Ano: 2008 Vol. 74 Ed. 1 - Janeiro - Fevereiro - (21º)
Seção: Artigo de Revisão
Páginas: 132 a 136
Eletrococleografia extratimpânica na neuropatia/dessincronia auditiva
Extratympanic electrocochleography in the diagnosis of auditory neuropathy/auditory dyssynchrony
Autor(es): Adriana Ribeiro Tavares Anastasio 1, Kátia de Freitas Alvarenga 2, Orozimbo Alves Costa Filho 3
Palavras-chave: audiometria de resposta evocada, criança, perda auditiva, potenciais microfônicos cocleares.
Keywords: audiometry evoked response, child, hearing loss, cochlear microphonic potentials.
Resumo:
O potencial evocado auditivo de tronco encefálico (PEATE) vem sendo amplamente utilizado como método para avaliação da função coclear em indivíduos com diagnóstico de neuropatia/dessincronia auditiva (NA/DA). Na ausência das emissões otoacústicas, muitos casos de NA/DA foram diagnosticados pela presença do microfonismo coclear (MC) identificado no PEATE. Objetivo: Demonstrar a aplicabilidade clínica da eletrococleografia extratimpânica (Ecog-ET) no diagnóstico diferencial da NA/DA quando comparada ao PEATE. Material e Método: Uma criança com 4 anos de idade, com diagnóstico de NA/DA atendida no Centro de Pesquisas Audiológicas realizou a Ecog-ET com tone burst de 2000Hz nas polaridades de rarefação e condensação. Resultados: Ilustrou-se o registro da Ecog-ET. Com a utilização de protocolo apropriado, o MC pode ser evidenciado e confirmado na Ecog, com qualidade de registro superior ao obtido no PEATE. Conclusão: A Ecog-ET permitiu uma análise mais detalhada do MC quando comparada ao PEATE tendo, portanto aplicabilidade clínica na investigação da função coclear na NA/DA.
Abstract:
The brainstem auditory evoked potential (BAEP) is being extensively used as a method for the evaluation of cochlear function in individuals with diagnosis of auditory neuropathy/auditory dyssynchrony (AN/AD). In the absence of otoacoustic emissions, many cases of AN/AD have been diagnosed by the presence of CM identified in the BAEP. Aim: to demonstrate the clinical applicability of extratympanic electrocochleography (ET-Ecochg) in the differential diagnosis of AN/AD compared to the BAEP. Method: a 4-year-old child with a diagnosis of AN/AD seen at the Audiological Research Center was submitted to ET-Ecochg with a 2000 Hz tone burst in rarefaction and condensation polarities. Results: the ET-Ecochg exam was illustrated. Using an appropriate protocol, it was possible to demonstrate CM and to confirm it in the Ecochg, with a recording quality superior to that obtained in the BAEP. Conclusion: ET-Ecochg permitted a more detailed analysis of CM compared to the BAEP, thus showing clinical applicability for the investigation of cochlear function in AN/AD.
INTRODUÇÃO
Nos últimos 20 anos, a comunidade científica vem descrevendo pacientes com sintomatologia clínica semelhante, porém com uma grande variedade de terminologias para nomear tais sintomas, como Síndrome do Processamento do Tronco Cerebral, Disfunção Auditiva Central, Desordem da Sincronia Neural, Neuropatia Auditiva e, recentemente, Dessincronia Auditiva1,2.
O termo neuropatia auditiva foi utilizado pela primeira em uma publicação do ano de 19963, para classificar uma categoria de indivíduos possuidores de inúmeros sintomas auditivos, mas que tinham em comum o normal funcionamento da cóclea associado à alteração da função do nervo coclear.
Em 2001, alguns autores1 propuseram substituir o termo neuropatia auditiva por dessincronia auditiva, uma vez que nem sempre o nervo coclear estaria lesado e, semanticamente, a terminologia estaria inapropriada. Mas, mesmo com esta recomendação, os dois termos são utilizados em trabalhos científicos descrevendo pacientes com a mesma sintomatologia e, nos últimos anos surgiu uma terceira denominação, a neuropatia/ dessincronia auditiva (NA/DA)3-10.
Os portadores de NA/DA são indivíduos que podem ter desde limiares tonais dentro da normalidade, até uma perda auditiva profunda. Em geral, o problema é bilateral, mas há relatos na literatura de casos unilaterais. O problema pode ocorrer em indivíduos das mais diversas faixas etárias. A despeito do grau da perda auditiva, quando esta ocorre, as emissões otoacústicas (EOAs) e/ou o microfoniscmo coclear (MC) estão presentes. Os potenciais evocados auditivos de tronco encefálico (PEATE), assim como os reflexos dos músculos da orelha média e os reflexos olivococleares estão ausentes. A configuração do audiograma, nos casos em que é possível realizá-lo, pode variar desde uma curva plana a curvas ascendente, descendente ou até mesmo totalmente irregular, e os achados na maioria das vezes são incompatíveis com a dificuldade de compreensão de fala apresentada pelos indivíduos1,11-15.
O local da lesão na NA/DA é difícil de ser determinado, entretanto, a presença das EOAs e/ou do MC indicam que as células ciliadas externas (CCE) estão funcionando. Porém, a onda I no PEATE, gerada pela porção mais periférica do nervo coclear envolvido por mielina periférica, é ausente nesta desordem auditiva. Os sintomas então apontam para um distúrbio que pode estar acometendo tanto as células ciliadas internas (CCI), a junção sináptica entre as CCI e o nervo auditivo, quanto porções periféricas do nervo coclear16-18.
Embora os fatores de risco para a NA/DA não estejam claramente compreendidos, algumas crianças têm história de intercorrências neonatais, entre elas, prematuridade, baixo peso, anóxia e hiperbilirrubinemia19.
A presença das EOAs na ausência do PEATE é um sinal patognomônico da NA/DA, porém, em alguns casos, há a possibilidade do desaparecimento do registro das EOAs. Então, dependendo do momento em que o diagnóstico inicial é realizado, os achados das EOAs associados à ausência do PEATE não são determinantes para a definição e diagnóstico da NA/DA. Sendo assim, a presença do MC passa a ser o achado determinante no diagnóstico diferencial desta síndrome1,20,21. Alguns autores propuseram que a NA/DA fosse definida como a ausência ou anormalidade do PEATE, começando com a onda I na presença de EOAs e/ou MC20.
Nos últimos 10 anos, com as inúmeras publicações a respeito da neuropatia auditiva, o MC voltou a ser foco de interesse dos pesquisadores e este potencial coclear passou a ser analisado com mais cuidado nestes casos.
Há relatos na literatura de que o MC nestes indivíduos é mais proeminente e persiste por diversos milissegundos à estimulação pelo clique, podendo durar de 4 a 6 ms22, fato este não observado em indivíduos normais, além de ser anormalmente aumentado em amplitude23-26.
A Eletrococleografia (Ecog), cuja aplicação clínica teve maior impacto na identificação e monitoramento da doença de Ménière27-29 é o procedimento clínico mais indicado para analisar o MC, uma vez que avalia objetivamente os potenciais cocleares30,31.
Recentemente, o desenvolvimento de uma variedade de eletrodos não-invasivos tem sido responsável pelo ressurgimento do interesse na aplicação clínica da Ecog27,32, e embora a eletrococleografia transtimpânica (Ecog-TT) permita registros com maior amplitude e menor variabilidade teste-reteste, tem a desvantagem de ser um procedimento invasivo.
Neste contexto, a eletrococleografia extratimpânica (Ecog-ET) teria maior aplicabilidade na prática clínica e possibilitaria complementar o diagnóstico audiológico e aprofundar os conhecimentos sobre o funcionamento coclear na NA/DA.
Mesmo a Ecog sendo o procedimento mais adequado para avaliar o funcionamento coclear, e, portanto, auxiliar na identificação do MC e assim, no diagnóstico da NA/DA, há pouca informação na literatura sobre a aplicação deste procedimento nesta desordem específica4,5,33.
Para estes casos, o PEATE vem sendo amplamente utilizado na identificação do MC, e as justificativas para tal são que, com a utilização dos fones de inserção, há o cancelamento do extenso campo magnético gerado pelos fones supra-aurais que obscureciam os potenciais cocleares e algumas vezes até o potencial de ação do nervo, além do que registrando os potenciais evocados auditivos com estímulos acústicos nas polaridades negativa e positiva, pela comparação dos resultados, poderiam constatar a presença do MC, à medida que o MC é dependente da polaridade do estímulo que o provocou, ao contrário do PEATE1,20,25,34.
Para assegurar que o registro obtido trata-se de respostas neurofisiológicas auditivas e não de artefatos elétricos, alguns pesquisadores bloqueiam o tubo plástico do fone de inserção para realmente constatarem que o registro foi dependente da estimulação acústica, e assim confirmarem a presença do MC3,20,24.
Embora a literatura especializada saliente que o funcionamento coclear é normal na NA/DA3,13,34, analisar o MC é extremamente importante nestes casos, uma vez que diversos achados a respeito deste potencial coclear em sujeitos com NA/DA parecem demonstrar um funcionamento anormal da cóclea23-26.
Utilizar o PEATE para identificar e analisar o MC não parece ser o procedimento mais adequado, pois não permite uma análise cuidadosa deste potencial coclear, uma vez que, na maioria das vezes, o estímulo utilizado é o clique, e para melhor análise da amplitude e morfologia do MC, o tone burst, seria mais indicado.28,35,36.
Partindo deste pressuposto, o objetivo deste trabalho é demonstrar a aplicabilidade clínica da Ecog-ET no diagnóstico diferencial da NA/DA quando comparada ao PEATE.
MATERIAL E MÉTODO
O caso descrito é de uma criança de quatro anos de idade, com diagnóstico de NA/DA. A criança nasceu a termo, e com três dias de vida apresentou apnéia com cianose, seguida de internação e uso de Gentamicina por 14 dias. Apresentou hiperbilirrubinemia, sendo necessária a transfusão sangüínea. Na avaliação audiológica em campo livre, apresentou limiares auditivos rebaixados compatíveis com uma perda auditiva de grau moderado a severo, com configuração descendente. As respostas para os sons da fala, em forte intensidade, foram inconsistentes. Na imitanciometria, apresentou curvas timpanométricas normais, com ausência dos reflexos acústicos contra e ipsilaterais. As emissões otoacústicas evocadas por transiente e o produto de distorção estavam presentes para ambas às orelhas.
O PEATE e a Ecog-ET foram realizados para auxiliar no diagnóstico diferencial da NA/DA. O protocolo aplicado está descrito no Quadro 1. Ambos os exames, PEATE e a Ecog-ET, foram realizados em uma sala com tratamento acústico e eletromagnético e registrados com o equipamento Navigator Pro da marca Bio-logic Systems Corp.®, versão 4.2.0. A pele foi limpa com pasta abrasiva e os eletrodos descartáveis receberam uma pequena quantidade de pasta eletrolítica. Após a colocação dos eletrodos, os cabos foram conectados. O fone de inserção utilizado foi o modelo Ear Tone 3A. O arranjo dos eletrodos para o PEATE foi o seguinte: ativo-fronte; referência-mastóide e terra na mastóide contralateral ao lado estimulado. Para a Ecog-ET, o eletrodo ativo e terra foram posicionados na fronte e o eletrodo de referência (modelo TIPtrode) introduzido no meato acústico externo.
O TIPtrode foi desenvolvido pela Etymotic Research laboratories com base na construção dos fones de inserção. No seu interior, o TIPtrode possui um tubo plástico que conduz o som e conecta-se com o tubo do fone de inserção. Para torná-lo um eletrodo, foi revestido por uma fina camada de ouro que conduz a atividade elétrica, desencadeada pelo potencial evocado auditivo, até o pré-amplificador37, sendo assim o TIPtrode além de desencadear o estímulo acústico também capta a atividade elétrica. Para garantir a confiabilidade do registro e confirmar a presença da resposta biológica, tanto para o PEATE, quanto para a Ecog-ET, após a aplicação do protocolo de registro, o procedimento foi repetido na polaridade rarefação, bloqueando o tubo plástico do fone de inserção com uma pinça adequada contendo duas olivas de borracha nas suas extremidades para não danificar o tubo plástico e prevenir que o estímulo acústico alcançasse o canal auditivo. Nestas circunstâncias, o potencial coclear desaparece permanecendo apenas o artefato elétrico do sinal20,24,38.
RESULTADOS
Na Figura 1, ilustramos o registro do PEATE para ambas as orelhas, da criança de quatro anos, com NA/DA. Nos dois registros superiores (R-rarefação e C-condensação) podemos identificar a presença do MC e a ausência das componentes neurais. No registro intermediário (A-alternada), o MC coclear não foi totalmente cancelado. No registro inferior (Bloq.-bloqueado), podemos observar a ausência da resposta biológica.
Figura 1. Eletrococleografia extratimpânica na neuropatia/dessincronia auditiva - Registro do PEATE na NA/DA
Na Figura 2, ilustramos o registro da Ecog-ET, para ambas as orelhas, da criança de quatro anos, com NA/DA. Nos dois registros superiores (R-rarefação e C-condensação) identificamos a presença do MC e a ausência das componentes neurais. No registro intermediário (A-alternada), o MC não foi totalmente cancelado. No registro inferior (Bloq.-bloqueado), podemos observar a ausência da resposta biológica. Neste registro podemos visualizar o MC com melhor qualidade de registro o que permite uma análise mais precisa da morfologia, da amplitude e do tempo de duração do MC.
Figura 2. Eletrococleografia extratimpânica na neuropatia/dessincronia auditiva - Registro da Ecog-ET na NA/DA
Ilustramos na Figura 3, no registro superior da Ecog-ET, a inversão do traçado do MC em 180° quando da utilização das polaridades rarefação (R) e condensação (C). No registro inferior, ilustramos a autenticidade do MC, com o desaparecimento do potencial coclear diante do bloqueio do tubo do fone de inserção (Bloq.-bloqueado).
Figura 3. Eletrococleografia extratimpânica na neuropatia/dessincronia auditiva - Inversão do traçado do MC na Ecog-ET
DISCUSSÃO
A Neuropatia/Dessincronia Auditiva (NA/DA) é um diagnóstico relativamente novo no campo da Audiologia e tem sido objeto de diversos estudos nos últimos anos. Os métodos utilizados para identificar e diagnosticar esta condição são as EOAs e o PEATE. Entretanto, quando as EOAs estão ausentes nestes pacientes, o diagnóstico diferencial recai no registro do MC1-18,20,21.
Analisar o MC por intermédio do PEATE nos parece inapropriado por alguns motivos: primeiro, que o estímulo utilizado para desencadear os potenciais neurais, no caso o clique, parece limitar as condições de registro do MC1,20,25,34; segundo, que muitos clínicos realizam o PEATE com fones supra-aurais o que impede a estratégia de bloquear o tubo plástico para confirmar a resposta biológica.
A Ecog-ET, por ser uma técnica não-invasiva, pode ser utilizada em crianças pequenas, sem a necessidade da sedação, fato este que contribui para agilizar o diagnóstico diferencial da NA/DA. Pela localização dos eletrodos mais próxima ao local de origem do potencial coclear, a amplitude do registro é maior do que a observada no PEATE, e no caso da NA/DA, este é um fato de extrema relevância, à medida que há relatos na literatura de que o MC nesta condição é mais amplo22-26. Além da amplitude, com um registro de melhor qualidade, é possível também avaliar a duração do MC, outro dado citado na literatura, de ser mais prolongado na NA/DA do que em indivíduos normais.
Também é importante considerar que a Ecog-ET, por se tratar de uma técnica que avalia a função coclear, pode ser utilizada como complemento da avaliação audiológica nos casos de EOAs ausentes.
Mas, mesmo utilizando a Ecog-ET para avaliar o MC nos pacientes com NA/DA, é importante ressaltar a aplicação de protocolo apropriado que conte com estratégias para garantir a confiabilidade do registro. O estímulo utilizado deve ser o tone burst e as polaridades rarefação e condensação devem ser usadas para confirmação da inversão do registro e, portanto, da confirmação do MC. Além disto, recomendamos a utilização de fones de inserção para que seja possível a confirmação da resposta biológica, o que permite que o tubo plástico do fone de inserção seja bloqueado e assim, descartar a possibilidade de artefato elétrico do sinal.
CONCLUSÃO
Analisando os resultados dos registros obtidos, concluímos que a Ecog-ET tem aplicabilidade clínica no diagnóstico diferencial da NA/DA, e permite uma análise mais detalhada da função coclear quando comparado ao PEATE, principalmente no que diz respeito à análise do MC.
Procurou-se através deste estudo auxiliar na realização de um diagnóstico mais eficiente da NA/DA, principalmente em crianças pequenas, onde os métodos eletrofisiológicos são na maioria das vezes os únicos instrumentos de que dispomos para avaliar a função auditiva.
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1 Doutorado, Fonoaudióloga, Professora Doutora do Curso de Fonoaudiologia da FMRP-USP.
2 Fonoaudióloga, Livre-Docente do Curso de Fonoaudiologia da FOB-USP.
3 Titular, Médico Otologista, Professor Titular da USP Campus Bauru.
Endereço para correspondência: Adriana Ribeiro Tavares Anastasio - Travessa dois número 70 Jardim Recreio Ribeirão Preto SP 14040-160.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 15 de junho de 2006. cod. 2132.
Artigo aceito em 2 de novembro de 2006.