Tomografia Computadorizada: um bem que pode fazer mal
CT scan: a benefit that may be evil
Autor(es): Fernando de A. Quintanilha Ribeiro
DOI: 10.5935/1808-8694.20120001
Algumas semanas atrás, atendi uma menina de 14 anos que havia operado de um colesteatoma congênito. Revendo sua ficha, a cirurgia tinha sido bem sucedida e ela me trazia uma Tomografia Computadorizada (TC) de controle de 6 meses. Notei que havia feito uma tomo inicial antes do diagnóstico, mostrando pequena imagem na caixa timpânica. Outra tomo apresentava aumento desta imagem, o que nos levou à cirurgia. Fez uma terceira TC pós-cirúrgica para servir de controle inicial de possível recidiva. E agora me traz uma quarta tomo de controle semestral. Quatro TCs e eu prestes a pedir outra de controle de 1 ano!!!!
Algo me fez parar para pensar. Talvez minha idade. A lembrança da preocupação que tínhamos, nós médicos e os próprios pacientes, quanto à irradiação de simples Rx de seios ou de mastoide, em três posições... -Cuidado!!! Pode dar câncer no futuro!! Preocupação e receio que se esvaiu no tempo após o aparecimento da TC. Aí sim, começamos a ver, de verdade, detalhes. Que maravilha! Era caro o exame, mas fomos fazendo cada vez mais tomografias, nos grandes centros, nos hospitais escola e nos mais sofisticados. Cada vez mais, e o preço foi caindo, caindo. Hoje, se faz em qualquer lugar, hospital ou laboratório, por esse Brasil afora. Para que pensar? Não sei o que é, peço uma tomo. Será que ficou bom? Peço outra tomo. O convênio não acredita em mim? Peço outra tomo. E ninguém fala em radiação. Será que aquelas imagens no filme, e são várias, fora as que não nos enviam, não irradiam? É lógico que sim, mas quanto? Resolvi averiguar.
No Google tudo se acha! Assim como no Medscape ou no Pubmed. Alguém neste mundo deve ter as mesmas preocupações. E realmente tinham, mas poucos trabalhos. Um, do Dr. David A. Johnson1, gastroenterologista chefe do departamento Eastern Virginia School of Medicine, me chamou a atenção. Cita o autor que o primeiro aparelho de TC foi desenvolvido em 1972, tendo entrado em franca operação alguns anos mais tarde. O primeiro tomógrafo da Santa Casa de São Paulo foi adquirido em 1982. Hoje temos dois tomógrafos e realizamos umas 1000 TC por mês. Peguei um filme e contei 24 cortes. Este paciente tinha 4 filmes, ou seja, 96 cortes. O mais relevante foi que o exame era apenas uma amostra, pois no chamado sistema digitalizado as imagens são milimétricas, e inúmeras. A resolução das imagens, de 1982 para cá, melhorou muito, mas a custa de mais irradiação! Em 2002, 60 milhões de TC foram realizadas nos Estados Unidos, sendo responsáveis por 70% de toda exposição médica a raios x. Não temos esta estatística brasileira.
A medida de irradiação é denominada de Grays (Gy) e normalmente usada como sieverts (Sv). Um milisievert (mSv) é igual a um miligray (mGy).
Notem estes dados: um Rx de tórax de frente e perfil irradia 0,16 mSv. Uma mamografia de rastreio 3,00 mSv. Uma TC de abdômen 10,00 no adulto e 20,00 no neonato. Não temos ainda dados precisos para avaliar, a longo prazo, a incidência de câncer nas irradiações por TC, lembrando que seu início data por volta de 30 anos. Mas podemos traçar alguns paralelos. A irradiação na população japonesa no evento da bomba atômica (67 anos atrás) foi de 5 a 150 mSv, o mesmo de trabalhadores da indústria atômica por vários anos (o mesmo de algumas tomografias). Nestes grupos, muitos estudos foram feitos e o porcentual de tumores malignos no decorrer dos anos é enorme, e de todos conhecido. O efeito da radiação é cumulativo e insidioso e qualquer um poderá precisar fazer tomografias futuras, por motivos mais sérios, ou mesmo vitais. Levantei outros trabalhos, alguns com estudos matemáticos para correlacionar a exposição à radiação e a incidência de neoplasias malignas, confirmando esta relação direta2-4. Um levantamento feito pelo Dr. David Johnson1 entre médicos americanos chama a atenção pela falta de conhecimento destes sobre os riscos a que estão submetendo seus pacientes ao solicitarem uma tomografia computadorizada. Mesmo os radiologistas não têm noção precisa da radiação efetuada por estes exames. O mesmo notei por aqui.
A quantidade de imagens numa TC de mastoide ou de seios da face é descomunal e desnecessária. Quantas vezes pulamos vários cortes para nos ater à região atical da mastoide ou a um seio da face específico, num controle por imagem? Podemos realizar cortes localizados? Podemos! Mas não os realizamos porque existe um protocolo de fazer vários cortes sequenciais, independendo da necessidade clínica. Este protocolo poderia ser mudado para casos específicos, avaliando apenas o que fosse de interesse do médico, acarretando muito menos irradiação para o paciente.
Longe de mim não dar valor ao exame de TC. Mas será que não podemos usar de mais parcimônia na solicitação destes exames, utilizando melhor a clínica ou outros exames de imagem como Rx simples ou ressonância magnética? Vamos todos pensar sobre isso. Vamos averiguar, estudar o assunto, preocupar-nos. Possivelmente, não assistiremos às consequências de nossas condutas atuais, mas isto não nos redime, pois elas poderão acontecer.
Voltemos à garotinha do colesteatoma congênito. Na melhor de minhas intenções, e aparentemente para o bem dela, queria um controle adequado de sua doença, mas, sem perceber, poderia estar jogando sobre sua cabeça uma bomba de Hiroshima.
REFERÊNCIAS
1. Johnson DA, Helft PR, Rex DK. CT and radiation-related cancer risk-time for a paradigm shift? Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2009;6(12):738-40.
2. Shuryak I, Hahnfeldt P, Hlatky L, Sachs RK, Brenner DJ. A new view of radiation-induced cancer: integrating short-and long-term processes. Part I: approach. Radiat Environ Bophys. 2009;48(3):263-74.
3. Shuryak I, Brenner DJ, Ullrich RL. Cancer risks after radiation exposure in middle age. J Natl Cancer Inst. 2010;102(21):1628-36.
4. Shuryak I, Brenner DJ, Ullrich RL. Radiation-induced carcinogenesis: mechanistically based differences between gamma-rays and neutrons, and interactions with DMBA. PLoS One. 2011;6(12):e28559.
Prof. Dr. Fernando de A. Quintanilha Ribeiro;
Professor da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo;
Agradecimentos ao Dr. Fernão B. Alves da Costa pelo auxílio.