Ano: 2008 Vol. 74 Ed. 2 - Março - Abril - (24º)
Seção: Relato de Caso
Páginas: 303 a 306
Otosclerose infantil: relato de caso e revisão da literatura
Pediatric otosclerosis: Case report and literature review
Autor(es): Raquel Salomone 1, Paulo Emmanuel Riskalla 2, Andy de Oliveira Vicente 3, Maria Carmela Cundari Boccalini 4, Adriana Gonzaga Chaves 5, Renata Lopes 6, Gilberto Bolivar Felin Filho 7
Palavras-chave: infância, otospongiose, perda auditiva
Keywords: childhood, otospongiosis, hearing loss
Resumo:
A otospongiose é uma osteodistrofia do osso temporal caracterizada pela reabsorção e neoformação óssea desordenada. Clinicamente, caracteriza-se por disacusia condutiva, neurossensorial, e/ou mista, progressiva e zumbidos. O início dos sintomas ocorre entre 30 e 40 anos de idade sendo rara sua manifestação na infância. Descrevemos o caso de um paciente de 11 anos de idade, com quadro de hipoacusia unilateral progressiva há 5 anos. O exame otorrinolaringológico revelou mancha rubra de Schwartze em orelha esquerda. A audiometria, imitanciometria e a tomografia computadorizada demonstraram características sugestivas de otospongiose. Realizamos uma revisão dos aspectos clínicos, diagnósticos e da conduta terapêutica da otospongiose na infância.
Abstract:
Otospongiosis is an osteodystrophy of the temporal bone, characterized by disordered neoformation and deposition of bone, characterized by the presence of a progressive conductive, sensorineural or mixed hearing loss and tinnitus. Typically, otospongiosis presents as a slowly progressive conductive hearing loss in the third to fourth decade of life. Uncommonly children and adolescents may also have conductive or sensorineural hearing loss caused by otosclerosis. We describe a case of an 11-year-old patient, with progressive unilateral conductive hearing loss for 5 years. The otoscopic examination revealed a positive Schwartz's sign in the left ear. Audiometry, impedanciometry and CT scan showed characteristics that suggested otospongiosis. We reviewed clinical aspects, diagnosis and the therapeutic approach for otospongiosis in children.
INTRODUÇÃO
A otospongiose é uma osteodistrofia do osso temporal caracterizada por reabsorção e neoformação óssea desordenadas, acometendo indivíduos geneticamente predispostos1. Todas as regiões da cápsula ótica podem ser acometidas, sendo a região próxima da fissura anti-fenestram (anterior à janela oval) o local mais comumente envolvido1,2.
Apresenta incidência de 7 a 10% na população geral, iniciando-se habitualmente na 3ª ou 4ª décadas de vida3, com predomínio na raça caucasiana e no sexo feminino, em uma proporção de 2:1. A prevalência varia de 3 a 12% na forma histológica (assintomática) e 0,1 a 1% na forma clínica (sintomática)1.
É de caráter autossômico dominante com penetrância de 20 a 40%3-5. Em 70 a 90% dos casos, a doença manifesta-se bilateralmente, sendo mais prevalente em caucasianos1,6. Na infância, é uma doença pouco freqüente e de difícil diagnóstico.
Clinicamente, a otospongiose caracteriza-se por disacusia condutiva e/ou mista progressiva e pela presença de zumbidos. Eventualmente, pode ocorrer perda auditiva neurossensorial, plenitude auricular e vertigem. Nos casos mais severos, pode ocorrer quadro semelhante à hidropisia endolinfática. O início dos sintomas auditivos ocorre habitualmente entre 20 e 30 anos.
O diagnóstico é realizado através da anamnese, exame físico e exames complementares como a audiometria tonal, vocal e imitanciometria. Os exames de imagem também podem fornecer informações diagnósticas relevantes, sendo a tomografia computadorizada (TC) o exame de eleição.
O tratamento pode ser clínico, através de medicamentos (antienzimáticos ou anti-remodeladores ósseos) ou cirúrgico (estapedotomia ou estapedectomia). Os aparelhos de amplificação sonora individual (AASI) representam outra opção terapêutica, principalmente em pacientes com contra indicação cirúrgica.
O objetivo desse estudo é relatar um caso de otospongiose infantil, além de realizar uma revisão da literatura sobre o assunto.
REVISÃO DE LITERATURA
Embora a otospongiose seja considerada uma doença de adultos jovens, o início da perda auditiva pode ocorrer nos primeiros anos de vida10. Niedermeyer et al. relataram manifestações da doença em crianças menores de 6 anos1,6. Guild et al. evidenciaram focos otoscleróticos em 0,6% de ossos temporais de crianças menores que 5 anos e em 4% de crianças entre 5 e 18 anos4. Estatísticas norte-americanas apontam a otospongiose como a principal causa de surdez adquirida, ocorrendo em 15 milhões de pessoas5. Robinson revisou 4014 casos de estapedotomias e verificou que, em 15% dos analisados, a perda auditiva havia se iniciado antes dos 18 anos de idade10,11.
Com o advento da tomografia computadorizada de alta resolução de ossos temporais, é possível detectar anormalidades na região da janela oval ou próximo a ela, em 90% dos casos comprovados cirurgicamente6-8, sendo esta considerada o exame de eleição. Em muitos casos, o diagnóstico definitivo somente será possível através do estudo histológico do osso temporal (post-mortem)1,9.
Os principais diagnósticos diferenciais são otite média com efusão, fixação congênita do estribo, desarticulação de cadeia ossicular, timpanosclerose, osteogênese imperfeita, doença de Paget e colesteatoma congênito6.
APRESENTAÇÃO DE CASO CLÍNICO
Paciente do sexo masculino, 11 anos, branco, compareceu ao nosso serviço com queixa de hipoacusia progressiva unilateral há 5 anos, associada a zumbidos (moderados, intermitentes e tipo apito), sem sintomas vestibulares. Refere episódios repetitivos de otites médias com efusão, refratários ao tratamento clínico usual, há 5 anos. Possui história familiar de otospongiose (mãe e avó materna).
Ao exame otorrinolaringológico, observamos mancha avermelhada vista por transparência na membrana timpânica na região do promontório, em orelha esquerda (mancha rubra de Schwartze) e ausência de alteração em orelha direita. A audiometria tonal apresentou disacusia condutiva leve em orelha esquerda e os limiares auditivos na orelha direita dentro dos padrões de normalidade. A imitanciometria revelou diminuição da complacência da membrana timpânica esquerda e ausência de reflexo estapediano bilateralmente (Figura 1).
Figura 1. Audiometria tonal evidenciando disacusia condutiva leve em orelha esquerda. Imitanciometria mostrando diminuição da complacência da membrana timpânica esquerda e ausência de reflexo estapediano bilateralmente.
A tomografia computadorizada de ossos temporais evidenciou foco otosclerótico anterior em janela oval direita e esquerda (Figuras 2 e 3), foco pericoclear sem envolvimento endosteal da cóclea bilateralmente e espessamento da platina e estribo à esquerda (Figura 4).
Figura 2. Tomografia computadorizada (TC) de ossos temporais, cortes axiais ao nível da janela redonda, evidenciando hipodensidade pericoclear (foco otosclerótico) (setas azuis).
Figura 3. TC de ossos temporais em cortes axiais, evidenciando pequeno foco de hipodensidade na região anterior à janela oval (setas verdes) com espessamento da platina do estribo (setas azuis).
Figura 4. TC de ossos temporais em cortes coronais na janela oval, demonstrando espessamento da platina do estribo (setas vermelhas).
O quadro clínico associado à presença da mancha rubra de Schwartze e os achados tomográficos sugerem o diagnóstico de otospongiose em atividade.
Foi instituído o tratamento medicamentoso com fluoreto de sódio, 10mg por dia, porém o paciente apresentou farmacodermia sendo necessária a suspensão do medicamento.
A opção cirúrgica (estapedotomia) foi sugerida, assim como a utilização de aparelho auditivo. Optamos pela conduta expectante com acompanhamento ambulatorial programado a cada seis meses com a realização de audiometria tonal, vocal e imitanciometria em cada retorno.
DISCUSSÃO
As perdas auditivas condutivas são freqüentes na infância, geralmente secundárias às otites médias agudas ou crônicas, com ou sem efusão4,10. Outras causas de disacusia condutiva, de natureza congênita ou adquirida como a otospongiose e a timpanosclerose, geralmente são subdiagnosticadas ou diagnosticadas tardiamente, levando a um atraso do desenvolvimento da linguagem4,10.
São de fundamental importância para o diagnóstico de otospongiose a anamnese completa (antecedentes familiares e pessoais de disacusia), exame otorrinolaringológico e a realização de exames complementares.
Em relação a nosso paciente, observamos que a TC de ossos temporais contribuiu de forma relevante no diagnóstico, já que o quadro clínico e as audiometrias seriadas sugeriam uma provável otite média com efusão.
As opções terapêuticas para a otospongiose incluem os medicamentos antienzimáticos ou moderadores da reabsorção óssea, aparelhos de amplificação sonora individual e cirurgia. Em menores de 5 anos a intervenção cirúrgica não é recomendada, sendo a melhor opção a utilização de AASI4. Após os 5 anos de idade, a estapedotomia é controversa10. Alguns autores advogam-na precocemente, enquanto outros preconizam a conduta expectante até a adolescência10,12. Segundo Cole, House e Robinson, a estapedotomia é uma opção terapêutica segura e efetiva em pacientes pediátricos6,11,13,14. Diversos estudos têm demonstrado que a estapedotomia é capaz de melhorar a disacusia condutiva em até 90% desse pacientes3,10,12,15.
Nosso paciente foi submetido, inicialmente, ao tratamento com fluoreto de sódio 10mg por dia, sendo o mesmo suspenso após dois dias de uso devido à reação de hipersensibilidade cutânea. A utilização de alendronato foi proscrita em função da idade do paciente e dos potenciais riscos ao desenvolvimento ósseo. Após estudo detalhado do caso, juntamente com os familiares, optamos pela conduta expectante, com acompanhamento ambulatorial.
COMENTÁRIOS FINAIS
Alto índice de suspeição é elemento fundamental para que se realize o diagnóstico precoce de otosclerose infantil, possibilitando o acompanhamento da evolução da doença e instituindo a terapêutica mais propícia. Em nosso estudo, observamos que a tomografia computadorizada de ossos temporais foi de extrema importância na definição diagnóstica, já que os demais exames sugeriam otite média com efusão persistente e/ ou refratária à medicação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Vicente AO. A Tomografia Computadorizada no Diagnóstico e na Abordagem Terapêutica da Otosclerose; 2003, Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina, São Paulo; 2003; 1-2, 43-45.
2. Huang TS, Lee FP, Chen LK. Radiographically confirmed Cochlear Otospongiosis among the Chinese. Ann Otol Rhinol Laryngol 1991;100:232-5.
3. Millman B, Giddings NA, Cole JM. Long-Term Follow-up of Stapedectomy in children and adolescents. Otolaryngol Head Neck Surg 1996;115:78-81.
4. Briggs RJS, Luxford WM. Correction of conductive hearing loss in children: Pediatric Otology 1994;27:607-20.
5. Niedermeyer HP, Arnold W, Schwub D, Busch R, Wiest I, Sedlmeier R. Shift of the distribution of age in patients with Otosclerosis. Acta Otolaryngol 2001;121:197-9.
6. Cruz OLM, Costa SS. In: Cruz OLM, Costa SS. Otites Médias - Aspectos Gerais 114. Otologia Clinica e Cirúrgica. Rio de Janeiro: Revinter; 2000.
7. Declau F, Van Spaendonck, Timmermans JP, Michael L, Liang J, Qiu JP, Van Heyning. Prevalence of Otosclerosis in an unselected series of temporal bones. Otol Neurotol 2001; 22:596-602.
8. Saunders JE, Derebery JM, Lo WWM. Magnetic resonance imaging of cochlear Otosclerosis. Ann Otol Rhinol Laryngol 1995;104:826-9.
9. Goh JPN, Chan LL, Tan TY.MRI of cochlear Otosclerosis. Brit J Radiol 2002;75(894):502-5.
10. Murphy TP, Wallis DL. Stapedectomy in the Pediatric Patient: Laryngoscope 1996;106:1415-8.
11. Robinson M. Juvenile Otosclerosis. A 20-year study. Ann Otol Rhinol Laryngol 1983;92:561-5.
12. Lippy WH, Burkey JM, Schuring AG, Rizer FM. Short and Long-term Results of Stapedectomy in children. Laryngoscope 1998;108:569-72.
13. Cole JM. Surgery for Otosclerosis in children. Laryngoscope 1982;92:859-62.
14. House JH, Sheehy JC, Antunez JC. Stapedectomy in children. Laryngoscope 1980;90:1804-9.
15. De la Cruz A, Angeli S, Slattery WH. Stapedectomy in children. Otolaryngol Head Neck Surg 1999;120:487-92.
1 Médica residente de Otorrinolaringologia do Hospital CEMA.
2 Mestre Professor Doutor em Otorrinolaringologia pela UNIFESP/EPM, Coordenador e preceptor da residência médica de Otorrinolaringologia do Hospital CEMA.
3 Mestre e Doutorando em Otorrinolaringologia pela UNIFESP/EPM, Preceptor da residência médica de Otorrinolaringologia do Hospital CEMA.
4 Médica Otorrinolaringologista, Preceptora das residências médicas de Otorrinolaringologia dos Hospitais CEMA e Servidor Público Municipal.
5 Pós-Graduanda.
6 Médica Otorrinolaringologista.
7 Médico Residente de Otorrinolaringologia.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 14 de março de 2005. cod. 156
Artigo aceito em 22 de março de 2005.