Versão Inglês

Ano:  2008  Vol. 74   Ed. 3  - Maio - Junho - (24º)

Seção: Relato de Caso

Páginas: 462 a 466

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Amiloidose com múltiplos focos em trato aéreo-digestivo superior: relato de caso e revisão de literatura

Multiple-sited amyloidosis in the upper aerodigestive tract: case report and literature review

Autor(es): Gustavo Haruo Passerotti1, Marcello Caniello2, Adriana Hachiya3, Patrícia P. Santoro4, Rui Imamura5, Domingos H. Tsuji6

Palavras-chave: amiloidose, anel de waldeyer, disfagia, laringe, rinofaringe

Keywords: amyloidosis, waldeyer's ring, dysphagia, larynx, rhinopharinx

Resumo:
Há na literatura inúmeras descrições de amiloidose limitada à laringe, sendo que esta afecção corresponde a cerca de 1% dos tumores benignos da laringe. Entretanto, há somente três relatos de amiloidose acometendo a região do anel de Waldeyer. Descreveremos um raro caso de amiloidose em que há acometimento de sítios distintos do trato aéreo-digestivo superior: pilar amigdaliano, rinofaringe, supraglote e glote, sem continuidade aparente do tecido amilóide. Abordaremos, também, o seguimento pós-operatório com uma disfagia grave.

Abstract:
There are some reports of localized amyloidosis in the larynx, an entity that corresponds to one percent of all benign tumors of this region. However, there are only two cases of amyloidosis in the Waldeyer's ring 6, 13, 14. We hereby describe a rare case of amyloidosis in areas not associated with the upper aero-digestive tract: tonsil pillar, rhinopharynx, supraglottis and glottis, without visible continuity of amyloid tissue. We will also discuss post-operative follow up with severe dysphagia.

INTRODUÇÃO E REVISÃO DE LITERATURA

A amiloidose laríngea corresponde a cerca de 1% dos tumores benignos de laringe, acomete 3 homens para 1 mulher e tem maior incidência na 5a década de vida2. Geralmente é localizada, primária (idiopática), do tipo AL e, muito raramente, é acompanhada de afecção sistêmica2.

Pode se manifestar como uma doença sistêmica ou limitada a certos órgãos resultante da deposição extracelular de proteína amilóide.

Há cerca de 20 tipos diferentes de proteína amilóide, porém apesar da diferenças tênues na seqüência de aminoácidos, todas apresentam orientação espacial semelhante (b-pregueadas), conferindo-lhes a propriedade de serem fibrosas, insolúveis e resistentes a proteólise.

Podem ser afecções primárias (com acometimento localizado ou sistêmico), secundárias a processos infecciosos como tuberculose, lepra e osteomielite ou a processos inflamatórios crônicos como artrite reumatóide (acometimento tanto sistêmico como localizado) ou, ainda, a processos pós-hemodiálise como na amiloidose por b2 microglobulina.

Há também a classificação segundo o tipo de proteína amilóide como: de cadeia leve (AL), do tipo A (AA), do tipo b2 microglobulina (Ab2M), de cadeia pesada (AH), entre muitas outras.

As classificações se superpõem. Por exemplo, a AL compreende a primária idiopática em que há aumento monoclonal de gglobulina sem causa aparente e compreende também a secundária a mieloma múltiplo. Tem pior prognóstico, pois se relaciona mais com afecções sistêmicas, e dentre as mais sérias está a cardíaca, raramente acometido no tipo AA. Note que, apesar de a amiloidose laríngea ser do tipo AL, geralmente é localizada.

O relato a seguir contém um caso peculiar em, principalmente, dois aspectos: a raridade e multiplicidade da localização e, também, a dificuldade na condução da disfagia grave que o caracterizou.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 55 anos, branca, com queixa de rouquidão flutuante, desconforto respiratório leve e disfagia principalmente para grãos há 8 anos com piora importante nos últimos 3 meses. Trazia consigo um resultado de exame anatomopatológico de outro serviço sugerindo amiloidose. Apresentava como comorbidades hipertensão arterial sistêmica, angina e epigastralgia.

O exame fibronasofaringolaringoscópico mostrou múltiplas massas: em região de rinofaringe, pilar amigdaliano posterior, face laríngea da epiglote, em bandas ventriculares, em pregas ariepiglóticas, em prega vocal direita (Figuras 1, 2 e 3). A tomografia computadorizada da região mostrou tais lesões de maneira localizada. Foi realizada investigação para descartar doença sistêmica, sendo que apresentava funções renal (clearance e proteinúria) e hepática normais, glicemia, hemograma, eletroforese de proteínas, além de fator reumatóide, fator anti-núcleo e PPD normais. Endoscopia digestiva resultou normal. Realizou Rx tórax que mostrou área cardíaca aumentada às custas de ventrículo esquerdo (VE). Ecocardiograma revelou regurgitamento mitral e comprometimento difuso de VE de grau moderado. ECG mostrava um bloqueio de ramo esquerdo. Foi avaliada por um cardiologista que constatou doença coronariana, a qual poderia ser tratada após biópsia excisional das massas amilóides via endoscopia nasal e laringoscopia de suspensão.


Figura 1. Aspecto de massa amilóide em rinofaringe à direita.


Figura 2. Aspecto da epiglote infiltrada pela substância amilóide.


Figura 3. Amiloidose acometendo prega vocal direita.



A paciente foi então levada à sala de cirurgia em que a massa da rinofaringe foi retirada parcialmente com pinça cortante, para que se evitasse uma grande área cruenta e posterior estenose local. As massas do pilar amigdaliano posterior, da epiglote, da banda ventricular direita, da prega vocal direita foram retiradas a laser. Foi realizada também uma traqueostomia para garantia de via aérea.

No 2º dia pós-operatório (2º PO) foi observada saída de resíduos de alimentos pela cânula traqueal. Optou-se, pois, por dieta via sonda nasoenteral (SNE). Evoluiu com broncopneumonia por aspiração passando a receber antibioticoterapia adequada. No 7º PO foi realizado novo teste e foi verificada a saída de alimentos pela cânula traqueal. Como a mesma encontrava-se eupnéica com a cânula arrolhada, optou-se por retirá-la. Entretanto, mesmo recebendo dieta por SNE, mantinha quadro de aspiração. Realizada a avaliação funcional da deglutição ou videoendoscopia da deglutição (VED) com oferecimento de líquido engrossado e pastoso por via oral, sendo observado presença de resíduos após a deglutição, penetração laríngea do alimento durante a deglutição, seguida de aspiração laringotraqueal e reflexo de tosse. Foi diagnosticada uma disfagia orofaríngea mecânica grave, com enrijecimento de toda a estrutura supraglótica, comprometendo a eficácia dos mecanismos de proteção laríngea durante a deglutição (retro-versão da epiglote e encurtamento da prega ariepiglótica, principalmente), propiciando a aspiração laringotraqueal do alimento. Paciente foi orientada a realizar acompanhamento fonoaudiológico para reabilitação da deglutição, com ênfase para exercitar a manobra supraglótica (prende a respiração, engole, tosse e engole novamente) e deglutição forçada.

Paciente vinha evoluindo bem no pós-operatório, com início de alimentação por boca sob gerenciamento fonoterápico, deglutindo alimentos pastosos, ainda evitando líquidos e sólidos. Contudo, apresentou quadro de insuficiência respiratória aguda, sendo necessário realizar traqueostomia de urgência, levando a uma piora importante de sua deglutição, voltando para a dieta exclusivamente por SNE. Encaminhada para nova VED após 1 mês da realização da traqueostomia de urgência, ainda com dieta exclusiva por SNE. Testados alimentos nas consistências de líquido, líquido engrossado e pastoso, com ocorrência de penetração em todas as consistências (Figura 4). Realizada oferta de alimento com visualização pela subglote, sendo observada aspiração de líquido, com boa resposta às manobras supraglóticas (Figura 5). Não foram observadas aspirações de líquido engrossado ou pastoso. Diagnosticada disfagia orofaríngea grave para líquidos. Orientada a intensificar a fonoterapia com realização de sessões diárias, visando sacar SNE.


Figura 4. Exame de videoendoscopia da deglutição evidencia penetração do corante em vestíbulo laríngeo.


Figura 5. Exame de videoendoscopia da deglutição sob visão subglótica confirma a aspiração laringotraqueal de líquido.



Paciente seguiu adequadamente as orientações, bastante colaborativa durante as sessões e apresentando uma boa evolução. Realizada nova VED após uma semana, inteiramente sob visão subglótica, uma vez que a visão tradicional não permitia adequada avaliação da fenda glótica e, consequentemente, da ocorrência da aspiração laringotraqueal. Não foram observados episódios de aspiração com nenhuma das consistências e quantidades testadas durante a avaliação, apesar de ser visualizado contraste no vestíbulo da laringe, acima do nível das pregas vocais. Diagnosticada disfagia orofaríngea moderada, com boa adaptação pela manobra supraglótica, o que possibilitou a retirada da SNE e a manutenção da dieta exclusivamente por boca.


DISCUSSÃO

Na região da cabeça e pescoço, a amiloidose pode acometer o nariz3, seios paranasais3,4, nasofaringe, orofaringe, amigdalas5,6, cavidade oral, língua, árvore traqueobrônquica e laringe. A laringe é o sítio mais comumente acometido, sendo a localização da lesão, segundo Mitrani7, em ordem decrescente de freqüência: falsas pregas (55%), ventrículo laríngeo (36%), espaço subglótico (36%), pregas vocais (27%), pregas ariepiglóticas (23%) e comissura anterior (14%). Macroscopicamente pode ser um edema subepitelial difuso sem alteração mucosa (mais comum) ou nodular (menos freqüente)1,2.

A amiloidose do trato aerodigestivo superior é, geralmente, localizada1,8, entretanto o acometimento da língua2,9 é exceção e está muito associada à doença sistêmica.

É freqüente ocorrer múltiplos focos laríngeos ou, ainda, do trato aerodigestivo1,9,10, sendo a língua e a traquéia os mais freqüentemente associados à amiloidose laríngea e, nesses casos, acometimento sistêmico também é mais comum.

É imperativo que o otorrinolaringologista, frente a um diagnóstico de amiloidose de trato aéreo-digestivo, tenha o conhecimento de que investigações sistêmicas se fazem necessárias. Para se investigar doenças sistêmicas, necessitamos de exames que permitam avaliar a função dos possíveis órgãos-alvo com rins, fígado, trato respiratório inferior, trato digestivo, coração, além de exames que rastreiem doenças sistêmicas crônicas como mieloma múltiplo, tuberculose, artrite reumatóide e tuberculose. A biópsia por agulha fina da gordura abdominal subcutânea é o exame de escolha para se detectar amiloidose sistêmica11.

Nossa paciente apresentava sintomas cardíacos, entretanto todos os exames descartaram que a etiologia seria a infiltração amilóide no coração, e sim, provavelmente, a uma doença coronariana secundária a hipertensão arterial sistêmica crônica.

Os sintomas da nossa paciente foram disfonia, dispnéia e disfagia. A disfagia já acompanhava a paciente, entretanto se agravou no pós operatório, provavelmente, devido a fibrose cicatricial pós-operatória com enrijecimento e alteração dos mecanismos de proteção supraglóticos, e também pela presença da cânula de traqueostomia que impede a movimentação mecânica de elevação e anteriorização efetiva da laringe no controle da disfagia.

Na literatura, o sintoma mais relatado em casos de amiloidose laríngea é a rouquidão1, sendo a disfagia12, comum nos casos de macroglossia amiloidótica, raramente descrita2,5.

Nosso caso se trata do 4o caso relatado de amiloidose no anel de Waldeyer. Beiser6 descreveu um caso de amiloidose de região de base de língua, amígdalas e rinofaringe. Simpson descreveu caso de amiloidose exclusivamente em rinofaringe acarretando disfunção tubárea13. Green14 relatou amiloidose que recorria em diversos sítios distintos como amígdalas, base de língua, rinofaringe e supraglote. Estamos, portanto, diante do primeiro relato de caso em que há acometimento concomitante de estruturas da rinofaringe e da laringe.

O diagnóstico é realizado através da biópsia em órgão suspeito (corante vermelho Congo sob microscopia de luz polarizante). Pode-se ainda confirmar com teste da proteólise por permanganato de potássio negativo.

No caso de amiloidose localizada e sintomática, como geralmente ocorre nos casos de amiloidose laríngea, deve-se realizar a exérese da lesão e iniciar acompanhamento periódico uma vez que recidiva local ou em outros sítios é freqüente1,14. Além disso, deve-se continuar realizando rastreamento para afecções sistêmicas.

O tratamento é ressecção cirúrgica. Assim como no nosso, alguns casos a traqueotomia é necessária para garantia de via aérea1.

O prognóstico de amiloidose laríngea é excelente se as lesões forem completamente retiradas. Em determinados casos (não sintomáticos) pode-se observar a massa, isto é, acompanhamento clínico.


COMENTÁRIOS FINAIS

A amiloidose laríngea é um diagnóstico diferencial entre as massas e lesões no trato aéreo-digestivo superior e sua localização pode ser diversa e, em algumas vezes, múltipla. Devemos lembrar ainda de que a mesma pode ser conseqüência ou ter relação com algumas doenças sistêmicas, as quais devem ser tratadas para se evitar o avanço da amiloidose em caráter sistêmico. A disfagia é um sintoma que, apesar de raro, pode fazer parte do quadro de amiloidose, muitas vezes indicando uma falha na competência laríngea contra aspiração laringotraqueal.


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14. Green KMJ, Morris DP, Pitt M, Small M. Amyloidosis of Waldeyer`s ring and larynx. J Laryng Otol 2000;114: 296-8.









1 Residente.
2 Médico residente.
3 Médica Preceptora.
4 Doutora, Médica Colaboradora.
5 Doutor, Médico assistente.
6 Professor livre-docente.
Trabalho realizado na Divisão de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Gustavo Haruo Passerotti - R. Dr. Ovídio Pires Campos 171 ap204 São Paulo SP 05403-010.
Tel. (0xx11)3083-7296 Fax: (0xx11)5584-6357 - E-mail: gpasserotti@yahoo.com
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 20 de maio de 2005. cod. 350.
Artigo aceito em 16 de setembro de 2005.

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