Versão Inglês

Ano:  1937  Vol. 5   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - ()

Seção: Notas Clínicas

Páginas: 493 a 496

 

ABCESSO LATERAL DO PESCOÇO (1)

Autor(es): DR. FRANCISCO HARTUNG

A minha observação de hoje diz respeito a um caso de abcesso lateral do faringe, complicando uma angina flegmonosa. Vou limitar-me a contar o que vi e o que fiz; nada de citações de ordem teórica, por duas razões. Primeiro, porque é muito provavel que a minha orientação no caso não coincida com o que é classico ou ortodoxo; segundo, porque deixo a parte doutrinaria a cargo dos colegas, e assim poderei julgar até que ponto sou bem acompanhado na minha atuação.

De inicio, devo dizer que foi a leitura de um recentissimo artigo de Kopetsky, em materia da sua especialidade, o rochedo, que me sugeriu uma tal orientação. Como é sabido, a petrosite é o "plat du jour" da otorinolaringologia dos dias que correm. E' raro hoje encontrar-se uma revista americana, francesa, alemã ou sul-americana, que não encerre qualquer colaboração sobre a patologia do rochedo; a cirurgia petrosa avançando aceleradamente, acompanhando e amparando-se nos progressos dos raios X. O grande especialista americano, revelando que as suas qualidades de otologista não se sobrepõem ao seu espirito critico e filosofico, comentando esta literatura, mostra-se extremamente reservado no pretender-se dictar normas na terapeutica da perigosissima complicação das otites. Na sua opinião, depois de operar 44 casos de petrosite, a melhor cirurgia será a que fôr mais racional, desde que se conheça em minucias este capitulo de otologia, ou que não se tome sempre o desaparecimento da oftalmalgia como melhoria do complexo clinico. Qualquer das tecnicas, a começar pela propria em colaboração com Almour, ou as outras, tambem classicas aventadas por Eagleton, Streit, Ramadier, Lempert, póde em certos casos, ser intempestiva e fatal, enquanto que uma petrosite posterior ao labirinto, é perfeitamente curavel pela simples mastoidectomia, embora os raios X demonstrem um rochedo pouco permeavel aos raios X. Que por aí se conclua da reserva necessaria a nós, em face das complicações petrosas, já que ninguem nega a Kopetsky o logar de honra a que tem direito nos meios cientificos modernos. Que a ninguem fique a idéa de que Kopetsky tenha recuado no seu intervencionismo operatorio, ou abjurado as suas antigas concepções; ao contrario, foi trabalhando pelo progresso da petrologia que achou oportuno este reajustamento.

Para a cirurgia dos abcessos do pescoço póde-se imprimir um certo paralelismo no raciocínio. Literatura tambem muito rica, de caráter rigorosamente cientifico. Artigos lidos com redobrado interesse, dada a gravidade do assunto. Mas, tal como no capitulo das petrosites, uma dificuldade aparece quasi insuperavel; muita citação teorica, mas experiencia pratica quasi nula, dada a raridade do material. E assim entre a leitura meditada, esclarecendo um ponto estatuido por exemplo por Claus e por Wessely e a objectivação de um caso, ha sempre um espaço de tempo que não permite mais uma atitude bem definida por parte do cirurgião.

Foi exatamente o que se deu comigo no caso presente; apezar de não conhecer bem o assunto, sabia da necessidade urgente de drenar um tal abcesso por via externa, ou quando não existisse a coleção, pelo menos arejar os espaços parafaringêos, depois de afastar o esterno-cleido. Rememorando entretanto o que ouvira de Waldapfel, não ainda ha, dois anos, em Viena, limitei-me, como tempo preliminar a extirpar a amígdala a quente, sob 39,8 de temperatura, e esta operação, como vereis resolveu satisfactoriamente o caso. E fóra de duvida, dizia Waldapfel, que uma vez complicada a angina flegmonosa, porque já drenada pelos processos classicos de Chiari ou de Killian, aparecem calafrios, curva termica de septicemia, empastamento e rigidez da musculatura do pescoço, impõe-se uma drenagem generosa e urgente por via externa; mas, póde-se começar, ás primeiras horas, pela extirpação da amígdala sob qualquer condição, porque tal atitude póde ainda resolver a situação.

Não mais pretendo alongar-me nestes preliminares; mas não ha duvida que se percebe certa coincidencia de atitudes entre Kopetsky e Waldapfel, quando se rebelam contra sistematisações.

Assim como ha muita petrosite posterior que se cura pela simples mastoidectomia, sem exigir tecnica apuradissima em defeza da carotida, tambem nas complicações das anginas haverá celulites e abcessos cervicais, solucionaveis pela cirurgia puramente amigdaliana sem os inconvenientes traumaticos da drenagem externa, que não póde ser tímida e limitada.

Como sempre, tudo dependerá do bom senso e do conhecimento de causa.

OBSERVAÇÃO

R. C., 31 anos, branca, brasileira, casada, residente nesta Capital; aparece á consulta do serviço do Dr. Schmidt Sarmento, na Santa Casa no dia 13 de Outubro passado. Queixa-se de fortes dôres na garganta, que lhe tornam impossível a deglutição, em seguida a um resfriado; tem tido febre. Pelo exame, nota-se trismus, em esboço, e congestão dos pilares esquerdos, que se estende ao palato móle deste mesmo lado. Apezar de ter a impressão de que o processo purulento estivesse ainda em fase apenas congestiva, fiz a incisão classica de Chiari, muito mais com o fim de descongestionar do que para drenar. E na realidade, houve saida apenas de sangue. Aconteceu que nos dois dias subsequentes não me foi possível comparecer a Santa Casa; a paciente foi então atendida pelo nosso colega Dr. Ernesto Moreira, que me informou haver de novo, por duas vezes drenado pela incisão por mim feita, havendo então escoamento de algum pús. Não obstante, no dia 18, cinco dias após ter eu feito a incisão, sou procurado, pelo marido da paciente, muito alarmado com os padecimentos da sua esposa. Conta-me que não sómente as dôres persistiam com a mesma intensidade, como tambem a sua mulher experimentara altissima temperatura, acompanhada de calafrios. Aconselhei-o que internasse a doente na Santa Casa, que de facto foi feito, na enfermaria do Dr. Ayres Netto. Nesta mesma noite vou ao hospital para julgar da situação. Encontro a paciente, á noitinha, com 39,8; dôres intensissimas, tanto na garganta como da metade correspondente do pescoço; doente em extensão da cabeça, lembrando a rigidez de nuca da meningite, sendo impossivel qualquer movimento na musculatura do pescoço, que se mostra dura e empastada. Pela quarta vez, tenta-se drenar pelo pilar; quantidade de pús insignificante ou mesmo nula. Mandei que se lhe fizesse 10 cc. de Prontosil e aplicações quentes externamente, além de gargarejos.

Pela manhã, porém, convenci-me de que, não havia sómente um flegmão amigdaliano; havia comprometimento tambem dos espaços faringianos; além do que presenciara á noite, percebia-se nitidamente o edema que abaulava a parede do pescoço.

Resolvi então, extirpar imediatamente "a amigdala como aconselha Waldapfel, apezar da temperatura manter-se acima de 39 graos. Operação difícil pela impossibilidade da dissecção e a sensação lenhosa ao Sluder. O orgão foi entretanto retirado em quasi sua totalidade. As melhoras não se fizeram esperar. Em 24 horas a temperatura baixou de 39°,8 para 38°,4; as terriveis dôres no pescoço desapareceram quasi totalmente, permanecendo quasi sómente a disfagia cirurgica. Não houve contudo, neste primeiro periodo corrimento algum de pús. Mandei continuar com o Prontosil, duas injeções de 5 cc. por dia. Passadas mais 24 horas, apezar da temperatura continuar a baixar, como se póde vêr no grafito, o quadro começou a tomar aspeto um pouco diferente, porque a doente voltava a acusar dôres no pescoço e o edema externo tornava-se mais intenso, dando a impressão de que o empastamento muscular tendia para a flutuação. Seria natural o impulso para seguir os classicos, realisando a drenagem externa; havia entretanto uma objecção para tal atitude, porque, embora as condições do pescoço aparentemente houvessem peiorado, em compensação a temperatura continuava a descer e os calafrios não mais haviam entrado em cêna. Pesava pois todos estes elementos, quando se opera a desejada drenagem pela loja amigdaliana, dispensando assim qualquer outra intervenção. A supuração foi abundantissima; ela operou-se aproximadamente 36 horas depois de extirpado o orgão. No primeiro dia, relata a doente, foi forçada a expelir o pús contido na boca, durante mais de 12 horas. Dez dias depois de operada, a doente procurou-me completamente restabelecida.




(1) Comunicação apresentada à Secção de O. R. L. da Associação Paulista de Medicina, em 17 de Novembro de 1937.

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