Versão Inglês

Ano:  1937  Vol. 5   Ed. 5  - Setembro - Outubro - ()

Seção: Notas Clínicas

Páginas: 435 a 438

 

UM CASO DE CRUPE PRIMITIVO

Autor(es): DR. FABIO BELFORT (1)

No dia 17 de Agosto do ano passado fui chamado pelo telefone, ás 4 horas da manhã, pelo distinto colega Dr. Nelson Vilaça, para visitar um doente que apresentava forte pieira e tiragem que, segundo lhe parecia, corria por conta de obstrução laríngea. Perguntei-lhe se o paciente tinha placas brancas na garganta, sendo-me respondido que havia apenas um ponto branco. Disse-lhe que não se tratava provavelmente de um caso da especialidade, porem, ante a insistência do colega, dirigíme á residência do paciente.

Encontrei o menino C. A. C., branco, brasileiro, de 7 anos de edade, em estado verdadeiramente alarmante: Sentado no leito, praticava inspirações dificílimas, com esforço de toda a musculatura respiratoria, a boca aberta, o rosto extremamente palido. O Dr. Nelson Vilaça informou-me que o doentinho já se achava nesse estado havia cerca de 24 horas,, tendo, porem, piorado ultimamente. Fora examinado por varios colegas, inclusive especialista em asma, que, após receitarem adrenalina, se retiravam, ao passo que o menino piorara a olhos vistos. O Dr. Vilaça aplicára uma injeção de Sedol e estava á minha espera, para que praticasse a , intubação laríngea. A familia informou-me que o menino estivera "ligeiramente gripado", antes do acesso de sufocação.

Evidentemente se tratava de uma obstrução alta das vias respiratorias, caracterizada pela tiragem supra-esternal intensissima, com forte estridor laringêo. Mas qual a causa dessa obstrução? Percorri varias hipoteses, pendendo para a de edema agudo infeccioso do laringe.

Desejava praticar a laringoscopía indireta, mas o tempo urgia. O paciente já apresentava as extremidades e os labios cianosados, o pulso batia irregularmente a 140, a palidez se acentuava cada vez mais. A temperatura se mostrava ligeiramente acima de 37.º.

Fosse qual fosse a causa da obstrução, impunha-se a intervenção de urgência. Opinei pela traqueotomía.

Removido o doente para um hospital e, como o estado de hiposfixía se agravasse, resolví ministrar-lhe, previamente, alguns balões de oxigênio, que, aliás, faltavam no momento. Finalmente, após injeção de oleo canforado-esparteina e aplicação de oxigênio, conseguido em outro hospital, poude iniciar a intervenção, ás 8 horas da manhã, apresentando-se o operando em pessimas condições.

No momento em que abria a traquéa, introduzindo a pinça dilatadora, o paciente tossiu fortemente, expelindo, de mistura com o sangue da ferida, grande quantidade de materia muco-purulenta. Os acessos de tosse se repetiram, ainda, durante muito tempo depois de introduzida a canula, sempre com expulsão da mesma materia.

A administração de oxigênio, que não fôra interrompida durante a intervenção, prosseguiu atravez da canula. Imediatamente o paciente mudou de facies, verificando-se verdadeira ressurreição: as cores voltaram, cessou a tiragem, o paciente, que se achava quasi inconsciente, voltou a sí. O aspeto do material que, se eliminara pela canula, trouxe-nos a suspeita de que se tratava de infecção diftérica, de um verdadeiro crupe primitivo, sem previa localisação faríngea. Tendo isso em mente, praticamos, logo após a intervenção, uma -injeção de 10.000 unidades de soro antidiftérico do Instituto do Butantã, seguindo-se mais duas doses, de 20.000 unidades cada uma, de soro de Behring.

No dia da intervenção a temperatura se manteve a 38°, caindo, no dia seguinte, a 37.ª,2. Nesse dia foram injetadas mais 20.000 unidades. No dia 19, terceiro dia, o doente passava bem, escasseando a secreção eliminada pela canula. No dia 21, com o fito de melhorar a observação, requisitei o exame bacteriologico desse material, apezar de que o diagnostico de diftéria se impunha. O resultado do exame praticado pelo proficiente analista Dr. Durval Borges, chegou-me ás mãos no dia 24, nos seguintes termos:

"Semeado o material em meio apropriado e levado a 37° foi verificado o crescimento de um bastonete Gram-positivo, que a coloração de Loffter mostrou possuir granulações hipolares, típicas de Corynebacterium Difteriae".

No dia 22, quinto dia após a intervenção, foram ministradas mais 40.000 unidades de soro Behring, num total de 110.000 unidades antitóxicas. No dia 23 foi retirada a canula. No dia 24 a ferida se achava quasi fechada. Limitei-me a aproximar a pele com agrafes e dei alta, ao paciente, recomendando-lhe o uso de desinfetantes do buco-faringe, sob a forma de pastilhas, ao lado de um relativo isolamento.

Durante todo o decurso do tratamento fui auxiliado pelo Dr. Nelson Vilaça, o qual, de passagem por S. Paulo, prestou-se a acompanhar o caso com o maior carinho e dedicação.

O interesse do presente caso reside na dificuldade do diagnostico rapido, por isso que o doente nada apresentava para o lado do faringe bucal. Toda a anamnese se resumia em uma "gripe". Na realidade tratava-se de um caso de diftería laríngea primitiva, isto é, sem rinite nem angina, o que ficou provado pelo exame de laboratorio.

O Prof. Collet, no "Tratado pratico de oto-rino-laringología", publicado em 1921, por Lannois, Lermoyez, Moure e Sébileau, no capitulo referente á laringite diftérica, nos diz:

"Em um certo numero de casos é sem essa lesão prodromica que explodem os primeiros sintomas de crupe, rudeza da voz, tosse apagada, mesmo dispnéa, e o exame do faringe nada mostra de anormal. Designam-se os casos desse genero, nos quaes a localisação das falsas membranas sobre o laringe parece ser primitiva, com o nome de crupe repentino".

O Dr. José Toledo Pisa, em sua tese inaugural datada de 1919, e da nossa Faculdade de Medicina, abordou, no meio paulista, a questão de diftería. Nessa ocasião salientava:

"Se bem que a localisação primitiva não seja muito rara, com mais frequencia existe concomitantemente com lesões faríngeas e nasaes acentuadas".

Sem querer esmiuçar literatura sobre o assunto, basta citar, a proposito da raridade do crupe primitivo, a recentíssima monografia de G. Carrière, professor em Lille, o qual, em "A difteria", assim se exprime:

"A diftería pode invadir a traquéa e os bronquios. Esta localisação pode ser primitiva, isto é, atingir primitivamente os bronquios, sem atingir as vias aereas superiores. Taes casos são raros. Em 30 anos eu não observei senão 3 casos".

E' interessante verificar que o paciente não apresentava tosse, nem expectorava falsas membranas. Tudo se resumia numa espetaculosa sufocação.

O Prof. Collet, no artigo citado, referindo-se ao periodo de asfixia das laringites diftéricas, resalta a pouca oportunidade que tem o medico de observa-lo após o advento da soroterapia de Roux. Alem disso a facilidade de diagnostico precoce pelos metodos de laboratorio, diminue a facilidade de observarmos esses avançados estados de asfixia.

No presente caso os sintomas datavam de cerca de 24 horas, apenas, e apesar desse curto periodo, já eram assustadores.

O diagnostico diferencial far-se-ia com o edema agudo da glote, com a laringite estridulosa, com corpo extranho das vias aereas, com espasmo da glote, etc. Mas o pessimo estado do paciente não comportava delongas.

Emquanto se discutisse a etiologia exata, bem como a tecnica a adotar, (se intubação ou traqueotomia) o paciente poderia sucumbir. Tratava-se de um caso típico de cirurgia de urgência, nos quaes devemos deixar de lado as controversias e agir depressa. Feito o diagnostico de obstrução alta, genericamente, impunha-se a traqueotomia de urgência.

A existencia de abundante material na parte inferior da traquéa e bronquios, veio nos mostrar a superioridade da traqueotomia sobre a intubação, velha questão na especialidade. Como diz Albrecht, no seu "Tratado de Oto-rino-laringología", em colaboração com Denker:

". . . nos casos graves de asfixia, nos quaes devemos nos lembrar de que existem moldes membranosos que obstruem a luz do orgão, e da propagação á traquéa e bronquios, antes da incubação, encaminhar-se-á o tratamento pela traqueotomia''.




(1) Oto-rino-laringologista da Clinica Irmãos Belfort e da Liga Paulista Contra a Tuberculose.

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