Ano: 2008 Vol. 74 Ed. 4 - Julho - Agosto - (18º)
Seção: Artigo Original
Páginas: 596 a 600
Alterações da saúde bucal em portadores de câncer da boca e orofaringe
Oral Health Changes in Patients with Oral and Oropharyngeal Cancer
Autor(es): Caio Perrella de Rezende1, Marcelo Barboza Ramos2, Carlos Henrique Daguíla3, Rogério Aparecido Dedivitis4, Abrão Rapoport5
Palavras-chave: higiene oral, neoplasias da boca, índice cpo, índice periodontal.
Keywords: oral hygiene, oral neoplasms, dmf index, periodontal index.
Resumo:
Inflamação e traumatismos bucais são importantes nos portadores de câncer de boca. Objetivo: Verificar a associação entre hábitos de higiene oral, doença periodontal e câncer da boca e orofaringe. Casuística e Métodos: Estudo transversal e prospectivo, com a inclusão de 50 indivíduos com carcinoma espinocelular da boca e orofaringe, sem intervenção terapêutica, comparados com 50 indivíduos, pareados por idade e gênero, sem câncer. Foi aplicado um questionário de saúde bucal e realizado exame oral para avaliação de doença periodontal e condição dentária, utilizando o índice CPOD. A classificação de doença periodontal e CPOD seguiu o protocolo preconizado pela OMS. Resultados: O exame periodontal e a obtenção do índice INTPC demonstram uma diferença entre os dois grupos, com evidências de doença avançada nos portadores de câncer de boca e orofaringe, demonstrada pela presença de bolsas periodontais acima de 6mm, em 76% dos casos avaliados enquanto no grupo controle, 10% dos pacientes apresentavam esse mesmo grau da doença. Não foram observadas diferenças significativas em relação ao índice CPOD e aos hábitos de higiene bucal. Conclusão: Os resultados permitem concluir pela presença de associação de doença periodontal mais severa nos portadores de câncer sem relação com hábitos de higiene ou condição dentária.
Abstract:
Inflammatory disease and oral trauma are relevant factors for patients with oral cancer. Aim: This paper aims to assess the association between oral hygiene, periodontal disease, oropharyngeal and oral cancer. Materials And Method: In this cross-sectional prospective study, fifty subjects with untreated oral and oropharyngeal squamous cell carcinoma were compared to fifty cancer-free subjects, paired by age and gender. They answered an oral health questionnaire and underwent oral examination to assess periodontal disease and dental health, as per the CPITN. Periodontal disease classification and CPITN assignment were done according to WHO guidelines. Results: Periodontal examination and the CPITN elicited the differences between the two groups, with evidences of advanced disease among the subjects with oral or oropharyngeal cancer, confirmed by the presence of periodontal pockets with depths of 6mm or greater in 76% of the subjects evaluated, while only 10% of the subjects in the control group showed the same level of disease. No relevant differences were observed in the DMF index and oral hygiene between both groups. Conclusion: The findings indicate that there is an association between cancer and more severe periodontal disease regardless of oral hygiene and dental health status.
INTRODUÇÃO
Os dois principais fatores de risco relacionados ao câncer da boca são o hábito de fumar e o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Existe um efeito sinérgico entre esses fatores e uma relação diretamente proporcional com a quantidade e tempo de exposição. Entretanto, outros fatores têm sido associados ao desenvolvimento do câncer da boca e orofaringe, incluindo agentes biológicos, como o papiloma vírus humano (HPV), higiene oral precária, história pregressa de neoplasia do trato aerodigestivo e exposição excessiva à luz ultravioleta (câncer do lábio). A grande maioria dos cânceres de boca é diagnosticada tardiamente. Para um diagnóstico precoce, está indicado o auto-exame ou o exame periódico por profissionais1-3.
As recomendações nacionais indicam que sejam estimuladas a higiene oral e visitas regulares ao dentista como medidas de prevenção. O exame clínico cuidadoso da boca deve ser realizado em todas as consultas, mesmo que a queixa principal não se concentre nessa topografia. Nos indivíduos de maior risco (tabagistas e etilistas), o exame da boca deve ser sistemático e indivíduos com lesões suspeitas devem ser imediatamente encaminhados à consulta especializada em centros de referência para realização dos procedimentos diagnósticos necessários4.
Como o diagnóstico precoce não tem logrado avanços, a forma mais adequada seria a diminuição de exposição aos fatores de risco. Dessa forma, é importante o achado de doença inflamatória e traumatismos bucais na população geral e portadora de câncer de boca5-8.
A definição de saúde oral não é consenso na literatura e pode-se considerar que um paciente apresenta condições inadequadas de saúde bucal quando se encontra qualquer espécie de processo inflamatório, infeccioso ou traumático e má higiene9. Dentre os processos traumáticos, destaca-se a ação de próteses mal ajustadas e a presença de dentes fraturados10, com predomínio de lesões traumáticas localizadas em língua, na região gengivo-jugal e palato11.
A inexistência de estudos definitivos com a descrição dos aspectos inflamatórios e traumáticos em população afetada ou não pelo câncer de boca justifica um estudo com o objetivo de determinar as possíveis correlações do estado de saúde bucal e os fatores predisponentes para o desenvolvimento de carcinoma espinocelular de cavidade oral e orofaringe.
PACIENTES E MÉTODO
O estudo foi transversal e prospectivo com a inclusão de indivíduos atendidos no período de fevereiro de 2003 a janeiro de 2004. O grupo controle para comparação das condições de saúde bucal sem a presença de câncer foi captado durante o mesmo período, com seleção pareada por gênero, idade e nível sócio-econômico. Os pacientes não foram pareados por hábitos de tabagismo e etilismo, estado nutricional, estadiamento clínico e subsítio da lesão. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo respectivo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o número 253, aprovado em 09/09/2003.
As informações clínicas foram obtidas por anamnese com ênfase em questões relacionadas ao passado e presente de cuidados de higiene bucal. Os dados relacionados às doenças associadas e aspectos clínicos relevantes do câncer foram obtidos dos prontuários dos pacientes. Foi realizado um exame clínico da boca para aferição das condições clínicas, com ênfase nos sinais de doença periodontal e cáries.
Na avaliação dos pacientes portadores de próteses, foi solicitado que os mesmos as retirassem antes do exame oral, sendo avaliada a presença ou não de áreas traumatizadas nos tecidos subjacentes às próteses. Em caso de constatação de áreas traumatizadas, os pacientes foram orientados e encaminhados para avaliação e conduta. Os indivíduos do grupo-controle que apresentassem lesões suspeitas foram excluídos do estudo e encaminhados para avaliação especializada.
Foram aplicados os princípios preconizados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para detecção de doença periodontal, denominado INTPC (Índice das Necessidades de Tratamento Periodontal da Comunidade). Esse índice corresponde a um número classificado de um a quatro, diretamente relacionado com a profundidade das bolsas periodontais. O estado de saúde dentário foi determinado pelo índice CPOD, preconizado pela OMS avaliando o número de dentes cariados, perdidos e obturados9.
Ao final do exame, foi atribuído um índice numérico representativo das condições de saúde dental. Quanto maior for o resultado desse índice, pior considerou-se a condição clínica, de acordo com o número de dentes perdidos, cariados e obturados.
A análise estatística contemplou o teste de t de Student para comparação entre as médias de idade nos dois grupos e o teste não-paramétrico do qui-quadrado para inferência de diferenças quanto às variáveis de saúde bucal. Em todas as avaliações, foi adotado um nível de 5% para determinação da significância estatística.
RESULTADOS
A Tabela 1 apresenta a distribuição dos indivíduos com e sem câncer em relação ao gênero e idade. Não foram encontradas diferenças na distribuição entre os dois grupos, e a totalidade dos participantes estava em faixa etária superior a 40 anos.
A Tabela 2 descreve os resultados obtidos no exame bucal nos dois grupos do estudo. O exame periodontal e a obtenção do índice INTPC demonstram uma diferença entre os portadores de câncer com 76% dos casos evidenciando doença periodontal avançada com presença de bolsas periodontais acima de 6mm. Em contrapartida, no grupo controle, 10% dos pacientes apresentavam esse mesmo grau da doença.
Em relação ao número de dentes perdidos, obturados e cariados, não foram observadas diferenças significativas, com semelhanças no exame clínico das peças dentárias. O uso de prótese em ambos os grupos observados também apresentou resultados semelhantes.
Em relação ao número de escovações dentárias diárias, a maioria dos indivíduos (100% em portadores de câncer e 92% em controles) realizava até duas escovações/dia, em ambos os grupos de estudo. Quanto ao uso de enxaguatório e fio dental pela população estudada, foi observado que nenhum indivíduo, independente do grupo, utilizava meios acessórios de higiene bucal.
DISCUSSÃO
Investigações epidemiológicas têm mostrado que os hábitos de fumo e álcool são os principais fatores de risco para o câncer na cavidade oral10. Entretanto, alguns aspectos como a má condição bucal, próteses mal adaptadas, condição econômica, dieta e condição periodontal também podem participar como coadjuvantes no desenvolvimento do câncer oral e de orofaringe12. Em estudo de pacientes renais crônicos sob hemodiálise, determinou-se que idade, diabetes, tabagismo e níveis de albumina estavam independentemente associados à severidade da periodontite13.
A associação entre o tabagismo, consumo de álcool e má condição bucal aumenta, significativamente, o risco de desenvolvimento de câncer. O risco de câncer oral em indivíduos do gênero masculino com essas três características foi 7,7 vezes maior do que daqueles sem nenhuma delas14.
A combinação de vários fatores, como hábitos pessoais, atividade profissional e região onde o indivíduo habita, quando em associação com consumo de tabaco, álcool e má higiene bucal são considerados condições favoráveis ao aparecimento do câncer da cavidade oral15.
Em um estudo caso-controle de câncer oral, o número de perdas dentais e outros aspectos relacionados ao cuidado dental eram semelhantes, mas a condição geral da boca, indicada pela presença de sangramento gengival, cálculos dentais e irritação da mucosa era pior em casos de pacientes com câncer oral do que no grupo controle16.
Os resultados obtidos no presente estudo indicam uma semelhança na condição de conservação dos dentes, evidenciada pela ausência de diferença no índice CPOD dos dois grupos. Os resultados tornam também evidente que as duas populações observadas não apresentavam cuidados com a higiene oral como evidenciados pela ausência de uso regular de fio dental, enxaguatórios e número reduzido de escovações diárias (menos de três), o que foi semelhante a outros resultados12.
Os mecanismos de lesão celular, decorrentes da dentição pobre, traumas conseqüentes à má formação dental parcial ou total, dentes lascados ou quebrados e da falta de higiene podem estar associados à continuidade de transformações necessárias para a instalação do câncer oral17. No entanto, a natureza da relação com as variáveis dentais é difícil de ser comprovada, pois existe uma sobreposição com outros maus hábitos de vida que são determinantes, como álcool, tabaco, dieta, bem como condições sócio-econômicas e culturais18.
Algumas características da saúde bucal, como lesões causadas por próteses dentárias mal adaptadas e a baixa freqüência na escovação dental podem estar associadas ao câncer do trato aéreo superior17. Cabe salientar que o uso de prótese dentária em si não está associado com o risco19.
Em relação aos tecidos periodontais, pode-se verificar pelos resultados que seu estado, nos pacientes com câncer, apresentava-se em piores condições do que no grupo controle. Em um estudo caso-controle, envolvendo 100 pacientes com carcinoma espinocelular do trato aerodigestivo superior e 214 sem nenhuma doença tumoral conhecidas, demonstrou-se que, nos pacientes com tumores, a higiene oral e a condição bucal foram piores, com freqüência de visitas a dentistas e escovação dentárias significativamente menores do que nos indivíduos controles. A presença de cálculo e bolsas periodontais de 3mm ou mais foram encontrados em 40,9% dos pacientes com tumores e em 22% dos demais20, corroborando os achados do presente estudo.
Quanto à idade dos participantes, com o passar dos anos, os tecidos periodontais passam a apresentar modificações no epitélio escamoso estratificado que recobre a cavidade bucal, tornando-os mais finos, perdendo a elasticidade e evoluindo para um estado atrófico. A defesa imunológica local altera-se, aumentando o risco para trauma e infecção. A mucosa oral torna-se um sítio comum para doenças inflamatórias ulcerativas, infecções e tumores21.
A doença periodontal é causada por uma infecção crônica induzida por uma reação inflamatória que leva a um colapso dos tecidos de suporte do dente. A manutenção do equilíbrio entre o sistema de defesa do hospedeiro e os microorganismos no sulco gengival é essencial para preservar a saúde. Apoptose e proliferação são fenômenos importantes para regulação dessas atividades e a perturbação desse sistema muitas vezes está associada a doenças como câncer, SIDA e artrite reumatóide22.
Não é possível atribuir uma associação causal significativa entre o uso diário de enxaguatório e o câncer oral23. No grupo estudado, a avaliação do uso de enxaguatório, justificada pela possibilidade de aumento do risco, pela presença de álcool na composição de alguns produtos disponíveis no mercado24 não logrou mostrar alterações, visto que a totalidade dos entrevistados não utilizava esse recurso de higiene.
O melhor meio de combater o câncer oral é a prevenção, através do diagnóstico precoce e da tentativa de eliminação dos fatores de risco. O insucesso observado nos programas de redução do uso de álcool e tabaco justifica que outros fatores coadjuvantes sejam avaliados e, na medida do possível, modificados. A educação em saúde, através de programas que visem à valorização das avaliações periódicas e a importância do exame da cavidade oral são as maiores armas disponíveis para diminuir a alta ocorrência do câncer oral em nossa comunidade25.
CONCLUSÃO
Os resultados permitem concluir pela presença de associação de doença periodontal e câncer da boca e orofaringe, com maior severidade observada em portadores de câncer e sem relação com hábitos de higiene ou condição dentária. Estudos longitudinais e com inclusão de outras variáveis, como estadiamento, estado nutricional e hábitos, devem ser realizados para que esta associação fique mais evidente e possa ser determinado o papel da doença periodontal como fator de risco para o câncer.
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1 Mestre pelo Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis, HOSPHEL, São Paulo, Especialista em Periodontia.
2 Especialista em Implantodontia, Mestrando Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis, HOSPHEL, São Paulo.
3 Especialista em Implantodontia, Mestrando Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis, HOSPHEL, São Paulo.
4 Doutor em Medicina pelo Curso de Pós-Graduação em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da UNIFESP - Escola Paulista de Medicina, Médico.
5 Docente Livre pelo Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis, HOSPHEL, São Paulo. Serviço de Estomatologia e Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Complexo Hospitalar Heliópolis, HOSPHEL, São Paulo, e Organização Civil de Interesse Público "Associação Jovens Dentistas", São Bernardo do Campo.
Endereço para correspondência: Rua Municipal 516 apto. 151 São Bernardo do Campo SP 09710-212.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 17 de abril de 2007. cod. 4453
Artigo aceito em 27 de junho de 2007.