Ano: 1952 Vol. 20 Ed. 6 - Novembro - Dezembro - (3º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 201 a 206
SOBRE UM CASO DE HIPERSENSIBILIDADE DA MUCOSA NASAL, DE ORIGEM PROFISSIONAL (*)
Autor(es):
DR. HILARIO VEIGA DE CARVALHO (**)
DR. SÍLVIO MARONE (***)
O caso que motivou o presente estudo refere-se à paciente A. A. P., de 31 anos de idade, cuja história clínica é a seguinte:
Há 6 anos vem trabalhando numa Companhia produtora de, cigarros, exercendo sempre as funções de ajudante maquinista e sujeita à aspiração de partículas e odores de tabaco.
Há oito meses tem tido hemorragias nasais com frequência, ora de um lado, ora de outro; a hemorragia cede por si; a saída de sangue é sempre precedida de cefaléia generalizada, numerosos espirros, secreção nasal abundante de tipo aquoso e lacrimejamento; quando tais sintomas são intensos, vê-se obrigada a abandonar o ambiente, passando a ter, então, alívio; refere ainda que basta entrar na fábrica e sentir o odor de tabaco mesmo o mais fraco, para ter os distúrbios citados; fóra desse ambiente, passa bem; mesmo fóra do ambiente fabril, mas estando próxima de pessoa que fume cigarros de idêntica fabricação, seu marido inclusive, imediatamente passa a ter a sintomatologia descrita.
Por esses motivos requereu a paciente à justiça do Trabalho a-fim-de obter o devido afastamento do emprego. Foi, consequentemente, encaminhada ao Instituto "Oscar Freire" para os respectivos exames periciais.
Após os devidos exames, foi por nós apresentado o seguinte laudo:
A paciente acima qualificada, aparentando idade alegada, nada de anormal apresenta ao exame geral dos vários orgãos e aparelhos, salvo o que se refere, particularizadamente, para o lado das vias aéreas superiores.
O exame dessas vias revelou:
Cavidades nasais - Hiperemia generalizada da mucosa com discreta infiltração hídrica, mais evidente nos cornetos. Notavel desenho vascular na zona hemorrágica de ambos os lados. Secreção aquosa em ambas as cavidade. Meátos médios livres. Sinus transparentes à transiluminação.
Diante desses dados clínicos e principalmente da anamese, o diagnostico pendeu para alergia nasal para tabaco.
Em face dessa suspeita, foi pedida a colaboração do alergista para a realização dos testes intradérmicos. O Dr. Ernesto Mendes encarregou-se desses testes, tendo-os realizado com extratos concentrados de: 1) fumaça de cigarro marca "Yolanda" (a marca em cuja maquina trabalhava a paciente); 2) tabaco do proprio cigarro; 3) material retirado do solo da fabrica, constituido quase que so de tabaco.
Os testes foram feitos duas vezes, sendo o resultado negativo (intradermico).
A conselho do proprio alergista, e com o material por ele preparado, foram feitas inalações diretas dos tres extratos citados.
Assim, no dia 26/5/52, antes de qualquer inalação, a paciente apresentou-se nos com uma mucosa nasal com discretíssima infiltração, sem secreção aquosa, sem desenho vascular; não referia cefaleia. Foi submetida a inalação de extrato de fumaça de cigarro "Yolanda" na concentração de 1:10, durante 2 minutos.
Não espirrou. Referia obstrução nasal bilateral e cefaleia que achou ser de intensidade semelhante a que tinha na fabrica. Ao exame encontramos a mucosa nasal de ambos os lados, nos cornetos, palida e com indicio de infiltração hídrica, sem desenho vascular. Cinco minutos após, notou-se edema maior nos cornetos inferiores; a zona hemorragica de ambos os lados apresentou-se com desenho vascular bem visivel, mais a esquerda, propagando-se discretamente para as demais porções da mucosa nasal e do septo. Os vasos apresentavam-se túrgidos, escuros e dispostos em forma de V a direita e em numero de tres a esquerda. A cefaleia localizava-se na região frontal esquerda, propagando-se para a região temporal do mesmo lado. Com inalações imediatas de adrenalina, cederam lentamente a cefaleia e o edema.
No dia 27/5/52, a paciente voltou informando ter tido na véspera espirrros e dôr na parede lateral esquerda do nariz, dôr essa que normalmente não apresentava, mas que acompanhava as epistaxes.
Referiu prurido intenso nas paredes anterior e posterior do tórax. Informou ainda que esse prurido sempre sentia quando inalava emanações de fumo. Ao exame foram encontrados numerosos nódulos hiperemiados, duros, indolores, com escoriações e deposito de sangue ao seu redor, indicando ter havido ação da unha.
Ao exame nasal - antes de qualquer inalação - encontrou-se mucosa discretamente infiltrada e desenho vascular na zona hemorragica pouco evidente.
Nesta data foram feitas inalações com solução de fumaça de cigarro, durante cinco minutos.
Após essa inalações a paciente referiu ausencia de cefaleia e obstrução nasal bilateral. Ao exame, notou-se infiltração hídrica mais intensa nos cornetos (mais evidente à direita) e da mucosa nasal em geral. O quadro era semelhante ao da vespera.
Nessa mesma ocasião foi realizado hemograma pelo Dr. Pedro Jannini, resultando:
Observações:
Serie vermelha: Nada a assinalar.
Serie branca: Neutrófilos: Ausencia de granulações toxicas - Eusinófilos: Eusinofilia - Linfócitos: Ausencia de atipias - Monocitos: Nada digno de nota.
(a) Dr. Pedro Jannini
Foi dado à paciente o prazo de uma semana para novos exames.
No dia 2-6-52 voltou para os exames, referindo ter passado bem. A mucosa nasal apresentou-se de aspeto normal, sem edema, sem desenho vascular. Fizemos nessa data inalações de solução de poeira da fábrica, na concentração de 1 : 10, durante dez minutos, após o que a mucosa nasal em ambos os lados se apresentou edematosa, mais intensa nos cornetos inferiores. Desenho vascular na zona hemorragica esquerda visível, como no último exame, isto é, sob a forma de dois vasos dispostos em V. A paciente referiu tonturas e cefaleia.
O hemograma nesta data revelou:
Observações:
Serie Vermelha: nada a assinalar
Serie branca: Neutrófilos: Ausência de granulações toxicas
Eusinófilos: Eusinofilia - Linfócitos: Ausência de atipías
Monócitos: Nada digno de nota.
Dia 9-6-52: repouso ate esta data, repetindo-se o hemograma antes de qualquer inalação. O resultado deste foi:
(a) Dr. Pedro Jannini
Observações:
Serie vermelha: Nada digno de nota.
Serie branca: Neutrófilos: Ausência de granulações
Eusinófilos: Nada digno de nota - Linfócitos: Ausência de atipias - Monócitos: Nada a assinalar.
(a) Dr. Pedro Jannini
Dia 16-6-52, paciente ainda em repouso afastada de qualquer inalações suspeitas. Estado geral bom, sem queixa nasal. Ao exame, infiltração edematosa dos cornetos inferiores e desenho vascular na zona hemorágica de ambos os lados.
Em conclusão desses fatos podemos afirmar tratar-se de hipersenssibilidade da mucosa nasal aos elementos contidos nos extratos, o que indica reação vaso-motora a tais estímulos.
Comentários
Em face do que foi observado - anamnese, exame clinico e reprodução dos sinais e sintomas - estamos, sem duvida, diante de um caso de sensibilidade excessiva da mucosa nasal, com reação vaso-motora endereçada as substancia encontradas no tabaco. Essa circunstancia,toda especial cria incapacidade parcial e permanente para o trabalho, perfeitamente encadeada, em nexo manifesto, com as atividades que a empregada desempenhava ma empresa empregadora.
Numerosos teem sido os estudos ultimamente surgidos sobre a alergia e disturbios vaso-motores da mucosa nasal. Em 1950, Melchior publicou alentado trabalho sobre o assunto, no qual se refere a numerosas observações que demonstram que toda irritação física ou química dum órgão pode favorecer sensibilidade específica ou não. Tal se encontra nos trabalhadores em fábricas de tabaco, cujos produtos químicos volateis, no fim de certo tempo, os fazem sofredores de asma. Ainda nos manipuladores desses produtos, pode-se observar tambem dermatoses alergicas, como no presente caso, e no estudado pelo Prof. Flamínio Fávero, cujo paciente apresentava edema das mãos, dôres articulares, prurido e manchas da pele das mãos, ao simples contacto com pó de fumo. Há, pois, ação irritativa adjuvante das poeiras, produtos químicos, alem de perfumes, fumaças.
Entre os elementos de diagnóstico há a salientar, em primeiro lugar, a anamnese, onde são citados a obstrução nasal, a hidrorreia, frequentemente o prurido, o lacrimejamento, as vertigens, as tonturas, o mal-estar, a cefaleia, elementos esses que surgem variavelmente em quantidade, principalmente os espirros e o prurido nasal.
Dos sintomas de hipersensibilidade nasal o mais constante é a obstrução. Geralmente variável e mais pronunciada à noite e de madrugada que de dia, ela pode ser mais ou menos permanente ou ainda intermitente, uni ou bilateral, alternada.
Muitas vezes, a hidrorreia nasal mais ou menos duravel ou paraxística pode ser a única manifestação de alergia.
Ainda o citado A., em estudo pormenorizado das cefalalgia, refere-se à sua variabilidade e que podem encontrar-se em todas as formas de hipersensibilidade, independentemente de qualquer infecção superajuntada, sem caracterizar nenhuma fôrma particular.
Procurando explicar a origem da cefalalgia, os AA. (ValeryRadot, Sluder, Vail entre outros) atribuem a uma hiperexcitabilidade, portanto de carater anormal, do sistema parasimpatico. Daí a associação nesses casos de disturbios múltiplos não só da esfera nasal, encefálica, como tambem labirinticos. Por isso, William, da Clínica Mayo, acha que se pode falar em verdadeira síndrome de hipersensibilidade cefálica, de origem alérgica ou física.
Em nosso caso houve divergência entre a sensibilidade cutânea, cujo resultado da pesquisa foi negativo, e o comportamento da mucosa das vias nasais. Entretanto, o próprio Melchior adverte: "A interpretação dos resultados positivos tomará conta, antes de tudo deste principio geral de que a alergia clínica não coincide necessariamente com a sensibilização cutânea, seja que esta a precede, seja se lhe sucede". E acrescenta: "Os resultados devem ser confrontados com a história clínica que prevalecerá".
Alem disso, é fato notório que as reações cutâneas são raramente observadas com alergenos respiratorios. Em todos os trabalhos de alergia nasal vem sempre referido que de maneira geral há negatividade de curi-reação em 10-15% dos casos de rinite espasmodica ou de corisa e asma. Prevelecerão, nesses casos, a anamnese, o quadro clínico e a reprodução da molestia.
Temos, assim, elementos suficiente para afirmar que a paciente apresenta reação de tipo alergico - mais acertadamente classificada de hipersensibilidade - localizada na região cefálica e na mucosa nasal, tendo como ponto de partida e de estímulo o tabaco, existente no local do trabalho.
Não se deve omitir que um certo efeito de somação há que tomar em consideração: dia por dia, o se repetir do estímulo cria esta capitalização de estímulos, que rompem afinal o equilíbrio, aparecendo a hipersensibilidade assim despretada. É o denominado periodo de sensibilização.
Há concordância, pois, não só sintomatológica como causal, entre os males apresentados pela paciente e o tipo de trabalho desenvolvido na indústria. Assim, é legítima a conclusão acima registrada, de haver perfeito nexo causal, em liame perfeitamente aceitavel.
O grau de incapacidade parcial e permanente que esse estado provocou não é facil de determinar, mormente ao se considerar que as tabelas oficiais e a relação das lesões omissas não oferecem pontos de reparo. Mas acreditamos que pode ser avaliada tal incapacidade em torno de dez por cento (10%).
A paciente não poderá, evidentemente, voltar a ambientes de trabalho em que existam poeiras de tabaco ou suas fumaças ou odores.
RESUMO
Os AA. descrevem um caso de hipesensibilidade da mucosa nasal ao fumo, de origem profissional, chegando a reproduzir conjunto de sintomas e sinais com inalações das substancias em causa. Chamam a atenção para a importância dos dados anamneticos e clínico e concluem que tal fenômeno determine incapacidade ao trabalho de carater parcial e permanente, avaliada aproximadamente em 10%.
BIBLIOGRAFIA
BACIGALUPPI E. - "Alergia nasal. Anafilaxia y Alergia". El Ateveo - Buenos Aires, 1941.
FAVERO F. - Laudos periciais. Laudo: 4.476. Fs. 4.851.
MELCHIOR R. - "Allergie et tronbles vasomoteurs de la muqueuse nasal et sinusienne". Masson & Cia. - 1950 - Paris.-
(*) Apresentado no Departamento de ORL. da Associação Paulista de Medicina em 17-8-52 e na Sociedade de Medicina Legal e Criminologia em 14-4-52.
(**) Livre Docente de Medicina Legal da Fac. de Medicina e da Fac. de Direito da Universidade de São Paulo.
(***) Oto-rino-laringologista da Clinica ORL da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo