Ano: 2010 Vol. 76 Ed. 4 - Julho - Agosto - (18º)
Seção: Artigo Original
Páginas: 522 a 526
Análise da correlação entre limiares auditivos, questionários validados e medidas psicoacústicas em pacientes com zumbido
Correlation analysis of hearing thresholds, validated questionnaires and psychoacoustic measurements in tinnitus patients
Autor(es): Ricardo Rodrigues Figueiredo1, Marcelo A. Rates2, Andréia Aparecida de Azevedo3, Patrícia Mello de Oliveira4, Patrícia B. A. de Navarro5
Palavras-chave: audiometria, psicoacústica, questionários, zumbido.
Keywords: audiometry, psychoacoustics, questionnaires, tinnitus.
Resumo:
Uma das principais dificuldades nos estudos clínicos sobre zumbido reside na falta de consenso sobre os métodos de mensuração. Objetivo: Avaliar a correlação entre os limiares audiométricos, pitch matching (PM), minimum masking level (MML), Tinnitus Handicap Inventory (THI) e o Inventário de Depressão de Beck (BDI) em pacientes com zumbido. Modelo de Estudo: Prospectivo, coorte transversal. Material e Método: 48 pacientes com zumbido como queixa principal foram submetidos aos testes audiométricos e questionários acima descritos. Os dados foram comparados estatisticamente para as correlações entre os métodos. Resultados: Não houve correlação estatisticamente significativa entre o THI e MML, tanto em pacientes com BDI acima e abaixo de 14 pontos, bem como entre a frequência de pior limiar auditivo e o Pitch matching e entre a frequência de "cut-off" e o PM nos pacientes com curvas descendentes em rampa. Conclusões: Não existe correlação estatisticamente significativa entre as medidas psicoacústicas do zumbido, os limiares audiométricos e os questionários de avaliação. O zumbido é um sintoma muito complexo e avaliações isoladas pelos métodos acima não são satisfatórias.
Abstract:
One of the most criticized points in tinnitus clinical studies arise from the lack of consensus about measurement methods. Aim: To evaluate the correlation between audiometric thresholds, pitch matching (PM), minimum masking level (MML), Tinnitus Handicap Inventory (THI) and the Beck Depression Inventory (BDI) in tinnitus patients. Study design: Prospective, cross-sectional. Materials and methods: Subjects were submitted to tonal audiometry, PM and MML for tinnitus. They also filled out the THI and BDI. Data was statistically compared for correlation purposes between audiometric thresholds, psycho-acoustic measures and questionnaires. Results: There was no statistically significant correlation between THI and MML, both in patients with BDI scores under and over 14 points. There was no statistically significant correlation between the worst hearing frequency and PM, as well as between the cut-off frequency and the PM in patients with descending hearing curves in their audiograms. Conclusions: There is no statistically significant correlation between psycho-acoustic measures (PM and MML), audiometric thresholds, THI and BDI. Tinnitus is a very complex symptom and isolated measures by psycho-acoustic methods; tinnitus and depression questionnaires are not satisfactory.
INTRODUÇÃO
Zumbido pode ser definido como uma sensação auditiva percebida pelo paciente, sem qualquer fonte física externa geradora de som. Dados norte-americanos estimam que entre 15 a 20% da população em geral apresenta zumbido e 20% destes indivíduos têm um forte impacto em sua qualidade de vida1. Os resultados das diferentes estratégias de tratamento para o zumbido são bastante irregulares. No entanto, como alguns pacientes parecem se beneficiar fortemente de modalidades específicas de tratamento, a tendência atual de pensamento é que este sintoma tenha origem multifatorial, apresentando-se em diversos subtipos2. Um fato que torna a avaliação de pacientes com zumbido particularmente difícil é a falta de uniformidade dos métodos de estudo. Várias publicações têm sido criticadas devido à sua metodologia, principalmente com relação ao processo de mensuração e avaliação do zumbido3. Meikle et al., em um artigo de revisão de 20084, classificam esses métodos em 4 categorias: testes psicoacústicos, escalas, questionários para avaliação dos efeitos funcionais do zumbido e questionários para análise das percepções globais dos efeitos terapêuticos.
Testes psicoacústicos têm sido empregados desde os anos 404 e os quatro mais utilizados são o Pitch Match (PM), Loudness Match (LM), Minimum masking level (MML) e Inibição Residual (Residual Inhibition, RI). Os questionários para avaliação dos efeitos funcionais são compostos por vários itens que avaliam o impacto do zumbido em vários aspectos da vida diária4. Segundo alguns autores, a sua utilização garante maior confiabilidade à avaliação do zumbido em comparação com outros métodos5. Para outros autores, no entanto, questionários para avaliação do zumbido não são totalmente confiáveis, já que a maioria deles não foi desenvolvida para avaliar os resultados do tratamento4. Dentre os questionários mais utilizados, podemos citar o Tinnitus Handicap Inventory (THI)6, o Tinnitus Handicap Questionnaire (THQ)7 e o Tinnitus Questionnaire (Mini-TQ)8. Os dois primeiros são comumente usados nos países de língua inglesa e o terceiro na Europa. No Brasil, o THI na versão validada para Português do Brasil9 é o mais utilizado, bem como as escalas visual-análogas3.
O zumbido pode se apresentar como um problema significativo na vida dos pacientes2,3, os quais podem ter sua capacidade de ajuste a esta nova realidade seriamente comprometida. Além disso, o zumbido está, na maioria dos casos, associado à perda auditiva, o que provoca um significativo impacto adicional. É, portanto, de grande utilidade reconhecer, avaliar e, se possível, mensurar a importância da participação dos chamados "aspectos psicológicos" como fatores de piora das consequências trazidas pelo sintoma zumbido e seu eventual impacto nos resultados do tratamento.
Sabemos que a depressão é um transtorno de humor que se caracteriza por aspectos clínicos como fadiga, diminuição da capacidade de concentração e de manutenção da atenção, redução da autoestima e autoconfiança10. A depressão pode ser classificada em diferentes níveis: leve, moderada e grave em função da quantidade, do tipo e da intensidade dos sintomas10. A disforia é também uma característica de muitos transtornos psiquiátricos, incluindo ansiedade e transtornos de humor. É geralmente caracterizada como uma sensação desagradável ou de incômodo, como tristeza, ansiedade, irritabilidade ou agitação. Etimologicamente, é o oposto da euforia10. O Inventário de Depressão Beck (BDI)11 é provavelmente o método de autoavaliação mais utilizado para estudo da depressão, tanto na prática clínica quanto na pesquisa12, tendo sido traduzido e validado em diversos países, inclusive no Brasil12.
Paralelamente, estudos experimentais em animais demonstraram que lesões cocleares podem induzir mecanismos de plasticidade neural tanto em nível cortical como subcortical, seguidos por reorganização tonotópica, semelhante ao que ocorre na amputação de membros13,14. Os neurônios corticais, privados de estímulos aferentes oriundos da cóclea, podem sofrer alterações neuroplásticas, com subsequente redução do limiar de disparo para as frequências em torno das áreas afetadas, teoria conhecida como "lesão de margem" ("lesion-edge")15. Mecanismos semelhantes podem estar relacionados a algumas formas de zumbido2. Além disso, observações clínicas levaram à suposição de que o dano coclear pode, de forma semelhante ao que ocorre no treinamento da percepção, ser seguido por um melhor desempenho da discriminação auditiva em frequências específicas16. Estudos clínicos em humanos reforçaram estes conceitos, demonstrando, através do Teste de Limiares de Diferenciação de Frequências (Frequency Difference Limens - FDL) que, em pacientes com perda auditiva neurossensorial e curvas audiométricas em rampa, pequenas diferenças são encontradas nas frequências próximas às frequências de corte (cut-off frequencies)16.
Pretendemos, com este estudo, avaliar a correlação entre dados audiométricos, medidas psicoacústicas relacionadas ao zumbido (TM e MML) e questionários validados para o português brasileiro (THI e BDI).
MATERIAL E MÉTODO
Quarenta e oito (48) pacientes com zumbido como a queixa principal e que se apresentaram para tratamento nos centros referidos foram selecionados, sendo 30 provenientes do Centro A e 18 do Centro B. Foram excluídos pacientes menores de 18 anos, mulheres grávidas, pacientes com zumbido de duração inferior a 3 meses, de origem vascular, muscular ou somatossensorial, pacientes com transtornos da articulação temporomandibular, com otoscopia anormal, perda auditiva condutiva ou mista, timpanogramas A-r, A-d, B e C, pacientes submetidos a tratamento medicamentoso para o zumbido nos últimos 6 meses e portadores de Schwannoma do VIII nervo (ressonância magnética realizada antes da inclusão no estudo, nos casos com disacusia assimétrica).
Todos os pacientes foram submetidos a audiometria tonal, imitanciometria, determinação do Pitch Match (PM, teste no qual o paciente correlaciona o zumbido com um ruído de banda estreita (narrow band ou tom puro), determinação do Minimum masking level (MML, teste no qual o paciente é exposto a um ruído de banda larga, que é ajustado a cada 1-2dB, até que o paciente relate não perceber mais o zumbido) e determinação da Cut-off frequency (frequência de corte - Fc, definida como a maior frequência em que o limiar auditivo é de até 5dB acima do melhor limiar), medida apenas nas curvas audiométricas em rampa)17. A metodologia seguida foi exatamente a mesma em ambos os centros.
Todos os pacientes também responderam aos questionários THI (Tinnitus Handicap Inventory) e BDI (Beck Depression Inventory), ambos em suas versões validadas para o português brasileiro9,12.
Os parâmetros avaliados para o conjunto da amostra foram sexo, idade, lateralidade, duração e tipo de zumbido. Os dados estatísticos foram obtidos a fim de determinar possíveis correlações entre o MML e o THI (com o objetivo de avaliar a correlação entre a intensidade com a qual o paciente percebe o zumbido e os prejuízos gerados pelo mesmo), entre o THI, MML e BDI (com o objetivo de verificar se a correlação entre o THI e MML sofre qualquer interferência da depressão), entre as frequências com os piores limiares auditivos e o PM e entre a Fc e o PM (estas últimas com o objetivo de verificar se existem evidências audiométricas que corroborem a "teoria da lesão de margem" - lesion-edge theory - em pacientes com zumbido).
Para a comparação entre MML-PM e as variáveis categóricas sexo, lateralidade, THI e BDI foi realizado o teste t-student quando suposições habituais do modelo (normalidade e homocedasticidade) foram encontrados nos 2 grupos comparados. Caso contrário, o teste de Mann-Whitney foi empregado. As hipóteses do teste t-student foram verificadas com o teste de Kolmogorov-Smirnov para a normalidade e com o teste de Levene para homocedasticidade. Nos casos em que mais de 2 categorias foram comparadas, o teste F foi realizado quando as hipóteses foram confirmadas e teste de Kruskal-Wallis quando não. Para comparar MML-PM e os parâmetros quantitativos de idade, tempo de zumbido, THI, BDI, frequências de pior limiar auditivo e as frequências de corte, o coeficiente de correlação de Pearson foi executado.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Médica, parecer 005/2009, e registrado no ClinicalTrials.gov sob o número NCT 00976547.
RESULTADOS
As características demográficas, dados qualitativos e quantitativos para o total da amostra (n=48) encontram-se detalhados nas Tabelas 1 e 2.
De acordo com os testes de Mann-Whitney, t de Student, Kruskal-Wallis e Teste F, não se verificou correlação estatística entre o MML e as variáveis sexo e lateralidade, bem os escores do THI e BDI. O coeficiente de Correlação de Pearson encontra-se representado na tabela 3, com tendência estatística para valores mais altos do MML serem percebidos por pacientes idosos com hipoacusia unilateral (p- valor em torno de 0,05).
Além disso, não se verificou diferenças estatisticamente significativas (Coeficiente de Pearson) na correlação MML-THI entre os subgrupos com escores do BDI normal e anormal, como detalhado na Tabela 4.
De acordo com os testes de Mann-Whitney, Pearson, t de Student, Kruskal-Wallis e Teste F, não se verificou correlação estatística entre o PM e as variáveis sexo, idade e lateralidade, bem como os escores do THI e BDI. Também não foi observada correlação estatística entre o PM e os dados audiométricos, incluindo a frequência de pior limiar e de cut-off (p > 0,05), esta última analisada em 30 pacientes com curva audiométrica em rampa.
DISCUSSÃO
Nossos resultados estão de acordo com o estudo de Hiller & Goebel, no qual foi analisada a correlação entre o questionário Mini-TQ e o Sistema de Graduação de Loudness de Klochoff & Lindblom em 4.958 pacientes com zumbido (estudo retrospectivo)18. Os autores concluíram que o volume do zumbido percebido pelo paciente e o incômodo não são necessariamente congruentes, devendo, portanto, ser avaliados de forma separada. Por outro lado, Meikle encontrou correlação positiva entre questionários para avaliação do zumbido e o volume subjetivamente percebido pelo paciente19.
A incidência de depressão em nossa amostra foi baixa (8,3%), em concordância com estudo de Newman et al., em que foi demonstrada fraca correlação entre zumbido e depressão6. Entretanto, outros estudos estabeleceram uma correlação clara entre zumbido e depressão7,20. Uma explicação para tal fato poderia residir no THI médio de nossa amostra (45,5 - escore moderado). Concordamos com Newman, já que, em nossa opinião, essa população representa de forma mais fidedigna os pacientes com zumbido atendidos habitualmente pelo otorrinolaringologista. Muitos estudos clínicos em pacientes com zumbido apresentam em sua amostragem valores médios de THI elevados, os quais frequentemente se associam a quadros depressivos. Tal fato pode estar relacionado a diferentes resultados de diversas modalidades terapêuticas.
Nossos dados mostram uma leve tendência estatística para maiores MML em pacientes idosos com disacusia unilateral, achado que deve ser interpretado com cautela devido à sua pouca representatividade estatística.
Um achado interessante foi o alto MML da amostra (média de 50,6dB) em comparação a outros estudos (média de 15dB)21. Como a metodologia dos exames audiológicos foi similar a de outros estudos, uma possível explicação poderia estar relacionada à presença de diferentes subtipos de zumbido ou a variações relacionadas à habilidade dos pacientes para perceber e comparar sons (aspectos socioculturais).
Nossos dados estão em desacordo com alguns estudos que estabeleceram correlação entre a frequência do zumbido e as frequências da perda auditiva22,23. Além disso, não houve correlação entre a Fc e PM. Considerando-se o fato de que cerca de 90% dos pacientes com zumbido apresentam perda auditiva1 e as teorias mais atuais que relacionam o zumbido a alterações neuroplásticas centrais que se seguem a um dano inicial, geralmente coclear2, torna-se razoável a suposição de eventuais correlações entre as frequências da perda auditiva (ou vizinhas a ela) e a frequência do zumbido. Nosso estudo, ressalvando-se o número relativamente pequeno de pacientes, não logrou estabelecer tal relação. O conjunto dos dados reforça a extrema complexidade do zumbido enquanto sintoma, não sendo restrito às interações entre disacusia neurossensorial, neuroplasticidade e, eventualmente, depressão.
Nossos dados reforçam a extrema complexidade do sintoma zumbido. Acreditamos que estratégia de avaliação estandartizada poderá ser extremamente útil na padronização e reprodutibilidade de estudos clínicos sobre zumbido, uma vez que não se verifica correlação entre diversos métodos atualmente utilizados.
CONCLUSÃO
Não foram verificadas correlações estatisticamente significativas entre medidas psicoacústicas (Pitch matching e Minimum Masking Level), dados audiométricos (frequência com pior limiar e frequências de cut-off) e questionários validados para avaliação do zumbido (Tinnitus Handicap Inventory) e depressão (Beck Depression Inventory).
AGRADECIMENTOS
META Consultoria Estatística, pela análise estatística.
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1. Mestre em Cirurgia Geral-Otorrinolaringologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor Titular de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Valença, RJ. Diretor Técnico da OTOSUL, Otorrinolaringologia Sul-Fluminense, Volta Redonda, RJ.
2. Médico otorrinolaringologista, Professor Auxiliar de Otorrinolaringologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. Médico otorrinolaringologista do Centro de Tratamento e Pesquisa em Zumbido, Belo Horizonte, MG.
3. Médica otorrinolaringologista, Diretora de Trabalhos Científicos da OTOSUL, Otorrinolaringologia Sul-Fluminense, Volta Redonda, RJ.
4. Fonoaudióloga, Audiologista, Chefe do Departamento de Audiologia da OTOSUL, Otorrinolaringologia Sul-Fluminense, Volta Redonda, RJ.
5. Fonoaudióloga, Fonoaudióloga do Centro de Tratamento e Pesquisa em Zumbido, Belo Horizonte, MG.
OTOSUL, Otorrinolaringologia Sul-Fluminense, Volta Redonda, RJ Centro de Diagnóstico e Pesquisa em Zumbido, Belo Horizonte, MG
Endereço para correspondência:
Rua 40 nº 20 salas 216 a 218 Vila Santa Cecília
Volta Redonda RJ 27255-650
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 23 de setembro de 2009. cod. 6658
Artigo aceito em 20 de dezembro de 2009