Ano: 1952 Vol. 20 Ed. 6 - Novembro - Dezembro - (2º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 191 a 200
GUNDÚ
Autor(es): FABIO BARRETO MATHEUS
Diz-se que um dos 7 pecados da medicina é o amor ao raro. Não participamos dessa opinião, e achamos que devemos dispender esforços no sentido de divulgar e elucidar aqueles problemas que fogem da rotina diaria dos nossos ambulatorios.
Daí a razão de trazermos à apreciação dos colegas a observação de um caso de doença considerada rara entre nós - o gundú.
O gundú é uma afecção óssea que se manifesta pela presença de saliencias latero nasais simetricas, localisadas nas apofises ascendentes dos maxilares.
Segundo Botreau Russel aparece em todas as raças porem mais comum no negro.
E mais frequente na Costa ocidental da Africa, no Sul da Asia, na Oceania, e Indias Ocidentais. Nas Americas Central e do Sul tem sido descritos alguns casos.
Os ceramistas do antigo Perú impressionados por certos estados patologicos procuravam reproduzi-los em suas obras. Assim é que em certas esculturas pré colombianas encontram-se deformidades que podem muito bem ser classificadas como gundú ou leontíase.
Póde-se suspeitar então que a dita afecção já existisse de há muito na América.
O primeiro caso de gundú foi apresentado por Mac Alister na Academia Real Irlandesa em 1882; porem este nome lhe foi dado por, Macland em 1895 ao descrever um caso observado no Alto Niger.
Segundo Mangabeira Albernaz, no seu bem documentado trabalho sobre o assunto, até 1933 haviam sido publicados 17 casos, que somados ao caso do dito autor e de 2 outros posteriormente publicados perfazem um total de 20 observações assim discriminadas:
Pacheco Mendes, em 1900 (Baía).................1 caso
Marchoux, em 1911 (Rio)........................1 caso
Fernando Luz e Otavio Torres, em 1920 (Baía)...1 caso
Casos estudados por Froés (Baía) ..............3 casos
Souza Mendes (Rio).............................1 caso
Cesario Andrade (Baía).........................1 caso
João Marinho, em 1926 (Rio)....................1 caso
David Sanson, em 1926 (Rio)....................1 caso
Pereira Gomes (S. Paulo).......................1 caso
Celso Ferreira (Curitiba)......................1 caso
Bassewitz (R.G. Sul)...........................2 casos
Fernando Luz (Baia)............................1 caso
Gouveia-Fotografia do Arquivo da F.M.(baia)....1 caso
1 Cranio do Instituto Nina Rodrigues (Baia)....1 caso
Mangabeira Albernaz, em 1933 (S. Paulo)........1 caso
Roberto Marinho Filho, 1940 (Rio)..............1 caso
Total..........................................20 casos
Otavio de Freitas num seu trabalho sobre doenças Africanas no Brasil inclui 3 casos de João Alfredo e 2 de Jorge Lobo ambos de Pernambuco. Assim sendo teremos um total de 25 observações.
A maioria dos casos não foi bem estudada, pois num grande numero há apenas menção.
Algumas observações (Pacheco Mendes - Luz e Torres - Souza Mendes - Mangabeira Albernaz - Aristides Monteiro - Roberto Marinho Filho) foram muito bem documentadas.
Fazendo um resumo das observações temos:
Reações Sorológicas - Foram praticadas em 5 casos. Exame anatomo patologico - foi feito em 4 casos.
Exame radiografico em 4.
A observação mais bem documentada foi a de Mangabeira Albernaz; pois alem de ter feito os exames acima enumerados ainda fez hemograma, exame de urina e exame de fezes.
A estes casos junto mais um que tive oportunidade de observar.
Observação: B.F.L. preto, brasileiro, casado, com 42 anos e residente em Avaré neste Estado. Foi internado no Hospital. N.S. Aparecida em Agosto de 1950.
Antecedentes pessoais - Doenças da 1.ª infancia. Conta que teve febre por diversas vezes sem saber precisar a causa. Há 25 anos teve cancro sifilítico não tendo feito tratamento adequado. Há 20 anos sofreu traumatismo (coice) na hemiface direita.Fig. 1 e 2Fig. 3
Antecedentes familiares - Sua mulher teve 9 filhos dos quais 4 morreram de causa ignorada. Nega abortos. A mulher sofre de cefaleia rebelde a todos os tratamentos feitos.
Historia da doença atual - Há 9 anos notou o aparecimento de pequena tumefação dura no lado direito da piramide nasal. A seguir identica tumefação apareceu do lado esquerdo. Três anos após, o desenvolvimento então se tornou muito rápido. Tem cefaléa e rinorréa mucosa.
Exame - Pela inspeção nota-se em ambos os ramos ascendents dos maxilares, ate o seu processo frontal, grandes tumorações alongadas, simetricas, duras, indolores a palpação.
A pele esta integra, de coloração normal e não apresenta aderencias.Fig. 4
Pela rinoscopia anterior - Nota-se pequena tumefação de consistencia ossea no assoalho das fossas.
Soro reações para sifilis - Reação de Wassermann - fortemente positiva. Reação de Kahm - fortemente positiva. Reação quantitativa - antigeno de cardiolipina 45,0.
Hemograma - Não apresentou alterações dignas de nota.
Exame de urina - Densidade 1.018 - Traços de albumina e sangue. Não foram encontrados cristais.
Exame de fezes - Cistos de Iodamoeba Butchlü e de Endamoeba coli.
Reação de Frey - negativa.
Dosagem de caldo no sangue - 10,5 mlgs. por 100 cc.
Dosagem de fosforo no sangue - 3,82 mlgrs. por 100 cc.
Dosagem da fosfatase - 3,60 u.d. Bodansky por 100 cc.
Radiografia - Na radiografia de frente nota-se imagem arredondada de condensação ossea ocupando as paredes laterais da piramide nasal, continuando-se com o massiço facial. O seio maxilar direito apresenta-se totalmente opacificado, de tal forma que não se percebem os seus contornos. Do lado esquerdo o seio apresenta ainda na sua parte central urna zona de mais transparencia. A mesma radia opacidade é observada ao nivel dos assoalhos das fossas que apresentam seus diametros diminuidos (fig. 4).Fig. 5
Na radiografia de perfil (fig. 5) as zonas de maior opacidade estão ao nivel dos ossos proprios e do maxilar.
O exame clinico e as radiografias dos outros ossos não mostraram desvios da normalidade.
Diante destes resultados fazer exerce da tumoração não so com intiuito terapeutico como tambem para exame anatomo patologico; para seguir instituir o tratamento anti-luetico.
O ato cirurgico foi realizado com simplicidade, fazendo-se uma incisão longitudinal para latero nasal de cada lado. A tumoração ossea, de grande consistencia, foi desfeita com goiva e martelo.
Enviados os fragmentos a exames recebemos o seguinte resultado: O material examinado constava de 24 fragmentos de substancia ossea variando desde o volume de um grão de feijão ate o de uma noz.
Fixação em soro formulado a 10% e descalcificação em solução de acido azotico a 10 %. Inclusões em parafina e coloração pela hematoxilina eosina e Van Gieson.
Microscopicamente trata-se de hipreplasia ossea constituida por neoformação de lamelas em disposição trabecular caprichosa. Formação de canais haversianos desprovidos de medula funcional. No lugar dela há tecido conectivo vascular frouxo contendo aglomerados perivasculares em manguitos de plasmacelulas. Osteo-blastos em atividade de diferenciação (fig. 6)
Conclusão: Ostema esponjoso. (Dr. Monteiro Salles).Fig. 6
Estes tumores osseos têm inicio em geral na segunda infancia. No começo há um processo de irritação endo nasal e o paciente apresenta rinorréa por vezes sanguinolenta e cefaléa. A seguir aparece uma tumefação latero nasal um ou bilateral de crescimento muito lento. O ponto de origem é de regra no ramo montante do maxilar junto ao processo nasal. Aumenta então gradativamente de volume, chegando por vezes a proporções consideraveis podendo mesmo perturbar a visão. A pele é integra e não apresenta aderencias. Pode haver dor discreta à pressão.
Na leontiase ossea encontramos tambem este aspecto; mas em geral a tumoração óssea alcança outros ossos da face como o palato, frontal e base do crânio. Para alguns seria a doença de Engel Recklingausen, enquanto que para outros seria apenas um osteoma difuso da face. A doença de Recklingausen ou osteite fibrocistica generalisada é devida à hiperfunção paratireodéa; havendo hipercalcemia e hiperfosfatemia. A radiografia pode apresentar dois aspectos: o osso de inicio tem aspecto finamente granular e depois toma aspecto pagetóide.
Cumpre fazer diagnostico diferencial tambem com a doença de Paget. (Osteite deformante). Esta no entanto ocorre de regra depois dos 40 anos. Parece ser uma osteite cronica não especifica. Não há disturbio endócrino. Há inflamação serosa da medula ossea e disturbio da estrutura lamelar dando aspecto de mosaico. O calcio e o fosforo sanguíneos são normais enquanto a fosfatase está aumentada.
A radiografia mostra aspecto floconoso.
Etiopatogenia - Ainda não está estabelecida e as mais variadas teorias têm aparecido para explicá-la.
Schircore admitia como sendo produzida por larvas de insetos das fossas nasais.
Outros defendem as desindocrinias, condições anatomicas especiais, e mesmo verminóses.
Friedrischerí e Antoneli aventaram a possibilidade da origem luetica. Realmente alguns doentes apresentam a reação de Wasserman positiva, como no caso de nossa observação. Pode no entanto ser uma outra doença num sifilítico.
Durante, e Marchoux admitem que seja de origem inflamatoria, e os corpos redondos encontrados nos tecidos doentes poderiam ser os parasitas.
Chalmers diz que é uma manifestação da bouba. Esta teoria é defendida tambem por Botreau Russel.
Roy não aceita a teoria pianica alegando que em zonas ricas em bouba são raros os casos de gundú; acreditando que seja de origem inflamatoria.
Tournier (citado por Mangabeira Albernaz) tratou um menino com osteites multiplas consequentes a bouba. O tratamento especifico curou todas as lesões excepto o gundú; ocorrência esta que fala contra a origem pianica.
Pacheco Mendes acha que pode ser resultante de lesões nervosas centrais; porem Mangabeira afirma que estas lesões de regra determinam parada do crescimento e não lesões exuberantes.
Para lemaitre e Garraud haveria uma causa de ordem geral, mais uma infecção local podendo ser esta treponemica.
Para Cornyl trata-se de uma simples hiperplasia ostogenica inflamatoria, comparavel à da osteite sifilitica.
Larriet com muita razão inclui no grupo das osteogenica inflamatoria, comparavel a da osteite sifilitica.
Larriet com muita razão inclui no grupo das osteo distrofias. Mangabeira, esposando esta teoria acha que certas infecções podem ocasionar disturbios em certas glandulas endocrinas, trazendo como consequencia alterações no metabolismo osseo.
É dificil explicar o tropismo para as regiões latero nasais.
Dada a maior frequencia da doença em certas zonas não devemos considerar despresiveis os fatores climáticos, raciais e alimentares.
Nos exames histologicos do gundú e leontiase há sempre uma lesão constante: Hiperplasia ossea que se assemelha a osso esponjoso com fibrose e infiltração plasmocitaria. Daí a dificuldade para se fazer o diagnostico anatomo patologico da doença. Aristides Monteiro diz o mesmo que a luz dos conhecimento atuais é impossivel uma distinção histológica entre gundú, leontiase e osteite hipertrofica deformante.
Mangabeira Albernaz considera a leontiase ossea e o gundú pelo menos no branco como a mesma doença.
No caso de nossa observação firmamos o diagnostico de gundú pelas razões seguintes:
1) Aspecto morfologico da lesão
2) Ausencia de disfunções endócrinas
3) Ausencia de lesões em outras partes do esqueleto
4) Calcemia, fosfatemia e fosfatase normais
5) Exame anatomo patologico, que apesar de não ser concludente, se enquadra, como vimos acima, no quadro anatomo-patologico da leontiase e do gundú que são semelhantes.
Resumo
O A. apresenta a observação de um caso de gundú em um doente do sexo masculino de cor preta, com 42 anos.
Nos antecedentes conta traumatismo da face há 20 anos e cancro sifilítico há 25 anos.
As tumorações datam de 9 anos e ocupam as regiões latero nasais, e a radiografia mostra tumoração radio opaca ao nivel dos ramos montantes dos maxilares, Os exames revelaram: Reação de Wassermann : fortemente positiva. Reação de Frey: negativa. Exame de fezes: cistos de Iodamoeba Butchlü e Endamoeba coli.
Dosagem do calcio no sangue - 10,5 mlgrs. por 100 cc. Dosagem do fosforo no sangue - 3,82 mlgrs. por 100 cc. Dosagem do fosfatase no sangue - 3,60 u.d. Bodansky 100 cc.
O paciente foi operado e os fragmentos osseos examinados mostraram tratar-se de hiperplasia óssea constituida por neoformação de lamelas.
Trata-se do 20.º caso da doença observado no Brasil.
Passa em revista as teorias etio-patogenicas e o diagnostico diferencial com a leontiase ossea, doenças de Paget e de Recklingausen.
O exame anatomo patologico em todos os casos em que foram praticados não mostraram alterações que sejam exclusivas da doença.
BIBLIOGRAFIA
1) BERGMAN G. e outros - Tratado de patologia médica - Tradução da 2.ª edição alemã por Lorenzo Gironés - Barcelona, 1936.
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3) FORGUE E, - Patologia externa - Tradução de Elias Davidovicli - Rio - 1937.
4) FREITAS OTAVIO - Doenças africanas no Brasil - Biblioteca pedagogica Brasileira - Serie V, Vol. II.
5) LAURENS G. - Compendio de ORL. Tradução de Argemiro Galvão - Porto Alegre - 1935.
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7) MARINHO FILHO ROBERTO - Contribuição ao estudo do Gundú - Archivos do l.º Congresso Brasileiro do ORL. 1940.
8) MONTEIRO ARISTIDES - Gundú e osteite hipertrofica deformaste - Contribuição anatomo patologica. Rev. Br. ORL. Vol. VIII - N.º 6. Nov.Dez. 1940.
9) ROUSSEAU - DECELLE - RAISON - Pathologíe Buccale - peri bucalle et d'origine huccale. Masson - Paris - 1939.
SUMMARY
The author presents a case of "gundú", in a colored male patient, 42 years old, who had had traumatism of the face, and a syphilitic chancre, 25 years before.
The tumors are 9 years old and located in the outer walls of the nasal fossae.
The X ray picture shows a tumoral formation with opacity, of the ascending maxillary branches.
Tests show the following results:
Wassermann reaction, strongly positive.
Quantitative reaction with cardiolipine antigem 45,0.
Frey reaction: negative.
Feces: Butchli Iodameba cysts.
Blood calcium: 10,5 mgrs %
Blood phosphorus 3,82%
Phosphatase: 3,6 u. D. Bodansky.
The bone fragments get at the operation showed hiperplasia, compound by bone lamelae.
This was the 20th case os disease observed in Brazil.
The author refers the ethiopathogenic theories of the concerned litterature and the differencial diagnosis with the bone leonthiasis, Pagets and Recklinghausens diseases.
In every case the anatomapathological examinations did not show alterations which could be considered exclusive of disease.