Ano: 2009 Vol. 75 Ed. 3 - Maio - Junho - (24º)
Seção: Artigo de Revisão
Páginas: 463 a 466
Utilização da manobra de Müller na avaliação de pacientes apnéicos: revisão da literatura
Use of Muller's maneuver in the evaluation of patients with sleep apnea - literature review
Autor(es): Maria Claudia Mattos Soares1, Ana Carolina Raposo Sallum2, Michele Themis Moraes Gonçalves3, Fernanda Louise Martinho Haddad4, Luís Carlos Gregório5
Palavras-chave: apnéia do sono, endoscopia, obstrutiva.
Keywords: sleep apnea, endoscopy, obstructive.
Resumo:
A Síndrome da Apnéia e Hipopnéia Obstrutiva do Sono é uma patologia descrita há apenas vinte anos, havendo ainda várias dúvidas e controvérsias a seu respeito. Nesse âmbito inclui-se a nasofibrolaringoscopia com Manobra de Müller descrita por Borowieck e Sassin em 1983 e motivo de análise neste artigo. Objetivo: Revisão da literatura, com análise crítica e comparativa a respeito da capacidade da nasofibrolaringoscopia com manobra de Müller de predizer o sucesso da uvulopalatofaringoplastia, o local de colapso da via aérea superior e a gravidade da doença. Discussão e Revisão da Literatura: A revisão da literatura mostra que não há um consenso sobre a utilização da manobra de Müller, pois apesar de ser um exame de fácil execução, custo e tempo efetivos, é também bastante inespecífico e subjetivo. Conclusão: A relevância da manobra de Müller na avaliação do paciente apnéico tem sido questionada, pois há controvérsias na literatura quanto a sua capacidade de predizer o sucesso da cirurgia orofaríngea, o local de colapso da via aérea superior e a gravidade da apnéia.
Abstract:
Sleep apnea-hypopnea syndrome was described twenty years ago, and since then there have been doubts and controversies regarding it. Fiberoptic nasopharyngoscopy with Muller's maneuver, first described by Borowieck and Sassin (1983), is among them. Aim: Careful literature review on Muller's maneuver, regarding whether it can predict the sucess of uvulopalatopharyngoplasty, location of upper airway obstruction and severity of the disorder. Discussion and literature rewiew: Literature has shown that there isn't a consensus about the use of Muller's maneuver. In spite of being technically easy, inexpensive and widely used, it is very unespecific and subjective. Conclusion: The importance of Muller's maneuver in evaluating apneic patients has been questioned, because there are controversies whether it can predict the sucess of uvulopalatopharyngoplasty, location of upper airway obstruction and severity of the disease.
INTRODUÇÃO
Estudos envolvendo algumas das principais características dos pacientes com Síndrome da Apnéia Obstrutiva do Sono (SAOS) iniciaram com Burwell, Robin, Waley e Bickelmann (1956)1. Eles descreveram a Síndrome de Pickwickian, em homenagem ao novelista inglês Charles Dickens, autor do clássico "The Posthumous Papers of the Pickwickian Club" (1837), cujo personagem principal era um garoto obeso, roncador e sonolento. A síndrome é classicamente composta por obesidade, hipercapnia, cor pulmonale, eritrocitose e sonolência diurna excessiva.
A obesidade leva à sobrecarga e conseqüente depressão do centro respiratório, ocasionando hipercapnia e hipoxemia; este desbalanço entre os gases sanguíneos explicaria a sonolência diurna excessiva2,3.
Na década de 60, com o advento da polissonografia (PSG), autores europeus passaram a investigar a Síndrome de Pickwickian como um distúrbio respiratório do sono e concluíram que a hipersonolência diurna provinha da fragmentação do sono e não da alteração dos gases sanguíneos3,4.
Em 1972, na Itália, foi realizado o primeiro simpósio sobre distúrbios respiratórios relacionados ao sono e estabelecido por Guilleminault et al.5 o termo Síndrome da Apnéia Obstrutiva do Sono (SAOS), caracterizada por sonolência diurna excessiva e episódios de apnéia detectados pela PSG. O conceito de hipopnéia foi descrito primeiramente em 1979 como uma respiração superficial causadora de desnaturação durante o sono6. Quase uma década depois, em 1988, o termo SAHOS foi consagrado7.
De acordo com as definições publicadas pela Academia Americana de Distúrbios do Sono em 20058, o termo mais adequado é SAOS, já que não há evidências de que a fisiopatologia e as repercussões clínicas dos eventos de apeia e hipopnéia sejam distintas.
Várias teorias têm sido propostas para explicar a fisiopatologia da doença, que é multifatorial, decorrente, em parte, de alterações anatômicas da VAS e do esqueleto facial associadas às alterações neuromusculares da faringe9,10. Embora se saiba que indivíduos apnéicos apresentem uma faringe mais susceptível ao colapso11-13, ainda existe uma dificuldade muito grande em avaliar exatamente qual seria o ponto da faringe onde este colapso ocorre durante o sono. Isto porque, as avaliações são realizadas com o paciente em vigília, onde seu tônus muscular está preservado e durante o sono ocorre uma hipotonia progressiva, chegando à completa atonia durante o sono REM (do inglês "rapid eye moviment").
Por ser o sítio de obstrução na SAOS e o instrumento de trabalho do otorrinolaringologista, a via aérea superior (VAS) vem sendo estudada mais minuciosamente pelos especialistas da área. Neste âmbito, inclui-se a nasofibrolaringoscopia com Manobra de Muller (NMM) descrita em 198314 e motivo de análise neste artigo.
OBJETIVO
Revisão da literatura, com análise crítica e comparativa, a respeito da capacidade da NMM de detectar o ponto de colapso da via aérea superior, de predizer o sucesso da uvulopalatofaringoplastia (UPFP) e a gravidade da SAOS.
MÉTODO
Revisão assistemática. Foram pesquisados artigos indexados nas bases de dados LILACS e MEDLINE de 1950 até 2007.
REVISÃO DA LITERATURA E DISCUSSÃO
Em 1964 publicou-se o primeiro estudo envolvendo características da orofaringe em adultos roncadores, mostrando que 91% desses pacientes apresentavam faringe estreita, palato mole e úvula alongados15, no qual foi proposta a ressecção mucosa do pilar amigdaliano anterior e de parte da úvula, com os resultados satisfatórios.
Essas idéias foram sendo lapidadas, ao mesmo tempo em que estudos começavam a confirmar a hipótese de que a orofaringe era um sítio de obstrução importante na SAOS16. Apoiado nestes fatos, em 198117 a UPFP foi descrita, com sucesso de 50%, um grande marco no tratamento desta doença. Nesta época tem-se a popularização da UPFP, sendo o procedimento cirúrgico mais realizado para tratamento de ronco e apnéia do sono nas décadas de oitenta e noventa18. Desde então, o otorrinolaringologista assume um papel importante no cenário da SAOS.
Porém, os resultados cirúrgicos eram melhores em pacientes com roncos e apenas 50% dos apnéicos se beneficiavam com o novo procedimento cirúrgico, considerando sucesso uma redução de 50% do IAH (índice de apnéia e hipopnéia)19.
Em estudos posteriores aplicando como critério de sucesso a redução do IAH em 50% associado a um IAH menor de 20, a taxa de sucesso foi de cerca de 40%20. Inúmeros fatores foram implicados nos resultados pobres, como gravidade da doença, múltiplos locais de obstrução, obesidade e alterações anatômicas da maxila e mandíbula20. O sucesso da UPFP varia na literatura entre 8 e 100%, porém as diversas variações técnicas e critérios de sucesso utilizados dificultam a comparação dos dados21-25.
Ainda assim, a UPFP permanece como o procedimento cirúrgico mais realizado para tratamento da SAOS20,25-28.
Com intuito de selecionar adequadamente os pacientes apnéicos que poderiam ter sucesso com a UPFP, determinando a tendência ao colapso e flacidez da faringe, em 198314 descreveu-se a NMM, na qual o paciente realiza um esforço inspiratório forçado, com boca e nariz ocluídos e o examinador, com o nasofibrolaringoscópio locado na região retrolingual, observa o estreitamento látero-lateral e ântero-posterior das paredes da faringe; repete-se a manobra com o aparelho na região retropalatal. Os pacientes com colapso retropalatal seriam os melhores candidatos à UPFP29,30.
A capacidade da NMM em predizer o sucesso da UPFP foi avaliada em um grupo de pacientes apnéicos31, para o qual foram selecionados 30 pacientes com colapso retropalatal observado através da NMM, sendo que 22 (73%) obtiveram redução de no mínimo 50% no índice de apnéia e hipopnéia (IAH) em relação ao basal, considerado sucesso cirúrgico para o autor, porém na literatura, o critério mais aceito é a redução de no mínimo 50% no IAH e IAH< 2018. O estudo foi realizado apenas em apnéicos e a cirurgia somente naqueles com obstrução retropalatal, portanto a falta de grupo controle, bem como o critério de sucesso utilizado, limita correta análise dos resultados apresentados.
O mesmo estudo foi posteriormente reproduzido32 em 24 pacientes com SAOS moderada ou acentuada, realizada cirurgia em pacientes com colapso retropalatal (15) e retrolingual (9). A taxa de sucesso, utilizando o mesmo critério anterior, no primeiro grupo foi de 33,3% (5) e a de insucesso no segundo grupo foi de 77,7% (7). Este estudo sugere que a NMM não é capaz de predizer aqueles que teriam bom resultado cirúrgico, porém pode selecionar os que teriam insucesso.
Foi realizado um estudo prospectivo em 30 pacientes com SAOS33 e comparado o valor preditivo da NMM e da cefalometria na seleção dos pacientes para a UPFP. A NMM não foi capaz de predizer pacientes com sucesso (redução do IAH em 50% e IAH< 20) ou insucesso cirúrgico. Os autores propõem um modelo agrupando três medidas cefalométricas (distância entre hióde e plano mandibular, ângulo crânio-cervical e comprimento da maxila) e hipersonia, o qual é capaz de selecionar adequadamente esses pacientes em 83% dos casos.
Estudo semelhante ao acima com 53 pacientes apnéicos34 considerou como sucesso cirúrgico apenas a redução do IAH em 50%. Tanto a NMM quanto a cefalometria mostraram-se incapazes de selecionar os pacientes com sucesso ou insucesso para UPFP. A manobra foi realizada com o paciente na posição deitada e sentada, e não houve diferença entre elas.
Os estudos acima mostram que a NMM, isoladamente, não é um bom método para detectar o ponto de colapso da faringe e predizer o sucesso da UPFP, já que os pacientes com estreitamento retropalatal visualizado na NMM apresentaram resultados cirúrgicos aquém do esperado.
Ritter et al. em 199935 publicaram o único estudo na literatura com análise quantitativa da NMM, utilizando-se de um software para medir a área e os diâmetros nas regiões retropalatal e retroglossal na condição basal e durante a manobra, além de um transdutor de pressão para controlar o esforço inspiratório do paciente. Deste modo os autores excluem uma grande crítica deste procedimento: a subjetividade do paciente e do examinador. O exame foi realizado em pacientes normais, nas posições deitada e sentada. Na região retropalatal houve redução da área e do diâmetro látero-lateral durante a manobra de Muller quando comparada à condição basal. A região retrolingual não apresentou redução significativa da área, pois além do estreitamento látero-lateral, ocorreu um aumento do diâmetro ântero-posterior. Em ambas, não houve diferença entre realizar a NMM na posição deitada ou sentada.
Rombaux et al. em consenso sobre SAOS de 200236 sugerem que a NMM deveria ser realizada com um transdutor de pressão sob esforço inspiratório de -20 cmH2O para minimizar a subjetividade do paciente ao exame, porém comenta que seria inviável na prática clínica. No entanto, mantém a sua indicação no consenso por ser de fácil realização, tempo e custo efetiva.
Muitos pacientes são incapazes de produzir o esforço inspiratório adequado, podendo haver uma variação entre pacientes e entre o próprio paciente em exames diferentes. Qualquer exame que se fundamente na cooperação de pacientes apresenta algum grau de variabilidade37.
A reprodutibilidade da manobra foi estudada38 entre dois examinadores distintos, sendo um residente do primeiro ano e o outro professor da instituição e foi encontrada uma boa correlação. No entanto, trata-se de uma instituição de referência (Universidade de Stanford) para tratamento de distúrbios do sono, com grande volume de pacientes apnéicos e médicos habituados e treinados para a avaliação desses38.
Da mesma forma, a concordância entre dois examinadores durante a NMM também foi avaliada39. Em relação ao estreitamento lateral da faringe, houve concordância em 27 de 42 exames e discordância em 15. Na região retropalatal houve boa concordância (16 em 21 exames), com índice de kappa = 0.63. Os resultados demonstraram fraca concordância na região retroglossal (11 em 21 exames), com índice de kappa = 0.3.
Há, portanto, uma tendência na literatura em afirmar que a reprodutibilidade da NMM pelos examinadores também é contestável.
Estudando a correlação com a gravidade da SAOS, conclui-se que a manobra não é um bom preditor da gravidade da doença40. Outros autores encontraram uma correlação moderada (72%)38.
De acordo com a literatura, as vantagens da NMM são: fácil realização para o paciente e examinador, tempo e custo efetiva e amplamente divulgada36,41. As desvantagens são: invasiva, subjetiva para paciente e examinador, reprodutibilidade questionável, possível modificação da dinâmica do colapso da via aérea superior pela presença do endoscópio, o qual não necessariamente reproduz um episódio de apnéia32,37,41.
COMENTÁRIOS FINAIS
A manobra de Muller é uma ferramenta para auxiliar o otorrinolaringologista no manejo do paciente apnéico, porém a sua relevância na avaliação deste tem sido questionada, pois há controvérsias na literatura quanto a sua capacidade de detectar o ponto de colapso da via aérea superior, de predizer o sucesso da cirurgia orofaríngea e a gravidade da SAOS.
Em nosso serviço, utilizamos a nasofibrolaringoscopia para complementar o exame físico cérvico-orofacial em pacientes com suspeita de SAOS, porém a realização da manobra de Muller tem intuito fundamentalmente didático, com pouca interferência na conduta a ser tomada para o tratamento do paciente apnéico.
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1 Mestre em Otorrinolaringologia pela UNIFESP-EPM.
2 Médica residente em Otorrinolaringologia pela UNIFESP-EPM.
3 Médica residente em Otorrinolaringologia pela UNIFESP-EPM.
4 Mestre em Otorrinolaringologia pela UNIFESP-EPM.
5 Professor Doutor em Otorrinolaringologia pela UNIFESP-EPM, Chefe da disciplina de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da UNIFESP-EPM.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 13 de agosto de 2007. cod. 4711.
Artigo aceito em 23 de junho de 2008.