uma injeção de Eucodal de 0,01.

De volta a casa, uma das rodas do automovel caiu numa sargeta e o paciente foi forçado a empurrá-lo, fazendo grande esforço físico, saindo por fim suado e com as dores oculares aumentadas. Com o suor, desprendeu-se um pouco o penso oclusivo que o paciente resolveu retirar.

Nos dias seguintes o caso continuava se agravando. A opacificação da cornea se estendera, a ulceração estava recoberta de pús, deixando mesmo ao primeiro lance de vista a impressão de já haver hipopio, impressão esta afastada, após exame mais minucioso. Agora já o paciente foi quem manifestou desejo de ficar internado na clínica.

Durante os dias e as noites, era um só queixume. As dores cruciantes, o desespero e a impaciencia, casando-se ao nervosismo do doente. O colirio anestésico de novocaina e estovaina, de neotutocaina ou de cocaína pouco adiantavam e as melhoras esperadas não apareciam. As compressas mornas de solução branda de oxi-cianeto, davam alguma sensação de alívio mas tambem passageiro. Durante a noite, então, agravam-se os sofrimentos. Noites houve que com 3 injeções analgésicas poude ter alívio. Recorremos ao Eucodal, à Trivalerina, à Cibalena, ao Doralgin injetaveis e até ao Escofedal com resultados bem pouco compensadores! Em muitas ocasiões a impulsividade, o nervosismo, a impaciencia do doente chegaram a ponto de ficarmos, eu e o meu colega dr. Dionisio Figueiredo, que na ocasião estava como auxiliar da nossa clínica, pensando em um caso de nevropatia.

No tratamento local da lesão ocular, empregamos o colírio de azul-dionina-atropina ao lado de Noviformio Lux alternado com Xeroformio e Iodoformio a 2 % e Optoquina de Lux.
Durante vários dias usou por via intravenosa uma ampola de Anaseptil a 25% e duas a 10% e por via oral 1,50 de Dagenan. Alem disso, Protinjectol, alternado com Cariogon e Vitamina C como medicação auxiliar. Para prevenir os acidentes mais perigosos de sulfanilamidoterapia tão intensiva, Estrato de fígado concentrado de Lilly.

E com este tratamento, sofrendo alterações mais ou menos ligeiras, as almejadas melhoras não se verificaram. E com isto,vinha o desânimo invadindo o espírito do doente, do entourage e decepcionando o proprio médico.

De vez em quando no nosso íntimo ocorria a idéia de estar aquela sinusite, verificada no momento da primeira consulta, em 3 de Janeiro, e da qual o paciente jamais desconfiára, atuando como foco secundário para manter a infecção. E esta lembrança tanto moeu e remoeu na nossa mente que acabámos por propor ao paciente a abertura do seu seio maxilar.

No primeiro instante, recusou. E tinha suas razões. Nunca sentira coisa alguma que o levasse a acreditar que sofresse de uma sinusite. Alem disto, o que desejava era sarar do olho, chegando até a falar na possibilidade de uma enucleação.

No dia 18, depois, portanto, de 16 dias de internado, sem obter nem sombras de melhoria, amanheceu peor. Passara mal a noite e seu estado de nervosismo atingiu o auge. Num momento de desespero chegou mesmo a quebrar a cama que ocupava!

Um exame detido da lesão ocular, com lâmpada de fenda, deixou-nos persuadidos de que havia um pouco de pús na camara anterior. Posteriormente, após exames repetidos, ficamos mais tranquilos com o desaparecimento da suspeita.

Insistimos na abertura do seio. E desta feita o doente já desanimado, concordou. Foi operado nesse mesmo dia sob anestesia local pela Escurocaina. Osso friavel, sangrando abundantemente. Mucosa sinusal espessa. Presença de um cisto de tamanho regular do qual foram retirados por punção, 12 cc. de líquido seroso que não foi examinado. - Presença ainda nas paredes do seio, de secreção catarral da qual colhemos material para um esfregaço que, examinado pelo dr. José Rezende, revelou a presença de estafilococos e outros germes banais.

Sequencia operatória, ótima.

A operação foi como a bonança após a tempestade!

Embora ainda se queixasse de dores no olho, poude dormir regularmente durante quasi toda a noite, tendo chamado a enfermeira apenas quatro ou cinco vezes.

O dia seguinte foi mais calmo, assim como a outra noite e outro dia... Tambem as melhoras da lesão ocular foram notáveis! Em menos de uma semana a ulceração rebelde de antes, reduzira-se à quarta parte. Tudo indicava que dentro de curto prazo o caso estaria resolvido.

Mas... estas melhoras tão rápidas, tão dramáticas, tão extraordinárias, dos primeiros dias, tornaram-se novamente insignificantes e tardas, depois. A cicatrização ia-se fazendo mas de maneira quasi imperceptivel. E o paciente não dispensava uma picada de Tebasolo ou de Escofedal, nem deixava de chamar a enfermeira por 2 ou 3 vezes cada noite.

Em 26 do mesmo mês, fizemos novas radiografias dentárias. Devia haver algum foco dentário responsavel pelo estacionamento das melhoras. E havia. Foi verificada a existencia de um granuloma no primeiro premolar superior direito (Fig. 2) e indicada a extração do dente.

Até esta extração foi tempestuosa. O caso havia de ter um transcurso anormal em todas as suas minúcias!

O dentista equivocou-se e em lugar do premolar pegou o canino. Este, porem, resistiu aos primeiros esforços e não se deixou extrair. O paciente exclareceu que era o outro, o dente condenado, o que tive de confirmar pessoalmente. Mas o premolar partiu-se (Fig. 3), ficando a raiz, com o granuloma! O estado de nervos do paciente quasi foi de desespero. Interviemos e conseguimos sem maiores consequências, após trepanação do alvéolo, a retirada de ambos (rais e granuloma).

Novas e rápidas melhoras. A noite deste dia foi a primeira a decorrer tranquila para o doente e para a enfermeira...

No dia 1 de Março, um exame, com a lampada de fenda, nos mostrou que a cicatrização estava completa. Restava uma cicatriz de forma elíptica, extendendo-se do centro da cornes até as 5 horas. Tambem, aos poucos, a opacificação da cornes, na zona circumvizinha à ulcera, foi cedendo. Usamos localmente pomada de Insulina Lux, Gotas de Hipoglos, solução branda de mercurio-cromo em soro fisiológico e Soluseptazina, sempre alternadamente. O paciente deixou a Clínica mas passou a vir diariamente ao consultorio. Em 17 de Abril, quando recebeu alta definitivamente, a opacificação cicatricial estava bastante reduzida, em quasi toda sua extensão, menos nas suas extremidades, provavelmente onde a úlcera foi mais profunda, mas com tendencia a melhorar.

COMENTÁRIOS

É uma falsa noção, aliás arraigada, profundamente, até no espirito de alguns médicos, a de que, em qualquer infecção ocular, temos que matar os microbios que pululam no órgão, para tal empregando antissepticos que ás vezes acarretam, pelo seu efeito cáustico, maiores danos que benefícios.

Merida Nicolich (10), de Málaga, Espanha, num artigo intitulado "Lo que no debe olvidar-se de los antissepticos oculares", publicado na Revista Cubana de Oto-Neuro-Oftalmiatria (tomo I - N.° 3, Maio-Junho de 1932), escreveu que

"la superfície córneo-conjuntiva no permanece en modo alguno insensible a la acción de tal terapêutica y motivo principal del porqué, muchas veces, desaparecidos los agentes que determinaron la infección ocular, lo que subsiste no es más que la reación inflamatoria química de la mucosa".

No caso particular da tintura de iodo, não ha logar para comentários pois não existe quem não tenha o que contar sobre os efeitos nocivos, cáusticos, irritantes, de uma preparação velha sobre a pele, sendo, por isso, facil de imaginar-se as suas consequencias prejudiciais sobre um tecido delicado e sensivel qual o corneano que, não raro, sofre, tão somente, na presença de vapores de iodo.

Sabemos, entretanto, que a tintura de iodo é por alguns especialistas entre os quais Edilberto Campos (11 ) empregada no tratamento de ulcerações corneanas. Mas, isto se justifica quando usada por especialistas ou por médicos que conhecem perfeitamente as vantagens ou desvantagens de tal prática e, o que é mais importante, suas justas e precisas indicações, assim como os cuidados a observar, porque todos sabemos o que pode suceder quando a mesma não é recente. Poucos dias depois de preparada contém, já, como ensina Richaud (12),

"une quantité notable d'acide iodhydriçue, qui provient, principalement de l'action de 1'iode sur 1'alcool d'après 1'equation:

CH3 - CH2OH+2 I = CH - CHO + 2 H I
(alcool) (iode) (aldéhyde) (acide iodhydrique)

Realmente é ao ácido iodidrico que devemos atribuir os acidentes locais que se observam com o emprego da tintura de iodo, acidentes estes dependentes da quantidade da substancia empregada, da sensibilidade da região e tambem da tolerancia individual, que varia consideravelmente. Na pele, o uso tópico da tintura de iodo velha, produz, usando ainda expressões de Richaud, notavel professor de Farmacologia na Faculdade de Medicina de Paris, "brulures, souvent fort graves que l'on observe si fréquentement à la suite de 1'emploi de la teinture d'iode de 1/10%".

Não conhecemos na literatura médica caso algum semelhante ao que aqui relatámos.

Inúmeras são as observações de afecções oftalmológicas intimamente ligadas a uma causa distante, a um foco de infecção.

A teoria de infecção focal, hoje divulgada até entre os leigos, deu-nos uma vastíssima biblografia referente a amigdalites, a infecções dentárias, a sinusites, responsaveis por afecções oculares diversas.

Castex, numa série de conferencias (13, 14, 15, 16 e 17) realizadas na Academia Nacional de Medicina de Buenos Aires, em 1930 e 1931, esgotou o assunto. Entre os numerosos casos referidos, nenhum ha, entretanto, como o nosso.

Edgar Falcão (18) relata a observação de uma doente com úlcera da cornea, rebelde a todos os tratamentos ensaiados, por todos os especialistas que procurou na sua via-sacra pelos consultorios de: Santos, São Paulo e Campinas durante cerca de 3 longos anos e que se livrou completamente da mesma 10 dias após a abertura dos seios maxilares.

Mas, no caso que relatámos, poder-se-ia responsabilizar uma sinusite que já existia, é bem verdade, e fôra anteriormente verificada; pela rebeldia da lesão corneana sabidamente determinada por um cáustico que, por si só, explicaria a evolução da mesma lesão? Estamos seriamente convencidos de que, não fôra o fato de possuirmos um acervo não pequeno de casos clínicos em que pudemos verificar as relações de intimidade existentes entre os seios para-nasais e as mais diversas afecções oculares e não sei se tomaríamos a deliberação de insistir na abertura do seio maxilar do nosso paciente, como o fizemos, e com tanto êxito!

Recordando para melhor compreensão do assunto, as relações existentes entre os seios maxilares e a órbita, citemos o que já tivemos ocasião de escrever: (1).

"são muito íntimas as reações do seio maxilar com a órbita. A mesma táboa óssea que, para a órbita é assoalho, é teto para o seio. E esta parede oftalmológica do antro, é, ás vezes, tão delgada, que nela os canalículos Hawersianos, comuns a todos os ossos, tornam-se verdadeira solução de continuidade entre as duas cavidades".

Acrescente-se tambem a comunicação do seio maxilar com as fossas nasais, por intermedio do osteum, e, das fossas nasais com o olho, através das vias lacrimais, e será facil de compreender-se como uma infecção do seio maxilar pode ser conduzida ao olho sem grandes dificuldades.

Seja, porém, qual for, a explicação teórica para o caso, o que temos de aceitar é o que foi observado na prática. Tem razão Garcez Froes (19), o grande Mestre da Faculdade da Baía, quando escreveu citando Corral:

"... as enfermidades, ao se manifestarem por sinais, assemelham-se a essas inscrições antigas, meio apagadas pelo perpassar do tempo, para a compreensão das quais urge agregar letras que faltam, retificar outras alteradas e, ás vezes, prescindir de algumas aumentadas por mãos extranhas".

E tambem Torres Homem escreveu:

"Nada mais estéril e ao mesmo tempo mais fecundo do que os fatos, conforme a mão que os colhe, o olho que os vê, a inteligencia que os percebe e o juizo que os aprecia".

BIBLIOGRAFIA

1) - OCTACILIO LOPES - "Complicações Oftálmicas da Sinusite Maxilar" - Empresa Gr. da Rev. dos Tribunais, S. Paulo, 1939.
2) - CICERO FLORES DE AZEVEDO - "Filosofia da Molestia' - Tese de S. Paulo.
3) - TH. HEIMAN - "L'Oreille et ses maladies" - G. Stein Leil, Ed. Paris, 1914.
4) - OLIVE' LIETE - "Carta ao autor" - 1940.
5) - ROBERTO OLIVA - "Sinais oculares nas afecções da ponta da pirâmide". - Bol. do 1.o Cong. Bras. de Oftalmologia", 1936 - pg. 357.
6) - MANGABEIRA ALBERNAZ - "Estrabismo e adenoides" - Rev. Oto-Laringológica de S. Paulo, 1938.
7) - Idem - "Oftalmologia e amaurose passageiras na anestesia do septo. - Rev. Bras. de O.R.L., 1939, pg. 182.
8) - LEMAITRE - "Les Complications Orbitaires des Sinusites" - Vigt Frères, ed., Paris, 1937.
9) - SARGNOM - "Nez et Oeil" - Selection Médicale et Scientifique, Paris, 1937.
10) - MERIDE NICOLHICH - "Lo que no debe olvidarse en los antissepticos oculares" - Revista Cubana de Oto-Neuro-Oftalmiatria". T. 1. N.- 3 - Maio-Junho de 1932).
11) - EDILBERTO CAMPOS - "Consultas Oftalmológicas para o médico policlínico" - Rio, 1927.
12) - A. RICHAUDE - "Précis de Thérapeutique et de Pharmacologie" - Masson et Cie. ed. - Paris, 1924.
13) - MARIANO CASTEX - "El estado atual del problema de la infección". - La Prensa Médica Argentina, 10 - Julho, 1930.
14) - Idem - La doctrina de la infección local" - La Prensa Médica Argentina - 10 - Julho, 1930.
15) - Idem - "El foco séptico dentario (La sepsis oral)" - La Prensa Médica Argentina, 10 Agosto, 1930.
16) - Idem - -El fóco septico amigdaliano-. - La Prensa Médica Argentina, 30 Nov. y 10 de Diciembre de 1930.
17) - Idem - "La infección de los sinus paranasales (El foco septico sinusal paranasal)" - La Prensa Médica Argentina - 20 y 30 de Enero de 1931.
18) - EDGARD FALCÃO - "Res Hippocraticae" - Santos, 1937.
19)- GARCEZ FROES - "Clinica Médica' - Livr. Catilina - Baía.




Recebido pela Redação em 18-5-1941.
(1) Oftalmo-oto-rino-laringologista da "Clínica Santa-Luzia"

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