Versão Inglês

Ano:  2003  Vol. 69   Ed. 4  - Julho - Agosto - (20º)

Seção: Relato de Caso

Páginas: 566 a 569

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Síndrome de Guillain-Barré como complicação de amigdalite aguda

Guillain-Barre syndrome as a complication of acute tonsillitis

Autor(es): Suzana B. Cecatto1,
Roberta I. D. Garcia1,
Kátia S. Costa1,
Roberta A B. Novais1,
Ricardo Yoshimura1,
Priscila B. Rapoport2

Palavras-chave: Síndrome de Guillain-Barré, amigdalite aguda, complicação

Keywords: Guillain-Barre Syndrome, acute tonsillitis, complication

Resumo:
A Síndrome de Guillain-Barré é uma polirradiculoneuropatia aguda ou subaguda e geralmente ocorre após uma doença infecciosa ou algum procedimento cirúrgico. A patogênese não é bem conhecida, mas provavelmente apresenta uma base imunológica. O objetivo deste trabalho é relatar um caso de amigdalite aguda de má evolução complicada com a Síndrome de Guillain-Barré. Os autores salientam a raridade do caso, a concomitância do início da infecção aguda com a própria Síndrome e a evolução rápida para a falência respiratória que normalmente ocorre somente em 20% dos casos. O tratamento foi a imunoterapia com rápida recuperação do paciente.

Abstract:
The Guillain-Barre Syndrome is an acute or subacute polyradiculoneuropathy that sometimes follows infective illness or surgical procedures. The precise mechanism is unclear, but the disorder probably has an immunological basis. The authors report a case in which acute tonsillitis was complicated with Guillain-Barre Syndrome. We emphasize the simultaneousness of the acute disease and the syndrome, with fast progression to respiratory arrest occuring only in 20% of cases. The treatment was the immunotherapy with prompt recovering of the patient.

Introdução

A amigdalite aguda freqüentemente tem etiologia viral e na maioria das vezes ocorre como parte de um resfriado, sendo geralmente autolimitada. A amigdalite aguda bacteriana, por sua vez, é usualmente causada pelo estreptococo B-hemolítico, sendo difícil a determinação de sua verdadeira incidência pela similaridade do quadro clínico com a amigdalite viral e pelo fato do swab da orofaringe não auxiliar no diagnóstico.

Sérias complicações estão associadas à amigdalite bacteriana, porém a maioria dos casos apresenta uma boa evolução, seja por resolução espontânea ou cura após o uso da antibioticoterapia.1,2

O comprometimento neurológico após amigdalite aguda sem a formação de abscesso no espaço parafaríngeo é extremamente raro. Na literatura consultada encontramos apenas um caso descrito da Síndrome de Guillain-Barré após a infecção aguda das amígdalas.1

Nosso objetivo é relatar um caso de amigdalite aguda complicada pela ocorrência da Síndrome de Guillain-Barré em um paciente jovem e com rápida evolução para a falência respiratória.
A Síndrome de Guillain-Barré é definida como uma polineuropatia desmielinizante inflamatória aguda caracterizando-se por paresia ou paralisia que afeta mais de um membro, geralmente simétrica, associada à perda dos reflexos tendinosos. Em somente 20% dos casos pode levar à falência respiratória rapidamente. É a causa mais freqüente de paralisia flácida aguda após o advento da vacina para poliomielite.1,2,3

Revisão da literatura

As complicações de amigdalite aguda normalmente estão associadas à etiologia bacteriana e incluem abscessos periamigdaleanos e parafaríngeos, adenite cervical supurativa, febre reumática aguda e glomerulonefrite. Porém, com o advento da antibioticoterapia essas complicações estão cada vez menos freqüentes. Mais raramente têm sido descritos miocardite, coagulação intravascular disseminada (CIVD) e piotórax como complicações de amigdalite. Existem também relatos de casos de abscesso cerebral e trombose do seio cavernoso secundários a abscessos periamigdaleanos.1 A Síndrome de Lemierre, também conhecida como sepse pós-angina, é caracterizada por septicemia fusobacteriana com múltiplos focos metastáticos sistêmicos após amigdalite aguda em adolescentes e adultos jovens. Ocorre basicamente após a formação da trombose da veia jugular interna e existem vários relatos na literatura.4-6

No levantamento realizado, encontramos somente um relato da Síndrome de Guillain-Barré após amigdalite aguda. Morgan e Brookes1 relataram três casos de amigdalite aguda que apresentaram comprometimento neurológico sem a formação de abscesso no espaço parafaríngeo. Paralisia facial e hemiplegia, trombose do seio sagital superior e Guillain-Barré com paralisia facial foram os eventos ocorridos nos pacientes.

A Síndrome de Guillain-Barré é definida como uma polineuropatia aguda ou subaguda e ocorre em 60% dos casos após algum distúrbio infeccioso, sendo 50% destes de etiologia viral. Normalmente, a infecção viral antecede a deficiência motora em 2 a 3 semanas.

Em geral, caracteriza-se por ser uma patologia imuno-mediada cuja incidência corresponde a 0,38-1,7 casos em 100.000, atingindo ambos os sexos com predomínio masculino. A faixa etária de maior incidência está entre os adultos jovens (20 a 30 anos).

Entretanto, em 20% dos casos, ocorre em crianças com menos de 10 anos, podendo também afetar indivíduos de 40 a 70 anos.3,7-9 O principal achado clínico é a fraqueza muscular inicialmente em membros inferiores que se estende para membros superiores, face e tronco. Os músculos respiratórios e da deglutição podem ser afetados e distúrbios do Sistema Nervoso Autônomo podem ocorrer.

O líquido cérebro-espinal pode mostrar elevação protéica e contagem de células normal, porém após 2 a 3 semanas de evolução da doença.

O diagnóstico diferencial pode ser feito com neuropatias (diftérica, intoxicações), poliomielite, botulismo e patologias musculares degenerativas agudas.7

O tratamento com corticoterapia (prednisona) é inefetivo e pode prolongar o período de recuperação. Suporte ventilatório em UTI, plasmaferese ou Imunoglobulina intravenosa (400 mg/Kg/d) por 5 dias é o tratamento preconizado atualmente, apesar de existirem controvérsias.1-3,7,8,10-12 A maioria dos pacientes apresenta boa evolução, podendo levar alguns meses para a completa recuperação e em 10 a 20% dos pacientes persiste alguma deficiência.7

Relato de caso

P.V.S.N., 15 anos, sexo masculino, procurou um pronto-socorro em outubro de 2001 com quadro de odinofagia e temperatura de 39ºC há um dia. Ao exame físico apresentava-se hipoativo e à oroscopia havia presença de exsudato branco-amarelado em ambas as amígdalas. Recebeu penicilina benzatina com pouca melhora.

Após 48 horas mantinha febre e disfagia iniciando quadro de fraqueza muscular generalizada e parestesia em membros inferiores. Apresentava eliminação de escarros hemoptóicos, claudicação e dispnéia progressiva, e procurou o nosso Serviço de Otorrinolaringologia.

O paciente foi imediatamente internado, evoluindo rapidamente com tetraparesia e insuficiência respiratória aguda grave necessitando de entubação orotraqueal com suporte ventilatório em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Ao exame físico de entrada na UTI mostrava Glasgow 3T, pupilas midriáticas, pressão arterial de 130/90 mmHg, freqüência cardíaca de 92 bpm. A oroscopia apresentava amígdala direita com pontos de necrose e sangramento, e amígdala esquerda com exsudato purulento sem a presença de abscesso periamigdaleano. Iniciou-se antibioticoterapia (oxacilina e metronidazol) com melhora do quadro infeccioso em 48 horas e recuperação da consciência. Entretanto, o paciente mantinha a tetraparesia e paralisia da musculatura respiratória. Durante a internação, a análise do líquor revelou-se totalmente normal, com cultura negativa; ASLO = 800 (normal até 200); CPK = 1179 (elevada); provas de atividade inflamatória aumentadas; hemograma com leucocitose, desvio para a esquerda e plaquetopenia; sorologias para toxoplasmose e HIV negativas.

Após o diagnóstico da Síndrome de Guillain-Barré, optou-se pela introdução de Imunoglobulina endovenosa na dose de 400mg/Kg/dia (total de 20 gramas por dia) durante sete dias. Além disso, foi feita biópsia muscular da panturrilha direita com resultado normal.

Com dois dias de uso da Imunoglobulina apresentou melhora total do quadro respiratório. No sétimo dia recebeu alta da UTI com completa recuperação do quadro motor, mantendo apenas a fisioterapia motora por dois meses.

Após a alta hospitalar apresentou ainda dois episódios de amigdalite aguda não-complicada, tratados ambulatorialmente apenas com amoxilina.

Realizou-se amigdalectomia em abril de 2002 e o exame anátomo-patológico evidenciou amigdalite crônica inespecífica com imunohistoquímica negativa para Epstein-Barr.

Discussão

O envolvimento do sistema nervoso central na amigdalite aguda ocorre geralmente após a formação de abscesso no espaço parafaríngeo. Normalmente, os prováveis mecanismos são embolização do foco infeccioso via venosa e/ou linfática ou através da artéria carótida interna com comprometimento dos nervos cranianos (IX-XII) e cadeia simpática.

Morgan et al.1 relataram a dificuldade em explicar a patogênese das complicações neurológicas ocorridas (paralisia facial e hemiplegia; trombose do seio sagital superior com hidrocéfalo e papiledema; Guillain-Barré e paralisia facial) justamente pela ausência do abscesso. No caso da Síndrome de Guillain-Barré com paralisia facial pós-amigdalite aguda, os autores questionaram a ocorrência de uma polineuropatia de provável etiologia viral, não confirmada.

O nosso caso mostra um processo infeccioso (amigdalite aguda bacteriana sem abscesso) de má evolução com o desencadeamento da Síndrome de Guillain-Barré em um adolescente do sexo masculino.

Quanto à idade (15 anos), nosso paciente não estava dentro da faixa de maior incidência da síndrome (20 a 30 anos). Além disso, encontramos somente um caso descrito de Guillain-Barré associado com amigdalite aguda e por isso não pudemos determinar a sua real incidência.1

Na evolução clínica, geralmente a paresia de membros inferiores evolui em 3 a 4 semanas após a infecção e no caso apresentado esse período foi de apenas 48 horas. Além disso, o paciente apresentou comprometimento da musculatura respiratória num curto espaço de tempo necessitando de intubação orotraqueal e suporte ventilatório. Segundo Cornock10, 5% dos casos da síndrome de Guillain-Barré são fatais e dentre estes 15 a 30% correspondem aqueles que requerem ventilação mecânica. No nosso caso, apesar do rápido comprometimento da musculatura respiratória, o paciente recuperou-se completamente em 2 dias de uso da Imunoglobulina.

O diagnóstico é essencialmente clínico. Entretanto, a análise do líquor pode auxiliar. Normalmente, encontra-se uma elevação protéica (maior que 50 mg/100ml) e número de leucócitos normais, caracterizando-se a dissociação protéico/citológica.7,9 Mas o exame pode ser normal na primeira semana, como em nosso paciente. A hipótese de miopatia aguda foi levantada no caso e descartada após biópsia muscular negativa.

Não existe um consenso quanto ao melhor tratamento para a síndrome na literatura. Sabe-se que a recuperação é mais rápida quando é utilizada Imunoglobulina ou plasmaferese.8,10-12 O uso do corticóide isoladamente não é benéfico. Entretanto, no caso optou-se pela Imunoglobulina devido aos menores efeitos colaterais e à facilidade de seu uso, quando comparada à plasmaferese. A dose preconizada foi de 400mg/Kg/d por 7 dias. Gürses8 fez um estudo comparativo entre pacientes tratados com Imunoglobulina intravenosa e um grupo controle. Ele concluiu que os aqueles que receberam a medicação recuperaram-se mais rápido, tiveram menor tempo de hospitalização e menor duração do suporte ventilatório.

Segundo Hund et al.11, em 15% dos casos permanece algum grau de déficit motor ou sensorial e em 5% dos casos este é severo.

Na maioria das vezes, como em nosso paciente, a recuperação é completa, sem seqüelas. Sabe-se ainda que em 3% dos casos há recorrência da síndrome e não se conhece exatamente o mecanismo. Normalmente, em novos surtos o tratamento é o mesmo do primeiro episódio, mas o risco de permanecerem seqüelas é maior.

Deve-se atentar para o fato de que a fisioterapia é necessária para evitar a atrofia muscular em casos mais prolongados.

Comentários Finais

A amigdalite aguda pode ter uma evolução desfavorável com complicações sistêmicas importantes. O caso descrito tem interesse científico pela sua raridade e tem o papel de alertar a classe médica, pois doenças corriqueiras muitas vezes podem ter uma evolução imprevisível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Morgan N, Brokes GB. Central nervous system complications of acute tonsillitis. J Laryngol Otol 1997;111(3):274-6.
2. Yuki N, Koga M, Tai T, Hirata K. Miller Fisher syndrome and Haemophilus influenzae infection. Neurology 2001;57:686-690.
3. Bennett JC, Plum F. Cecil Tratado de Medicina Interna. 20ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 1997. p. 2372-3.
4. Agarwal R, Arunachalam PS, Bosman DA. Lemierre´s syndrome: a complication of acute oropharyngitis. J Laryngol Otol 2000;114:545-7.
5. Koay CB, Heyworth T, Burden P. Lemierre syndrome - a forgotten complication of acute tonsillitis J Laryngol Otol 1995;109:657-661.
6. Williams A, Nagy M, Wingate J, Bailey L, Wax M. Lemierre syndrome: a complication of acute pharyngitis Int J Pediatr Otorhinolaryngol 1998;45:51-57.
7. Aminoff MJ. In: Tierney LMJ, Mcphee SJ, Papadakis MA. Current Medical Diagnosis e Treatment. 39th Ed. United States: McGraw Hill; 2000. p.959-1018.
8. Gürses N, Vysal S, Çetinkaya F, Islek I, Kalayci AG. Intravenous Immunoglobulin Treatment in children with Guillain-Barre syndrome. Scand J Infect Dis 1995;27:241-43.
9. Marcondes E. Pediatria básica. 8ª ed. São Paulo: Editora Sarvier; 1999. p.1134-5.
10. Cornock MA, Mcmahon-Parkes K. Guillain-Barré syndrome: biological basis, treatment and care. Intensive Crit Care Nurs 1997;13(1):42-8.
11. Hund E, Oborel C, Cornblath D, Hanley D, Mckhann G. ICU management of Guillain-Barre. Critical Care Medicine 1993;21(3):433-46.
12. McFarland HR. What treatment for the Guillain-Barre syndrome? Arch Neurol 1993;50(7):687-8.




1 Residentes da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC.
2 Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC.
Instituição: Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC - Hospital Estadual Santo André - HESA - SP.

Endereço para Correspondência: Suzana Boltes Cecatto - Rua São Paulo, 2484 Bairro Barcelona São Caetano do Sul 09541-100 SP - E-mail: suzanacecatto@yahoo.com.br

Trabalho apresentado no 36º Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia.

Artigo recebido em 10 de dezembro de 2002. Artigo aceito em 27 de março de 2003.

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