Ano: 2003 Vol. 69 Ed. 4 - Julho - Agosto - (22º)
Seção: Relato de Caso
Páginas: 577 a 580
Síndrome de Rendu-Osler-Weber: tratamento clínico e cirúrgico
Rendu-Osler-Weber Disease: clinical and surgical treatment
Autor(es):
Roberta I. D. Garcia1,
Suzana B. Cecatto1,
Kátia S. Costa1,
Fernando Veiga A. Jr.2,
Ivan P. Uvo3,
Priscila Bogar Rapoport4
Palavras-chave: teleangiectasia hemorrágica hereditária, Síndrome de Rendu-Osler-Weber, epistaxe
Keywords: hereditary haemorrhagic teleangiectasia, Osler-Weber-Rendu syndrome, epistaxe
Resumo:
Teleangiectasia Hemorrágica Hereditária (Síndrome de Rendu-Osler-Weber) consiste de uma rara displasia fibrovascular sistêmica, de transmissão autossômica dominante, com incidência de 1-2/100000, afetando vasos sangüíneos da pele, mucosas, pulmões e trato gastrointestinal. É reconhecida pela tríade clássica de teleangiectasias em face, mãos e cavidade oral, epistaxes recorrentes e histórico familiar. Em 90% dos casos, a epistaxe recorrente é o principal sintoma, porém a doença pode afetar qualquer parte do organismo. O tratamento é paliativo, sendo ainda controverso. Neste estudo relatamos três pacientes portadores da doença, enfocando aspectos clínicos e tratamento.
Abstract:
Hereditary Haemorrhagic Telangiectasia (Rendu-Osler-Weber disease) is a rare disease with and incidence of 1-2/100000, affecting blood vessels of the skin, mucous membrane, lungs and gastrointestinal tract. It is recognized as a classic triad of teleangiectasia in face, hands and cavity; recurrent epistaxe and family occurrence. We reported three patients with Rendu-Osler-Weber disease and discussed about clinical manifestations and treatment.
INTRODUÇÃO
Teleangiectasia Hemorrágica Hereditária (THH) ou Síndrome de Rendu-Osler-Weber é uma doença autossômica dominante com alto grau de penetrância, afetando todas as raças e apresentando a mesma distribuição entre os sexos. É uma síndrome rara, com incidência de 1-2/ 100000.1
A lesão inicial baseia-se em deficiência estrutural da parede dos vasos sangüíneos, caracterizada por alteração da lâmina elástica e camada muscular, tornando-as mais vulneráveis a traumatismos e rupturas espontâneas.1,2
Apesar da transmissão autossômica dominante, em 15 a 23% dos casos não há histórico familiar, apenas mutações esporádicas. Muitos genes foram implicados na patogênese da doença, sendo dois identificados: Endoglin (9q:33-34), associado a manifestações no sistema nervoso central (SNC) e pulmonar; fator de crescimento transformador BII receptor (3p 32) relacionado com vasos sangüíneos. Os estados homozigotos parecem ser letais, porém há poucos casos publicados. Além disso, o cromossomo 12q é associado a teleangiectasias e epistaxes recorrentes.3,4
As manifestações otorrinolaringológicas são as mais freqüentes, sendo o principal sintoma epistaxes recorrentes, presente em 93% dos pacientes.1
A doença pode acometer outras regiões do organismo, como olhos, pele, pulmões, cérebro, sistema nervoso central, tratos gastrointestinal e genitourinário. O otorrinolaringologista, geralmente o primeiro médico a prestar assistência, deve estar apto a realizar o diagnóstico, para que o tratamento seja precocemente instituído e as complicações evitadas.1,2
RELATO DE CASOS
D.D., 65 anos, masculino, procurou o Serviço de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC com histórico de epistaxe recorrente há 40 anos. Referia que, inicialmente, o sangramento apresentava-se em pequena quantidade, sendo controlado apenas com tamponamentos nasais anteriores e posteriores. Com o passar do tempo ocorreu aumento da freqüência e intensidade dos episódios, sendo necessários outros tipos de terapia, como cauterização nasal, que pela utilização sucessiva resultou em perfuração septal.
Há 20 anos apresentou hemangioma em língua e, após cauterização, cursou apenas com sangramento de leve intensidade e esporádico. Há 13 anos apresentou episódio grave de sangramento nasal, com necessidade de internação e transfusão sangüínea. Há 10 anos foi submetido a cirurgia nasal com utilização de enxerto de pele (septodermoplastia), com melhora da sintomatologia. Nos últimos dois anos vem apresentando recorrência da epistaxe, sendo necessário a realização de termocoagulação, além dos usuais tamponamentos nasais. Nega episódios de sangramento em outros órgãos.
Ao exame físico, presença de teleangiectasias disseminadas pelo tórax, pontas dos dedos e lábios; a rinoscopia anterior mostrou perfuração septal e presença de crostas. O paciente apresentava também hemangiomas em língua.
Foi encaminhado para a pneumologia e gastroenterologia, visando avaliar a existência de possíveis malformações em outros sistemas, e após investigação minuciosa não foram encontradas alterações até o momento. Está em acompanhamento com hematologista, para compensação da anemia.
Atualmente, o paciente é freqüentemente submetido a tamponamentos anteriores e/ou posteriores em nosso ambulatório.
Os familiares do paciente compareceram à consulta a nosso pedido, sendo que o filho, M.D., 38 anos, sexo masculino, referia episódios de epistaxes recorrentes há 15 anos, controladas facilmente por compressão digital. Ao exame físico apresentava teleangiectasias em mucosa septal somente, porém sem pontos sangrantes. O neto, L.S.D., 8 anos, sexo masculino, apresentou apenas um episódio de epistaxe leve, com fácil controle. Exame físico sem alterações. Ambos não mostravam outras complicações sistêmicas. Foram orientados quanto à patologia e possíveis complicações futuras. Estão em acompanhamento clínico em nosso serviço, assintomáticos até o momento.
DISCUSSÃO
A Teleangiectasia Hemorrágica Hereditária (THH) é uma doença autossômica dominante que afeta a parede dos vasos sangüíneos. Foi descrita pela primeira vez em 1864, por Sutton.1,5
As manifestações clínicas são secundárias a sangramentos, podendo afetar qualquer parte do organismo. O otorrinolaringologista geralmente é o primeiro médico a ser procurado, pois em 90% dos casos o sintoma mais comum é a epistaxe recorrente; esse sangramento é secundário a teleangiectasias, sendo que 50% dos pacientes apresentam o primeiro episódio por volta dos 10 anos de idade e em 80 a 90% dos casos até os 30 anos.5 Um terço dos pacientes apresenta epistaxe severa, necessitando de internação e transfusão sangüínea1, como ocorreu com o paciente do caso descrito. A severidade da epistaxe é pior com o avanço da idade, com a gravidez e após a menopausa, devido aos níveis flutuantes de estrogênio na mucosa nasal. Outros fatores que influenciam são: puberdade, menstruação, uso de anticoncepcionais orais, bem como estresse, álcool e mudança de temperatura.6
O comprometimento mucoso-cutâneo inclui teleangiectasias maculares de 1 a 3 mm de diâmetro e, em 60% dos pacientes, aparecem 10 a 30 anos após os episódios de epistaxe. As lesões ocorrem em 71% dos casos nas palmas das mãos e leitos ungueais, lábios e língua em 66%, e os 20 a 40% restantes acometem face, extremidades, conjuntiva e tronco. Raramente levam a sangramento, sendo o tratamento basicamente estético e realizado com laser. A teleangiectasia conjuntival da retina ocorre em 45% dos pacientes, sendo que 16 a 35% apresentam lágrimas com sangue.5
Manifestações pulmonares da THH incluem hemoptise, hemotórax, shunting direita-esquerda e embolia paradoxal. Decorrem de malformações artério-venosas (MAV) e fístulas, presentes em 5 a 23% dos pacientes. A embolia paradoxal, encontrada em 40 a 50% dos pacientes, pode causar acidentes isquêmicos transitórios e vasculares cerebrais. Em 8% dos pacientes pode ocorrer hemorragia pulmonar maciça. Outros sintomas incluem hipoxemia, dispnéia, cianose, policitemia e baqueteamento da falange distal. O diagnóstico é realizado com tomografia computadorizada helicoidal de alta resolução e angiografia; o tratamento inclui ressecção cirúrgica, ligadura arterial e embolização.
Complicações no sistema nervoso central variam desde um ataque isquêmico transitório até abscesso ou sangramento intracraniano. É estimado que 8 a 41% dos pacientes com THH vão apresentar alguma complicação neurológica durante a vida. Manifestações clínicas podem incluir convulsões, cefaléia, coma e graus variados de déficits neurológicos. Na maioria dos pacientes o diagnóstico é feito com tomografia computadorizada de alta resolução e angiografia5,6,7. As opções de tratamento são ressecção cirúrgica, embolização e radiocirurgia.
No trato gastrointestinal as manifestações incluem teleangiectasias, malformações arteriovenosas e varicosidades, podendo levar à hemorragia digestiva alta, disfunção e encefalopatia hepáticas. O sangramento tende a ser recorrente e progressivo, e geralmente ocorre após os 40 anos de idade. Notoya et al. relataram um caso de lesão esplênica associada a THH8. O diagnóstico pode ser feito por endoscopia ou angiografia, e o tratamento inclui estrogenioterapia, laser, cauterização ou ressecção cirúrgica5.
O diagnóstico da THH baseia-se na avaliação clínica do paciente. Os critérios incluem a tríade clássica de epistaxe, teleangiectasia e história familiar, no entanto essa tríade não ocorre na totalidade dos casos. Muitos autores estabelecem o diagnóstico de THH na presença de pelo menos duas manifestações da tríade e mais algum envolvimento visceral bem documentado.2,9
Dentre os diagnósticos diferenciais podemos citar as epistaxes secundárias a trauma, tumores, coagulopatias e principalmente aquelas de causa desconhecida.5
O tratamento da THH é paliativo. Não existe consenso a respeito da melhor opção terapêutica. O objetivo do tratamento é promover o controle da doença o maior tempo possível, com o mínimo de intervenções, tentando evitar seqüelas.10
Alguns episódios de sangramento agudo podem ser controlados por compressão manual, tamponamento nasal anterior e/ou posterior, bem como cauterizações. Esta última, quando utilizada repetidas vezes, pode levar à necrose, sinéquias e até mesmo perfuração septal1,11, observada no caso relatado. Os pacientes, com o tempo, aprendem a prevenir e tratar sua própria epistaxe. Em geral, devem evitar trauma digital, manter umidificação adequada e estar treinado a se auto-tamponar num primeiro momento com material absorvível. Para sangramentos mais intensos, dispõe-se de embolização e ligadura arterial, que geralmente apresentam bons resultados a curto prazo. Porém, estes métodos tornam-se inefetivos a partir do momento em que a circulação colateral se reestabelece na mucosa nasal, o que geralmente ocorre, pois a doença apresenta caráter persistente. Outras opções de tratamento incluem o uso do ácido aminocapróico, terapia estrogênica, fotocoagulação a laser, bem como braquiterapia intranasal com 192 Ir.10
A terapia estrogênica leva à metaplasia escamosa do epitélio nasal, o que previne traumas locais e sangramentos, entretanto apresenta efeitos colaterais, tais como: efeitos feminilizantes em homens e aumento do risco de câncer endometrial na pós-menopausa em mulheres.1,2
A cauterização a laser pode substituir a química, e vem se mostrando efetiva da THH moderada, principalmente quando combinada a septodermoplastia.1,2
Em epistaxes severas e crônicas são citados a septodermoplastia, a técnica de Young modificada e retalhos cutâneos e miocutâneos.
A septodermoplastia é considerada padrão ouro de tratamento, quando todas as outras formas foram inefetivas. A técnica consiste em remoção da mucosa do septo nasal, sendo substituída por um fino enxerto de pele. Esse procedimento promove melhora temporária dos sintomas, devido ao reaparecimento de teleangiectasias no próprio retalho, fato observado no caso clínico descrito. O uso de membrana amniótica na cirurgia tem mostrado algum sucesso.1,2,11,12
A técnica de Young modificada tem se mostrado efetiva. Consiste no fechamento uni ou bilateral da cavidade nasal, evitando a turbulência e o ressecamento causado pelo constante fluxo de ar através das teleangiectasias. A desvantagem é manter uma obstrução nasal permanente.1,2,11
Outro dado importante a ser considerado é o controle da anemia crônica.
O prognóstico é bom nos casos onde se consegue o controle dos sangramentos, sendo a mortalidade por complicações decorrentes da doença reportada em menos de 10% dos casos.5
COMENTÁRIOS FINAIS
A epistaxe decorrente da Síndrome de Rendu-Osler-Weber, apesar de rara, deve ser lembrada, principalmente se o quadro de sangramentos for repetitivo e severo. O diagnóstico precoce faz-se necessário, viabilizando a investigação de malformações pulmonares e do SNC associadas, prevenindo e evitando conseqüências dramáticas. Além disso, sendo esta uma síndrome para a qual ainda não se definiu uma terapia inteiramente satisfatória, é importante relatar os casos encontrados, com o intuito de comparar as manifestações clínicas e condutas terapêuticas, em busca de uma melhor evolução e qualidade de vida para os pacientes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Residentes de 3º ano da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC).
2 Professor Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMABC; pós-graduando (doutorado) da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
3 Professor Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMABC.
4 Professora Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMABC.
Endereço para correspondência: Rua Professor Filadelfo Azevedo,400
Vila Nova Conceição São Paulo 04508-010
Trabalho realizado pela Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC-2002.
Artigo recebido em 18 de setembro de 2002. Artigo aceito em 24 de outubro de 2002.