Ano: 1937 Vol. 5 Ed. 4 - Julho - Agosto - (4º)
Seção: Notas Clínicas
Páginas: 375 a 378
ALGUMAS OBSERVAÇÕES INTERESSANTES DE MYIASES
Autor(es): DR. HELIO LEMOS LOPES - Oto-Rhino-Laringologista em Lins.
Attingindo a individuos sãos ou portadores de qualquer affecção ; espalhada por todo globo, apezar do seu maior desenvolvimento nas zonas de clima tropical; não respeitando tecido ou orgão conforme nos mostra Schwetz (1) no relato de um caso de myiase intestinal; furtando-se á acção defensiva dos humores organicos, excepto, talvez, a da secreção ceruminosa do conducto auditivo externo que, no dizer de Brumpt, tem, em condições normaes, uma provavel toxicidez sobre as larvas de dipteros; ainda é a myiase o espantalho das classes menos protegidas da sorte, sobre quem se desforra das barreiras que lhe tem opposto a medicina, especialmente no que tange á hygiene.
Passo a relatar, resumidamente, tres observações de myiases, chamando a attenção do leitor para o facto de que em alguns casos, nos quaes conseguimos salvar a vida do paciente seriamente ameaçada, vinga-se o parasito deixando no hospedeiro os, signaes indeleveis do seu poder destruidor em mutilações capazes de alterar profundamente funcções precipuas do organismo.
1.ª Observação: (resumida) - João C. S., brasileiro, de 48 annos de idade, residente na fazenda Agua Limpa, em Lins, procurou o nosso consultorio por estar com "bichos no nariz".
Conta que, ha uns 6 dias, sentindo comichão e dôr no nariz, expelliu 2 larvas de mosca, e dahi para cá, os seus soffrimentos, apezar das lavagens com creolina de que fez uso, accentuaram-se cada vez mais, obrigando-o a procurar um medico clinico, em cujo consultorio foram retiradas mais 12 larvas, e horas depois sabiam mais 6, sendo 2 pela bocca.
Examinando o paciente, cuja temperatura axillar era de 39,4, verificamos: forte congestão da pelle do dorso do nariz, região malar direita, palpebra inferior e angulo interno do olho deste mesmo lado, epiphora; hyperhemia accentuada de toda a mucosa da fossa nasal esquerda, cuja permeabilidade se achava fortemente embaraçada por um desvio do septo; toda fossa nasal direita cheia de uma secreção amarela, purulenta e fétida; edema e congestão da úvula, do véo do paladar, dos pilares palatinos anteriores e posteriores direitos e da amygdala do mesmo lado; vermelhidão da parede posterior da pharynge, por onde se escoava espessa secreção catarral.
Desempedida a fossa nasal direita de sua repugnante secreção, vimos que as larvas tinham destruido o soalho desta fossa e a concha inferior. O tratamento consistiu em lavagens antisepticas, insuflações de iodoformio e injecções endovenosas de Septicemine Cortial, expellindo o paciente, durante o tratamento, 55 larvas.
No fim de alguns dias davamos alta por estar o mesmo curado, sem apresentar qualquer lesão do oro-pharynge que impedisse a phonação ou a deglutição. Não foi possivel verificar a especie da mosca.
2.ª Observação: (resumida) - Maria G. M., com 16 annos, branca, brasileira, residente á fazenda S. Pedro, em Monlevade, apresentou-se em 16 de Junho de 1936 á consulta, queixando-se de ter bichos de mosca no nariz.
Conta que, a 7 do mesmo mez, trabalhando no campo, estando resfriada, sentiu uma mosca entrar no nariz. No dia immediato appareciam máo cheiro, dór e comichão, expellindo 5 larvas de mosca, vivas.
Procurou um "benzedor" para que a livrasse de semelhante soffrimento. Este, sozinho, não foi capaz de cura-la de tão terrivel praga; recorreu a outros "collegas", que, "em conferencia", por 6 dias, benzeram e tornaram a benzer o rosto da infeliz paciente para a qual já não havia socego pelas dores atrozes que sentia, pelo odor fétido que exalava e pela "salmoura" que escorria constantemente do seu nariz.
Fig. 1
Fig. 2
Desilludida, consultou um clinico e, afinal, resolveu procurar o nosso consultorio, isto já no 9.° dia de molestia. Ao exame notamos edema da face, mais accentuada á esquerda; mucosa da fossa nasal direita hyperhemiada; fossa nasal esquerda repleta de secreção amarella, fétida, purulenta, de envolto com pequenos pedaços de mucosa dilacerada. Feita a limpeza desta, deparamos com destruição completa do soalho da mesma e da cabeça da concha inferior; edema e congestão do resto da mucosa. A abobada palatina exhibia, com hyperhemia e edema da mucosa, uma solução de continuidade, com perda de substancia, alongada no antero-posterior, medindo cerca de um diametro e situada para esquerda da linha mediana, comunicando a fossa nasal corespondente com a bocca; por esta perfuração cujos bordos, removida a camada do tecido necrosado, se apresentavam arroxeados, escorria um liquido sero-sanguinolento, escuro e fétido; palato molle, úvula, pilares palatinos anteriores e posteriores apresentavam-se congestos. Abundante secreção catarral descia da parede posterior da pharynge. Pelo orificio do véo palatino retiramos 9 larvas de mosca. Temperatura axillar de 39,2.
Recorremos, neste l.° curativo, pela gravidade das lesões, ás applicações de nitrato de prata, em soluto a 2 % ; nos posteriores usamos das classicas insuflações de iodoformio, eliminando a paciente 148 larvas. Fizemos-lhe algumas injecções de Septicemine Cortial, por via endovenosa. No fim de uma semana estava a paciente clinicamente curada.
Como já esperavamos, a perfuração na abobada palatina permaneceu communicando a fossa nasal com a bocca e pelo orificio se podia introduzir a cabeça do dedo minimo em plena fossa nasal esquerda, cujo soalho desapparecera.
Esta lesão, resultado da ignorante crendice popular numa "profissão" malefica e criminosa, constituiu, dahi por diante, um serio embaraço á alimentação da paciente. Aconselhamos-lhe a submetter-se a uma intervenção cirurgica que lhe corrigisse semelhante defeito ou ao uso de um apparelho prothetico que lhe fosse impedir a passagem de alimentos para o interior da fossa nasal.
3.° Observação: (resumida) - João F. S., com 42 annos de idade, brasileiro, residente á Villa Sabino, em Lins, procurou o nosso consultorio em 26 de Abril de 1937, por ter bichos no nariz e na bocca.
Contou ser esta a segunda vez que tem bichos no nariz. Da primeira, aos 20 anos de idade, os mesmos apareceram-lhe no lado direito do nariz; tratou-se e ficou bom.
Estava resfriado e, ha 5 dias, começou a sentir comichão no lado direito do nariz, ao mesmo tempo que escorria uma "salmoura"; horas depois sahiam já muitos bichos de mosca. No dia imediato tambem pela boca descia a "salmoura", aparecendo dor e difficuldade na deglutição, sintomas que acentuaram, chegando, presentemente, a impedir-lhe de se alimentar. Respirava a custo e quasi não podia falar.
Examinamos o paciente, que estava com 38,6 de temperatura axillar para 140 pulsações, radiais, encontrando: hipertrofia e congestão das conchas media e inferior esquerdas, que se apresentavam cobertas por abundante secreção catarral; fossa nasal direita em forma de tunel com um tecto abobadado e liso, exibindo uma mucosa recoberta de crostas amarelas, sem o menor vestigio das conchas e meatos; destruição do soalho em cujo espaço acumulava-se espessa secreção purulenta; septo edemaciado, congesto e desviado para a esquerda; ausencia completa de dentes no maxilar superior e os que restavam á mandibula estavam em precarissimo estado; véu palatino acentuadamente congesto e edemaciado, chegando a tocar a base da lingua; destruição da úvula em cujo local havia uma chanfradura attingindo o palato duro; mucosa da parede posterior do faringe hiperemiada, coberta por abundante secreção catarral amarelada; pilares palatinos direitos congestos e erosados, com secreção purulenta; pilar posterior esquerdo edemaciado com vasos turgidos; pilar anterior esquerdo destruido; da amígdala esquerda restavam um pequeno feixe de tecido preso ao pilar posterior e o polo inferior; a amígdala direita ulcerada em toda sua face interna achava-se coberta por uma falsa membrana, branco-amarellada. Algumas larvas de mosca movimentavam-se no meio da abundante massa de tecido necrosado que enchia a loja amígdaliana esquerda.
A' rinoscopia posterior, deparamos com destruição da metade inferíor dos orificios choanais dos quais restava, em bom estado, o bordo posterior do vomer; ausencia de conchas á direita; caudas das conchas esquerdas e paredes laterais da faringe congestas, edemaciadas e com abundante secreção purulenta. Precario era o seu estado geral. Como tratamentto empregamos, após cuidadosa limpeza da região, as classicas insuflações com iodoformio; fizemos-lhe algumas injecções de Septicemine Cortial, e no fim de 15 dias estava o paciente clinicamente curado da affecção que tanto lhe mutilára o istmo faringeo, conforme se pode vêr nas duas fotografias que se seguem, a l.ª no terceiro dia de tratamento e a 2.ª no dia que lhe foi concedida a alta.
O paciente expelliu ao todo 51 larvas, não sendo possivel identificar a especie do diptero.
Como na observação anterior, tambem não fugiu o nosso doente á acção nefasta e enormemente prejudicial á sua fonação com que marcaram a segunda passagem pelo seu organismo estes temiveis parasitos.
As lesões do véu palatino, pela destruição quasi completa do palato mole e consequente retração cicatricial, originaram uma acentuada rinolalia aberta, infelizmente, incuravel. A deglutição de alimentos solidos e semi-liquidos voltou ao normal; a ingestão de alimentos liquidos, entretanto, tornou-se difficil pelo refluxo de parte desses liquidos pelas fossas nasais.
RESUME:
DR. HELIO LEMOS LOPES - Quelques observations interessantes de myiasis.
L'A. présente trois observations resumées de myiasis des fosses nasales et du pharynx.
Dans la prémière observation, l'A. rapporte un cas de rhino-myiasis avec destruction du plancher de la fosse nasale droite et de la tête du cornet inférieur du même côté.
La deuxième est une observation de rhino-myiasis avec destruction du plancher de la fosse nasale gauche et perforation de la voute palatine, mettant en relation la fosse nasale respective avec la cavité buccale, en apportant un grand obstacle à l'alimentation du malade.
La dernière observation est un cas de rhino-myiasis avec destruction du plancher de la fosse nasale droite, de la luette, du pilier antérieur et de l'amygdale gauches; des piliers anterieur et posterieur droits. Le pilier posterieur gauche et la face interne de l'amygdale droite se trouvaient ulcerés. Ce malade, aprés la guérison; montra des troubles à la phonation et l'ingestion des alimenta liquides dus à la cicatrisation vicieuse des lésions destructives de foro-pharynx.
(1) Schwetz, J. - Sobre um caso de myiase intestinal provocada pelas larvas de Chrysomyia putoria, Wied. Ann. de la Soc. Belge de Méd. Trop. Tomo XIV n.º 4, 31 Dezembro 1934.
NOTA DA REDAÇAO: respeita-se a ortografia do Autor.