Versão Inglês

Ano:  1937  Vol. 5   Ed. 2  - Março - Abril - ()

Seção: -

Páginas: 143 a 150

 

CORNETO, CARTUCHO, TURBINADO OU CONCHA?

Autor(es): DR. PAULO MANGABEIRA-ALBERNAZ (Campinas)

A linguagem técnica deve ter como principais qualidades rigor e concisão: cada coisa deve ter seu nome, um só, certo e exato. A sinoníma copiosa só tem razão de ser na literatura geral, para amenisar a leitura pelo adôrno da frase. Usada na literatura científica, só apresenta, desvantagens, pois que sacrifica a clareza e, destarte, fatiga o leitor. Nada mais absurdo do que, por exemplo, designaram-se certos ossos intranasais por quatro nomes: cornêtos, cartuchos, turbinados, conchas. É lógico, que, usados embora, não têm todos êsses vócabulos o mesmo rigor filológico e que é medida de necessidade óbvia tentarem os professores de anatomia e de rinologia pôr de parte três dos sinônimos, designando os ossos em apreço por um único nome. Vejamos, pois, qual o que deve ser preferido.

1) Cornêto

Há alguns dicionários (o de Frei Domingos Vieira entre outros) que consideram esta palavra derivada do vocábulo corno, acrescido de o sufixo diminuitivo êto. Isto não corresponde entretanto á realidade. Cornêto é uma tradução literal, dessas intoleráveis, do francês cornet.

Os termos técnicos portuguêses vêm em geral direta ou indiretamente do francês ou do inglês. A terminologia automobilística, por exemplo, é, entre nós, em grande parte, oriunda do francês por serem sido francêses os primeiros mecânicos de automóvel que vieram ao Brasil. A peça do motor a que se chama em francês vilebrequin porque se assemelha a uma pua (em francês vilebrequin) tomou em português o nome de virabrequim. Os operários de estrada de ferro traduziram longeron (em português longarina) por longerão; o vocábulo inglês sleeper (dormente) foi aportuguêsado em sulipa. É verdade que tais fatos se observam em todas as línguas; basta lembrar como exemplo o alemão Sauerkraut afrancesado em choucroute.

Um mecânico, que em geral mal, sabe ler, traduzir vilebrequin por virabrequim, ou um simples operário, igualmente de instrução muito rudimentar, tirar sulipa de sleeper, são sem dúvida cousas perfeitamente explicáveis e passíveis de desculpa. Mas um médico, indivíduo de instrução superior, elevada, traduzir cornet por cornêto, é um despropósito, uma prova irretorquivel de que esta instrução de superior só tem o nome. Não resta a menor dúvida de que da falta de rigor no estudo do português e do francês nos ginásios é que se origina a presença no idioma de uma série enorme de termos supérfluos, uns ás vêzes justificáveis, outros irrisórios, quando não irritantes.

Cornet é um díminuitivo de corne. Plácido Barbosa supõe que se tenha dado tal nome ao osso por ser enrolado "como o corno dos bois". Não é exato. Que cornet vem de corne não resta dúvida, mas o osso tomou o nome não da raiz, e sim da nova palavra. Cornet em francês tem vários significados: espécie de pequena trompa rústica; tudo que tem a forma de corneta, etc. Segundo o Larousse do Século XX, dá-se em anatomia o nome de cornet a pequenas lâminas ósseas dispostas em forme de cartucho de papel (contournées en forme de cornets de papier). A semelhança não é, pois, nem com um chifre, nem com uma corneta, mas com um cartucho de papel. Ora, a palavra cornet, correspondendo, na acepção empregada, a cartucho, só por ignorância irritante poderia ser traduzida por cornêto. A palavra cornêto não tem, portanto, razão de ser para continuar a ser usada em terminologia médica, sendo como é um verdadeiro atestado de ignorância ou pouco zelo dos anatomistas antigos, que a introduziram no idioma.
Os filólogos argumentarão que a palavra está consagrada pelo uso e vem registrada nos melhores dicionários da língua. Mas, além dêste escrito não ser destinado a filólogos, a questão não é simplesmente de ordem filólogica, nem pode ser tácitamente adotado, em terminologia científica, tudo que vem registrado nos dicionários, por mais autorizados que sejam. Nós médicos temos razões sobejas para desterrar o mal-nascido cornêto de nossa linguagem técnica. Precisa e merece ser expulso do território ... médico.

2 ) Cartucho

Cartucho (1), do italiano cartoccio, vaso de papel enrolado, foi introduzido em português, de referência aos ossos intranasais, por médicos mais cuidadosos de sua língua, e mais cultos. Traduzir cornet por cartucho é absolutamente justo. A palavra, que tem talvez maior uso no norte do país (porque aí os professores, ao que parece, só designam os tais ossos por êste vocábulo), está plenamente consagrada pelo uso.

O nome cornet foi sem dúvida dado ao osso pela morfologia, isto é, por parecer êle um cartucho. Sabemos nós médicos (e sobretudo os rinologistas), que a comparação, como a maioria das comparações anatômicas, é perfeitamente estapafúrdia. Em todo caso, não deixa o formato do osso inferior (só o dêste) de ter semelhança longínqua com um cartucho. Os três outros superiores é que não têm com tal envoltório o menor vislumbre de parecença.

A primeira dificuldade - e séria - que encontramos na adoção do termo, é a formação de seus compostos. Poderemos dizer cartuchótomo, cartuchectomia, etc. ? Há na linguagem médica uma série de palavras híbridas nas condições das ora mencionadas, mas em rigor os termos médicos devem ser formados com radicais e sufixos da mesma língua. Veremos adiante que tais compostos já existem em vários idiomas, mas formados com outro radical.

Eis um motivo ponderoso para que, em terminologia médica, não retenhamos a palavra cartucho.

3) Turbinado

Este vocábulo é um adjetivo oriundo do latim turbinatus. Tem, em português como em latim, o significado seguinte: que tem a forma de pião ou de um cone invertido, de um cone pouco alongado e bastante largo na base (Eduardo de Faria, 1849; Correia de Lacerda, 1870; Caldas Aulete e Santos Valente, 1884; Jáime de Séguier, 1910; Cândido de Figuereido, 1913; Simões da Fonseca e João Ribeiro, 1926; Silva Bastos, 1928; Leverett, 1846; Santos Saráiva, 9.° edição; The Century Cyclopedia, 1906).

Turbinatus origina-se por sua vez de turbo, inis, turbilhão, rotação; cone. Turbo conchae (Plínio) é uma concha de forma cônica.

Segundo a Century Cyclopedia, turbinate (o correspondente em inglês, ao latim turbinatus) tem três significados principais: 1.° - Em forma de pião. Nêsta acepção, significa em concologia (ciência que estuda as conchas), espiral, como uma concha univalve. 2.° - Em anatomia - de forma torcida ou de voluta; de contextura esponjosa, ou cheia de cavidades. 3.° - Que gira como um pião.

Parece que o significado de estrutura esponjosa ou cheia de cavidades tomou origem do aspecto anatômico do osso nasal, pois que nem os melhores dicionários de latim dão á palavra turbinatus tal acepção. Leverett em sua obra, compilada do famoso Magnum Totius Latinitatis Lexicon de Facciolati e Forcellini (obra que "em repositório imenso, abrange toda a latinidade", no opinar de Rúi) e das obras de Scheller e Luenemann, não refere tal significado. Turbinatus corresponde ao grego Konoeidés, em português conóide.

Não resta dúvida, pois, que turbinado pode servir para designar os ossos nasais em aprêço. Mas, dos tais ossos, só um tem forma mais ou menos cônica: o inferior. Como já vimos, a forma cônica (que é a do cartucho) não traduz em rigor o aspecto dos ossos a que nos estamos referindo.

Há, porém, uma dificuldade de vulto no uso desta palavra. É que ela é um adjetivo substantivado, o que dificulta sobremaneira a formação dos compostos. Existe um composto, usado largamente no estranjeiro, e, que já se ouve entre nós: é turbinectomia. O dicionário médico de Littré já o registra. No de Dorland encontramos turbinectomy, turbinotome e turbinotomy. Segundo o autor ultimamente citado, a raiz é turbinal. Mesmo que o seja, os compostos só poderiam ser turbinalectomy, turbinalotome, turbinalotomy, pois, que havendo a palavra turbine em inglês, os compostos mencionados pelo dicionarista parecem se referir a esta palavra. Poder-se-ia alegar que houve, no caso, uma simples supressão de, sílabas, motivado ou justificada pela lei do menor esforço. Dava-se então o que se verifica, por exemplo, com apendicectomia, que os anglo-saxões resumiram em apendectomia. Não tem valor a justificativa. A linguagem médica exige clareza e rigor. Não é uma linguagem de gíria, que pode ser abreviada á vontade. Apendectomia não significa coisa nenhuma; é apenas um termo truncado e mal feito, e, por isso mesmo não é usado senão em meios restritos.

De turbinalis poderíamos fazer turbinalectornia, turbinalótomo, etc. Da palavra latina rigorosamente correspondente a turbinado derivar-se-ia turbinadectomia, turbinadótomo. Como se vê, as palavras não são eufônicas.

Diante do exposto, parece-me que devemos também rejeitar o vocábulo turbinado.

4) Concha

A palavra concha vem-nos do latim concha (de conchula na opinião de Meyer-Lübke). Esta, por sua vez, do grego Konkhé (Kogkhé), cujo significado, na opinião de Liddell e Scott, de Pickering, de Bailly, de Alexandre, Planche e Defaucompret, é de casca de crustáceo. Depois, designou a mesma casca usada como medida para líquidos (Ferécrates). Mais tarde, representou qualquer osso ou cavidade concóide (isto é, em forma de concha) do corpo humano, como: 1 ) a cavidade do ouvido; 2) o buraco do olho ou órbita; 3) a rodela do joelho, ou rótula (Pólux), segundo afirmam Liddell e Scott.

Em latim, porém, o significado da palavra sofreu alterações. Leverett, que representa como já vimos as opiniões abalizados de Facciolati e Forcellini, de Scheller e Luenemann, diz que concha tambem significara "uma espécie de trombeta (provavelmente feita de uma búzio ôco) na qual os tritões sopravam".

Segundo a Century Cyclopedia, concha significa, entre outras coisas, "uma casca de osso ou um osso como uma concha ou casca".

Em português concha significa a casca dos mariscos. Segundo Correia de Lacerda, vem do lat. concha em grego Konkhé do verbo Konkló, girar (2). "Própriamente significa" - diz Lacerda - "concha turbinada espiral, como a do caracol e outras".

No latim científico, concha foi o nome dado pelos anatomistas aos ossos nasais a que êste estudo se refere. Em terminologia médica temos, em latim 1) a concha auriculae, isto é, a concha da orelha, aquela cavidade central do pavilhão que vai ao meato auditivo; e 2) as conchae nasalis, que são os ossos cujo nome se discute.

A designação dos ossos pela palavra concha não é encontrada nos dicionários portuguêses, e o primeiro trabalho, escrito em nossa língua, em que a vi registrada, foi a tése de Otaviano de Brito (Das complicações órbito oculares das sinusites crânio-faciais - Rio de Janeiro, 1907).

Os inglêses fazem largo uso do vocábulo, mas parece que isso é um tanto recente. O Dicionário de Wébster, edição de 1875, não registra a palavra, mas já o faz o de Funk, edição de 1900.

A palavra concha significa, em qualquer língua, a casca dos mariscos e, por extensão, tudo que se parece com esta casca. Concha de balança, concha da mão, concha de sôpa, etc, dão idéia da concha bivalve. Mas o búzio tambem é uma concha, e o osso nasal tem com ele maior semelhança do que com um cartucho de papel, que é ôco, ou com um cone, que é um sólido muito regular. De-certo, por isso, resolveu a Convenção Anatômica de Basiléia (B. N. A.) designar em latim tais ossos pelos nomes de concha nasalis inferior, media, superior e suprema. Aínda por causa desta analogia de forma, chamam os alemães Muschel (concha) os referidos ossos nasais.

O ser concha a designação latina do osso, já nos está a indicar como é vantajoso designá-lo em português pela mesma palavra. Dizendo concha média escrevemos português vernáculo e facilitamos a compreensão a qualquer especialista estranjeiro que nos ler, pois, a palavra latina é do uso vulgar entre especialistas.

Outra vantagem de seu uso vamos encontrar na formação dos compostos. Já registra o dicionário médico de Dorland conchoscop e conchotome (ch como k) ; o alemão de Guttmann, conchoscop e conchotomie (ch como k) ; o tratado de Cirurgia Oto-rino-laringolócica de Loeb e outros conchotribe (ch como k) ; o Larousse de Século XX, conchotome, conchotomie (mesmo em francês, ch como k); o Tratado de Oto-rino-laringológica de Denker e Kahler, conchotom; etc., etc.

Quando ainda estudante, ouvi varias vêzes pronunciar-se conchótomo e conchotomia (ch como x).Poder-se-ia assim dizer, se os vocábulos fossem híbridos. É comum ouvir-se entre engenheiros a pronúncia conchóide. Não há, entretanto, nenhum dicionário de português que justifique ou aconselhe tal pronúncia. Em francês ou inglês o ch dos nomes oriundos de concha é pronunciado como k: concóide, concótomo, concotomia, concologia, conquíferas, conquite, ronco-anti-hélice, conquiologia, etc. e não conchóide, conchótomo, conchologia, conchíferas, conchite, concho-anti-helice, conchiologia etc. Isto porque tais vocábulos foram formados diretamente na própria língua grega, ou com raizes e sufixos gregos. A pronúncia errada talvez seja devida á tal ortografia que se convencionou chamar mixta, uma das fontes de maior dificuldade de escrita e de maior número de êrros de pronúncia de nossa língua.

Pelo exposto vemos em suma que:

1.º - Cornéto é uma tradução servil do francês cornet na acepção de invólucro cônico de papel.

2.º - Cartucho traduz certo o sentido que os francêses dão a cornet, levando em conta a certa parecença entre
ostais ossos nasais e o envoltório de papel. Não é possível, porém, com a palavra cartucho formar
derivadoseufônicos.

3.º - Turbinado foi designação dada os ossos por aparentarem forma cônica. Não o aparentam de fato, e, sendo a palavra um adjetivo substantivado, torna-se difícil á formação de derivados. Os que há, referidos em francês e inglês principalmente, são formados errôneamente (turbinadectomia, turbinótomo em vez de turbinalectomia e turbinalótomo ou turbinadectomia e turbinadótomo, que seriam os derivados formados pela regra).

4.º - Concha é o vocábulo que, em latim científico, designa os ossos em estudo; palavra equivalente designa-os em alemão (Muschel - concha) ; significa nas línguas de origem (latim e grego) não só a casca de certos crustáceos, como tudo que se lhe assemelhe (a esta casca) ; concorre a formar todos os derivados relativos a concha, em qualquer sentido; é a palavra que forma o maior número de termos médicos já em uso, relativos aos ossos nasais em apreço.

De tudo isso se conclue que os anatomistas e rinologistas devem designar os ossos nasais, também conhecidos por cornêtos, cartuchos ou turbinados, pelo nome de conchas.




(1) Cartucho com ch! Não se confunda com cartuxo (com x), frade da ordem cartuxa (chartreuse).
(2) Este verbo não existe. Não o pude encontrar nos dicionários mais famosos da língua grega.

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial