Ano: 2001 Vol. 67 Ed. 6 - Novembro - Dezembro - (14º)
Seção: Artigo Original
Páginas: 852 a 857
Retalhos de gálea para fístulas de mastóide
Galeal flaps for mastoid fistula
Autor(es):
Diogo Franco 1,
Talita Franco 2,
Luiz Fernando Fernandes Gonçalves 1,
Cesar Silveira Cláudio-da-Silva 1
Palavras-chave: fístula de mastóide, retalho de gálea, colesteatoma, matoidite
Keywords: mastoid fistula, galeal flap, cholesteatoma, mastoiditis
Resumo:
Introdução: Fístula de mastóide é uma complicação que pode ocorrer após timpanomastoidectomia. Vários métodos para obliteração desta cavidade têm sido propostos, mas os resultados a longo prazo são, geralmente, desapontadores. O retalho de gálea aponeurótica, tanto com pedículo temporal quanto occipital, é maleável e bem vascularizado, sendo uma forma simples e confiável de se solucionar este problema. Forma de estudo: Retrospectivo clínico. Material e método: O Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro utilizou esta técnica em 5 pacientes, no período de 1991 a 1995. A técnica operatória e a evolução são apresentados. O acompanhamento pós-operatório variou de 3 a 5 anos e os resultados foram encorajadores. Todos os pacientes evoluíram com boa cicatrização e sem fístula. No pós-operatório tardio 2 pacientes apresentaram pequena quantidade de drenagem purulenta pelo conduto externo que regrediu com o tratamento clínico.
Abstract:
Introduction: Retroauricular mastoid fistula is a complication that may appear after tympanomastoidectomy. Many obliteration methods of the troublesome mastoid cavity have been proposed but the long-term results are often disappointing. Study design: Retrospective clinical. Material e method: The subtle and pliable galeal flap, either temporal or occipital with pedicle, is a simple and reliable way of solving the problem. It has been used in five patients with encouraging results. After at least 3 years of follow-up all patients had good scaring and no fistulae. At late post-op, two patients presented purulent discharge through the external canal, which disappeared after clinical treatment.
Introdução
Colesteatomas são tumores benignos que se caracterizam pelo acúmulo de queratina de forma concêntrica envolvendo cristais de colesterol. Este depósito ocorre por eliminação da queratina de um epitélio pavimentoso estratificado em cavidade fechada (geralmente fendas do ouvido médio) 2.
O colesteatoma pode ser congênito ou adquirido. O congênito é raro, não estando associado a fendas do ouvido médio ou infecções5. Origina-se de restos celulares de tecido epidérmico e pode ocorrer em qualquer osso do crânio. O adquirido resulta de otite média crônica e é o que nos interessa neste trabalho.
A patologia tem início como um processo inflamatório usual na mucosa do ouvido médio que, tornado crônico, pode levar a osteítes e formação de pólipos na mucosa. Ulcerações eventuais, formação de tecido de granulação e destruição de estruturas vizinhas, se seguem. Acredita-se que a agressão ao ouvido médio pode possibilitar a invasão por continuidade do epitélio pavimentoso queratinizado existente no ouvido externo7. Este epitélio esfolia queratina que, confinada a uma cavidade praticamente fechada (ouvido médio), terminará por agredir suas paredes levando à erosão e fistulização. Se o acúmulo de queratina se torna infectado, há um aumento importante do processo de destruição óssea. Em crianças o processo é mais agressivo devido à formação e à exfoliação mais rápidas da queratina.
A evolução do queratoma pode levar a complicações importantes devido à destruição de estruturas vizinhas, sendo as mais graves a perda de audição, abcessos extradurais e propagação intracraniana. A alteração pode ser de difícil resolução e com recidivas freqüentes10,13,16.
O tratamento deve ser cirúrgico e instituído o mais breve possível. Compreende mastoidectomia simples, radical ou radical modificada9. A incisão clássica é retroauricular e realiza-se desbridamento através de broca, curetando todo o tecido necrosado da mastóide. Resulta cavidade óssea ampla que, geralmente, vai sendo coberta por tecido de granulação sendo obliterada em poucas semanas. Entre as possíveis complicações decorrentes da cirurgia está a fístula retroauricular, conseqüente à infecção ou a deiscência de sutura, persistindo a cavidade óssea. Esta eventualidade, embora rara, quando ocorre constitui problema de difícil solução.
Material e Método
No período de 1991 a 1995 foram operados no serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário da U.F.R.J. 5 pacientes portadores de fístulas retroauriculares pós-mastoidectomia. A faixa etária encontrava-se entre 18 e 23 anos, sendo 3 pacientes do sexo masculino e 2 do sexo feminino.
Técnica operatória
Os pacientes são posicionados em decúbito dorsal com a cabeça rodada para o lado oposto. Se possível, o uso de Doppler auxilia na localização do pedículo desejado que poderá ser temporal ou occipital (Figura 1). O desenho do trajeto provável deste pedículo e da extensão do retalho planejado auxilia durante a dissecção. Toda a região envolvida é infiltrada com solução de xilocaína a 0,5% com adrenalina a 1:200.000 com agulha fina e em plano superficial para não lesar o pedículo.
Quando se utiliza o pedículo temporal, a incisão é feita nesta região, em forma de "T" cujo ramo vertical se origina próximo à implantação superior do pavilhão auricular estendendo-se pelo comprimento necessário à confecção do retalho o que, na prática, equivale a quase atingir o ápice do crânio. A este nível é realizada a incisão horizontal com a extensão aproximada de 10cm.
A pele é incisada até o plano da gálea, sem incluí-la, e o descolamento é feito logo abaixo dos folículos pilosos, identificando-se o pedículo vascular do futuro retalho constituído pela artéria e pelas veias temporais superficiais.
A dissecção prossegue lenta e cuidadosamente expondo a gálea temporal e estendendo-se além das dimensões do retalho desejado. Hemostasia meticulosa com eletrocautério de tipo bipolar.
Após levantar os tegumentos compreendendo os bulbos pilosos, o retalho é desenhado com azul de metileno e suas margens anterior, superior e posterior são incisadas incluindo o periósteo. O descolamento é feito a nível subperiostal e depois pré-músculo temporal.
Quando o pedículo desejado é o occipital a incisão deve ser planejada considerando a cicatriz retroauricular pré-existente resultante da cirurgia de timpanomastoidectomia que poderá ser aproveitada, prolongada ou ignorada desde que a nova incisão não deixe interposta área de pele sujeita à necrose. (Figuras 2, 3 e 4)
Pronto o retalho, faz-se a tunelização do plano subcutâneo na direção da fístula, ampla o suficiente para permitir sua passagem sem compressão circulatória. Se necessário, pode-se incisar a pele interposta para permitir mais fácil passagem do retalho.
A área receptora é preparada ressecando-se a epiderme das bordas da fístula e curetando-se a cavidade até deixar a superfície óssea totalmente aparente. Muito cuidado deve ser tomado nesta curetagem, pois a espessura da parede óssea é freqüentemente muito fina havendo risco de penetração intracraniana.
O retalho é introduzido na cavidade e acomodado de forma a preenchê-la ocupando todos os espaços. Embora fique dobrado sobre si mesmo, não há risco de compressão pois a cavidade é de paredes rígidas. Deve-se cuidar, no entanto, para que não haja compressão do pedículo.
A síntese do couro cabeludo é feita com nylon 4-0 usando-se drenos de Penrose na área doadora (retirados após 48hs) e curativo oclusivo com pouca compressão. (Figura 5)
No pós-operatório o paciente deve evitar deitar-se sobre o lado operado.
Figura 1. Esquema da rica vascularização da gálea aponeurótica e seus pedículos principais (ATS) artéria temporal superficial e (AO) artéria occiptal.
Figura 2. Marcação da incisão cutânea.
Figura 3. a) Esquema dos retalhos cutâneos elevados para acesso à gálea aponeurótica. b) Per-operatório, com o retalho de gálea delineado por azul de metileno.
Figura 4. a) Esquema da confecção do retalho de gálea com pedículo occiptal. b) O retalho é elevado, mostrando seu amplo arco de rotação. A abertura da cavidade mastóide, onde o retalho será introduzido, pode ser na base do pedículo. Sendo macio e flexível, o retalho é facilmente acomodado dentro da cavidade, preenchendo-a completamente.
Resultados
A técnica descrita foi utilizada com sucesso nos 5 pacientes. Todos apresentavam fístula retroauricular refratária a outras formas de tratamento por pelo menos 1 ano. O acompanhamento ambulatorial após 3 anos (em 3 pacientes) e 5 anos (em 2 pacientes), mostrou cicatrização adequada e ausência de recidivas (Figuras 6, 7, 8 e 9). No pós-operatório tardio (mais de 1 ano) 2 pacientes apresentaram pequena quantidade de drenagem purulenta pelo conduto auditivo externo, que regrediram após tratamento clínico.
Figura 5. Ferida operatória suturada e drenada.
Figura 6. Típico caso de fístula retroauricular de mastóide.
Figura 7. Pós-operatório de 1 ano e 6 meses.
Figura 8. Caso mais elaborado, com 2 cicatrizes paralelas delimitando estreita ponte cutânea. O acesso cirúrgico foi feito através da cicatriz posterior e o retalho passou sob a ponte cutânea para preencher a cavidade mastóide.
Figura 9. Pós-operatório de 3 anos.
Discussão
O preenchimento de depressões da superfície corporal sempre representou para o cirurgião problema de solução mais complexa do que a eliminação dos excessos. Enxertos ósseos ou cartilaginosos e substâncias aloplásticas têm resolvido satisfatoriamente alguns casos. Há outros, no entanto, de solução mais difícil devido ás características da patologia e da região anatômica envolvida. É o que ocorre nas fístulas crônicas da mastóide resultantes dos colesteatomas ou de seu tratamento cirúrgico.
Vários autores propuseram métodos para obliterar a cavidade mastóidea resultante da cirurgia8,12,15. Beales coletou resultados de 162 diferentes cirurgiões americanos que utilizaram retalhos musculares. As complicações referidas foram numerosas. O autor prefere utilizar enxertos de músculo e fáscia que encolheriam com o tempo formando um revestimento fibroso que atuaria como suporte para o crescimento do epitélio das bordas3.
Enxertos ósseos foram propostos por Schiller e Singer com resultados desfavoráveis pois havia completa absorção dos enxertos além de problemas na área doadora (ilíaco)3. Isto era fácil de prever, pois a falta de vascularização adequada dentro da cavidade impede a integração dos enxertos.
Retalhos dermo-adiposos locais também foram utilizados3,15, porém a dificuldade em obter proporções suficientes para o completo revestimento da cavidade e a falta de maleabilidade necessária para acomodá-los sem comprimir o pedículo, representam contra-indicações importantes.
Birzgalis e colaboradores recomendaram a utilização de retalho temporal miofascial para obliterar a cavidade mastóide e, por vezes, o conduto auditivo externo também. O autor refere sucesso nos resultados de 94% dos casos após 3 anos de acompanhamento, e de 88% dos casos após 5 anos. Contudo, não há fotografias da técnica nem dos pacientes e os desenhos não são muito elucidativos, tornando difícil a avaliação do procedimento4.
Os retalhos das fáscias superficial e profunda da abobado craniana têm sido considerados com interesse, atualmente, pelos cirurgiões plásticos face a sua grande versatilidade no preenchimento de depressões e na restauração de perdas de substância da face e do crânio, podendo inclusive ser utilizados como retalhos microcirúrgicos1,6,11,14. São retalhos de tipo axial, pediculados principalmente nas artérias temporal superficial e auricular posterior. Envolvem as camadas músculo-aponeurótica, subaponeurótica e o pericrânio, que podem ser usadas em conjunto ou isoladamente dependendo da espessura do retalho desejado. O pedículo estreito permite um arco de rotação considerável e o comprimento longo possibilita atingir fronte, órbita, comissura bucal e metade homolateral do lábio, além da região retroauricular. Os tecidos envolvidos são de consistência macia e delicada aliada à rica vascularização.
O uso de retalho longo de gálea aponeurótica veio solucionar adequadamente o problema das cavidades residuais da mastóide. Dobrado sobre si mesmo, permite o preenchimento adequado da cavidade e a cobertura com retalho dermoadiposo da vizinhança.
As cicatrizes nas áreas doadoras são de excelente aspecto, ocultas entre os cabelos, não se observando alopécias desde que a dissecção seja feita cuidadosamente.
Conclusão
Fístula retroauricular de mastóide pode ser adequadamente tratada, utilizando-se retalho de gálea aponeurótica, baseando-se tanto em pedículo temporal quanto occipital. Esses retalhos são seguros, bem vascularizados, maleáveis e facilmente adaptáveis à cavidade óssea. As complicações e a morbidade da área doadora são mínimas. Os resultados, a longo prazo, são permanentes e satisfatórios.
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1 Membro do Serviço.
2 Chefe do Serviço.
Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Endereço para correspondência: Praia de Botafogo, 528 - apto. 1304 bloco A - Rio de Janeiro - 22250-040 - Fax: (21) 542-7119 - E-mail: diogo@openlink.com.br
Artigo recebido em 25 de abril de 2001. Artigo aceito em 17 de julho de 2001.