Versão Inglês

Ano:  1953  Vol. 21   Ed. 1  - Janeiro - Fevereiro - ()

Seção: Várias

Páginas: 29 a 32

 

HOMENAGEM AO DR. MANOEL AFONSO FERREIRA

Autor(es): -

Em sua sessão mana realizada no dia 1.º de junho de 1952, a Associação Médica do Instituto Penido Burnier empossando sua nova diretoria presidida pelo Dr. Monteiro Salles prestou significativa homenagem ao Dr. Manoel Afonso Ferreira.

Depois de lido o relatório das atividades do último ano o Dr. Leôncio de Souza Queiroz pronunciou expressivo discurso transmitindo ao Dr. Monteiro Salles a presidência da Associação. O novo presidente após proferir bela oração deu a palavra ao Dr. Gabriel Porto, que em nome da Associação Médica do Instituto Penido Burnier saudou ao Dr. Manoel Afonso Ferreira, com as seguintes palavras:

"Com muito acêrto andaram as duas últimas diretorias da Associação Médica do Instituto Penido Burnier, quando resolveram que a sessão magna de hoje se transformasse em reunião especial destinada a homenagear o Dr. Manuel Afonso Ferreira, um dos maiores artífices desta Casa. A justíssima homenagem que agora lhe prestamos é preito sincero de nossa admiração pelo muito que fêz em sua vida exemplar. Projetada para 1951, por ocasião de seu jubileu profissional, só hoje, podemos nos desobrigar desta honrosa missão porque, naquela época, as condições de saúde de nosso homenageado tornaram inoportunas as manifestações planejadas por esta Associação. Mas, neste momento, Sr. Dr. Afonso Ferreira, nossa Associação vive um de seus dias mais felizes, recebendo-o em seu convívio, afim de exaltar suas excepcionais virtudes, para que sua vida possa servir de paradigma à geração nova de médicos que inicia suas atividades em nosso Instituto. Bem conhecemos, caríssimo amigo, sua encantadora e recatada modéstia mas, há de perdoar-nos por apresentar aos nossos consócios um relato de sua vida, organizado da melhor maneira permitida pelas nossas deficiências literárias. Nêste, poderá a plêiade de jovens profissionais de nosso Instituto, já integrada por três de seus filhos, vislumbrar a razão de ser do êxito excepcional alcançado pela instituição a que pertencem. Aí se certificarão que, apesar de decorridos 32 anos de fundação de nosso Instituto, estamos ainda colhendo as messes do acendrado amor que a êle devotaram os pioneiros de sua criação. E, compreenderão também, como partindo-se de um marco zero, lutando contra tôda sorte de obstáculos pode-se atingir a um elevado grau de progresso intelectual e moral desde que se trabalhe honestamente e sem desfalecimento em prol de um grande ideal.

Nasceu o Dr. Manuel Afonso Ferreira em 16 de Agosto de 1875 na Vila de Jeromenha no Estado do Piauí. Sua vila natal possuía naquela época quase 300 almas e ficava a 600 quilômetros de Terezina, que só podia ser atingida após dois dias de penosa viagem, em grande parte feita a cavalo. Seu pai, coletor federal neste longínquo recanto do país, tinha a seu encargo a educação de onze filhos. Foi pois nesta pequena vila, que o Dr. Ferreira iniciou sua vida, lutando contra a precariedade de tôda sorte de recursos, como que partindo de um marco zero. Aos sete anos de idade, quando teve necessidade de iniciar seus estudos primários, não encontrou em sua terra um grupo escolar. Recebeu então de seus dedicados progenitores a instrução primária e aos 11 anos de idade transferiu-se para Terezina onde fêz com grande sacrifícios os estudos secundários. Ao mesmo tempo que estudava trabalhava, como empregado, na Farmácia Collect Fonseca. Era então a função das farmácias bem diferente das de hoje, que se limitam a fornecer a clientela medicamentos cuidadosamente preparados e prescritos pelos médicos. Naquêle tempo, na incipiente Terezina, as farmácias tinham que satisfazer às mais caprichosas exigências dos sertanejos que as procuravam. Deviam por exemplo possuir o finais variado sortimento de banhas de cobra. E, conta-nos o Dr. Ferreira que, na Farmácia Collet Fonseca, jamais faltava variedade alguma de banha, mesmo as extraídas dos mais raros espécimes de ofídios. É que lá existia um pote mágico, cheio de banha de origem desconhecida, que supria com eficiência o remédio solicitado pela fantástica imaginação dos sertanejos nordestinos. Atendendo durante o dia a numerosa clientela da farmácia, freqüentando aulas e estudando, o jovem ginasiano que sonhava, um dia, em ser médico, passou então pela fase de maior sacrifício de sua existência. A noite, mal acomodado na própria farmácia, quando tentava repousar do seu estafante dia, era o rapaz muitas vêzes chamado para levar um copo de água aos compadres do proprietário da farmácia que, segundo os hábitos da época, permaneciam até altas horas da noite, sentados em cadeiras colocadas nas calçadas, falando sôbre os acontecimentos do momento e comentando os últimos potins. Nunca deixou de atender as ordens recebidas, embora seu espírito adolescente, profundamente empenhado na aquisição de conhecimentos, se revoltasse com a mais justa das razões contra tais ordens, algo desumanas. Estávamos ainda no tempo em que aos empregados não se concedia nem o direito de repousar. Felizmente as águas barrentas do Parnaíba permitiam-lhe que desanuviasse sua revolta servindo-se das mesmas armas que o imortal Humberto de Campos usara em situação semelhante.

Terminados seus estudos secundários, Afonso Ferreira matriculou-se em 1895 na hoje Faculdade Nacional de Medicina, onde se doutorou em 1901. Seus colegas, entre os quais figuravam Fernando Vaz, Henrique Roxo, Nascimento Gurgel e Hugo Wernech cognominaram-no o "Piauí", ao descobrirem o interêsse e a afeição que o nosso homenageado tinha por sua terra natal.

Vinte e quatro horas depois de ter colado grau de doutor em medicina, embarcou o Dr. Afonso Ferreira, como médico de bordo, no vapor inglês Minho, que se preparava para transportar tropas inglesas para o Transval. Cumprido seu contrato, e com os recursos ganhos nesta viagem, passou sua primeira tear posada de seis meses na Europa, quando iniciou seus primeiros estudos de otorrinolaringologia. Regressando depois ao Rio, voltou a trabalhar, como médico de bordo, no vapor nacional Itaqui, da Companhia Lage.

Durante dois anos, de 1902 a 1904, exerceu a clínica na fidalga cidade de Vassouras, no Estado do Rio, onde conquistou grande prestígio entre as nobres famílias da tradicional cidade. Fêz, nesta ocasião, amizades que lhe guardaram fidelidade para tôda vida.

Em 1904, atraído pelas saudades de sua terra natal, transferiu-se para Terezina, onde durante quase 2 anos exerceu a medicina, alcançando excepcional sucesso. Revelando seus pendores cirúrgicos, executou então intervenção de alta cirurgia, pela primeira vez praticadas em Terezina. Tais intervenções, feitas em meio onde não existiam instilações cirúrgicas adequadas, constituem demonstracão de força de vontade e energia invulgares.

Desejando progredir na sua arte médica com a aquisição de novos conhecimentos, partiu o Dr. Afonso Ferreira em 1906 para a Europa, onde permaneceu três anos freqüentando a clínica dos grandes mestres da otorrinolaringologia e apreciando a vida em todas as modalidades de encantamento que a velha Europa lhe oferecia. Conheceu quase todos países europeus, inclusive a Rússia. Frequentou as Clínicas de Hajek e Alexander, em Viena, e de Sebileau, em Paris, passando desde então a exercer a otorrinolaringologia.

Em 1907, pouco antes de seu regresso ao Rio, em uma tarde de primavera, no bordevard St. Michel, em Paris, por obra do acaso, ou melhor, da Divina Providência, encontraram-se Penido Burnier e Afonso Ferreira; tinham sido contemporâneos de escola, mas mal se conheciam. Nesse encontro, realizado há 45 anos, germinou a amizade cultivada e aprimorada de macieira exemplar pelos dois ilustres decanos do nosso Instituto.

De 1907 a 1910 - trabalhou o Dr. Afonso Ferreira no Rio de Janeiro, exercendo a otorrinolaringologia. Em Maio de 1911, veio para Campinas, onde passou a trabalhar ao lado de Penido Burnier em seu consultório da rua Campos Sales e na Beneficência Portuguesa.

Em 1911 constituiu família, contraindo núpcias com D. Anila Burlamaqui, esposa dedicada e companheira leal e corajosa nos momentos difíceis de sua vida. Seis meses depois, atraído pelas saudades de sua gente, o coração levou-o novamente à Terezina. Desembarcou acompanhado de dois automóveis Ford - os primeiros que pisaram o solo piauiense - evidenciando assim seu grande interêsse em levar o progresso à sua terra.

Depois de trabalhar cinco anos em Teresina, regressou em 1922 a Campinas. Compreendera então que era necessário deixar sua terra natal para que pudesse, nesta abençoada Campinas, educar melhor seus filhos, já então numerosos.

Em 1923, com Jaime de Campos, começou a trabalhar no instituto Penido Burnier, que havia sido fundado em 1920.

Neste mesmo ano, em companhia de Penido Burnier, seguiu para a Europa, onde aprimorou ainda seus conhecimentos com o Prof. Seiffert, em Berlim. De volta da Europa, reiniciou suas atividades no Instituto Penido Burnier, assumindo pouco tempo depois, com a transferência de Jaime de Campos para São Paulo, a chefia da Clínica de Otorrinolaringologia. Nessa ocasião executou pela primeira vez, em nosso meio a operação de Hirsch-Segura - abertura dos seios esfenoidais pela via transeptal.

Em 1926, juntamente com Guedes de Melo iniciamos nossa atividade no Instituto sob a orientação do Dr. Afonso Ferreira. Vivemos 26 anos juntos, lado a lado, pelejando pelo mesmo ideal numa atmosfera de intimidade semelhante e dos irmãos de uma mesma família.

O período do nosso convívio foi entretanto bem mais dilatado do que o tempo em que os irmãos costumam viver reunidos. Neste longo período, prezadíssimo amigo Dr. Afonso Ferreira, pudemos nos aquilatar de suas excelsas virtudes. Nosso homenageado de hoje reúne da maneira mais harmoniosa, em perfeito equilíbrio, todas as qualidades que o homem necessita para ser cidadão de inestimável valor à sua Pátria, A serenidade de seus atos e a harmonia de seu espírito impressionam a todos que dele se aproximam. Sempre soube resolver com a maior serenidade os complexos problemas que se lhe apresentavam. Somos testemunhas da árdua luta que sustentou para elevar o prestígio do nosso Instituto e para amparar, moral e econômicamente, sua numerosa prole. Viveu exclusivamente para os doentes e para a família. Triunfou em seu ideal, tornando-o se médico de prestigio e conseguindo dar aos seus 15 filhos esmerada educação. Tudo foi alcançado sem perda de serenidade. Sua voz só se alterava, e isso mesmo na intimidade, para ver gastar os profissionais da medicina que com atos indignos maculavam nossa profissão.

Para seu sucesso, como profissional e cidadão, limito contribuíram sua inteligência perspicaz e seu extremado devotamento ao trabalho.

Excessivamente modesto, sempre fugiu das posições de destaque, sentindo-se mais à vontade na planície. Gostava mais de lidar com a clientela de gente simples, do que com a dos potentados.

Caráter firme, intransigente com a desonestidade, mas extremamente benevolente com os erros dos bem intencionados.

Possuindo um feixe de tão preciosas qualidades morais, foi fácil ao Dr. Afonso Ferreira conquistar o coração de todos que dêle se aproximaram. É por isso Sr. Dr. Afonso Ferreira, que todos seus amigos desta Casa, embora lamentando a falta de seu convívio diário, sentem-se felizes em vê-lo com a saúde restabelecida, recebendo essa singela homenagem, muito simples mesmo para quem tão grandes serviços vem prestando à sua Pátria. Realmente, meus Srs., ser médico dedicado, lutar a vida toda sem desfalecimento pela saúde de seu povo, e ainda mais ser chefe de família exemplar, conseguindo educar de maneira primorosa a 15 filhos, é fazer algo de extraordinário pela sua Pátria.

Sobejam, portanto motivos à Associação Médica do Instituto Penido Burnier para se orgulhar de ter sido o Dr. Manuel Afonso Ferreira seu primeiro presidente e para nesta sua mágna festa congratular-se com seu eminente membro pelo êxito de seus empreendimentos, fazendo votos pela sua felicidade pessoal e de toda Exma. Família."

Logo em seguida usou da palavra o Dr. João Penido Burnier que em magnífico improviso enalteceu as virtudes do homenageado. Por ultimo falou o Dr. Alberto Afonso Ferreira agradecendo com emocionantes palavras a homenagem prestada ao Exmo. pai que se encontrava visivelmente comovido.

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