Versão Inglês

Ano:  2007  Vol. 73   Ed. 4  - Julho - Agosto - (18º)

Seção: Relato de Caso

Páginas: 569 a 572

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Tontura associada a distúrbio do pânico e agorafobia: relato de caso e revisão da literatura

Dizziness associated with panic disorder and agoraphobia: case report and literature review

Autor(es): João Daniel Caliman e Gurgel 1, Klinger Vagner Teixeira da Costa2, Flavia Nepel Cutini3, Krishnamurti Matos de Araújo Sarmento Júnior4, Marco André Mezzasalma 5, Heráclio Villar Ramalho Cavalcanti 6

Palavras-chave: agorafobia, tontura, transtorno do pânico

Keywords: agoraphobia, dizziness, panic disorder

Resumo:
Tontura é uma das queixas mais freqüentes no consultório médico tanto primário quanto especializado. Muitos dos pacientes que se apresentam com tontura sem causa orgânica aparente, portanto considerados como portadores de tontura idiopática, podem ter um distúrbio psiquiátrico. Além disso, mesmo a tontura de causa orgânica pode desencadear ou exacerbar alterações psiquiátricas "latentes". Um dos distúrbios mais comumente associados à tontura é o Distúrbio do Pânico, com ou sem Agorafobia. O objetivo deste estudo é relatar o caso de uma paciente com essa associação e realizar uma revisão da literatura relacionada ao assunto.

Abstract:
Dizziness is one of the most frequent complaints in both primary and specialized medical care facilities. Many dizzy patients, without a known organic cause, considered as having idiopathic dizziness, may have a psychiatric disorder. Besides, even organic dizziness may cause or exacerbate latent psychiatric alterations. One of the most common disorders associated with dizziness is Panic Disorder with or without Agoraphobia. The aim of this paper is to report a patient's case and make a literature review on the subject

INTRODUÇÃO

Tontura é uma das queixas mais freqüentes no consultório médico tanto primário quanto especializado e continua a representar um desafio ao raciocínio clínico. Pode ser causada por mais de duas mil condições primárias ou secundárias, agrupadas em mais de três centenas de síndromes.1,2 Nos Estados Unidos, a queixa de tontura é responsável por mais de 8 milhões de consultas ambulatoriais por ano. Sua investigação diagnóstica é dispendiosa, custando em média, segundo um estudo americano, US$2.532 até o diagnóstico, e grande parte das vezes ainda resulta inconclusiva.3 Dessa forma, busca-se atualmente uma abordagem criteriosa e interdisciplinar da tontura, de modo a intervir de forma mais abrangente e direta nos fatores causais e predisponentes identificados.

Sob a insígnia de tontura encontra-se uma miríade de queixas que passam desde o sintoma de vertigem (caracterizado por tontura de caráter rotatório) até a sensação de desequilíbrio, instabilidade, cabeça leve ou mesmo de "quase-desmaio".

Muitos dos pacientes que se apresentam com tontura sem causa orgânica aparente, portanto considerados como portadores de tontura idiopática, podem ter um distúrbio psiquiátrico.4 Além disso, mesmo a tontura de causa orgânica pode desencadear ou exacerbar alterações psiquiátricas "latentes".5

A associação entre tontura e doenças psiquiátricas já é bastante reconhecida mas ainda pouco estudada, em grande parte pela falta de uma abordagem multidisciplinar verdadeiramente integrada destes pacientes. Como é de praxe no raciocínio clínico, a associação com doenças psiquiátricas é tratada como um diagnóstico de exclusão, isto é, para os casos de tontura sem alterações orgânicas detectáveis ao exame físico e otoneurológico. Estes pacientes acabam sendo taxados como portadores de tontura "de origem psiquiátrica" e referidos ao especialista, que assume a responsabilidade do tratamento, muitas vezes sem um retorno ao médico de origem.

Por outro lado, os sintomas labirínticos nos pacientes psiquiátricos são muitas vezes tratados como manifestações psicossomáticas ou neurovegetativas, em sua maioria associados a um distúrbio de ansiedade, não suscitando investigação ou tratamento específicos.

Um dos distúrbios psiquiátricos mais comumente associados à tontura é o Distúrbio do Pânico com ou sem Agorafobia. Sintomas somáticos, em especial a tontura, são a característica principal destas doenças.6,7

O objetivo deste estudo é realizar revisão da literatura relacionada a esta associação, ilustrando com um relato de caso.


RELATO DO CASO

K.G.V., sexo feminino, 23 anos, chegou ao ambulatório com queixa principal de tontura do tipo instabilidade, de ocorrência esporádica (aproximadamente 1 vez por semana), com poucos minutos de duração, relacionada principalmente a episódios de ansiedade, associada à fadiga e cefaléia ocasionais, iniciada há 1 ano. Paciente negou presença de vertigem, náuseas, vômitos, sintomas otológicos ou outras comorbidades. Referiu uso habitual de cinarizina 75mg/dia sem melhora. Uma vez questionada de forma mais detalhada, a paciente revelou que sua tontura ocorria freqüentemente na presença de crises de ansiedade, com pico em aproximadamente 10 minutos, dispnéia, palpitações, parestesia de extremidades e sentimento de morte iminente. Além das crises, também sentia medo de sair ou permanecer sozinha dentro de casa, passar mal e não ter ninguém para acudi-la, situações que por vezes também causavam tontura, apesar de menor intensidade.

A otoscopia e as provas vestibulares e cerebelares foram normais. Nistagmos espontâneos e semi-espontâneos ausentes.

Foram então solicitados exames de hemograma, glicemia de jejum, uréia, creatinina, lipidograma, hormônios tireoidianos, audiometria, impedanciometria e vectoeletronistagmografia. Como foi aventada a hipótese de distúrbio psiquiátrico (distúrbio do pânico associado à agorafobia), foi prescrito Alprazolam, na dose de 0,5 mg/ dia, feitos os devidos esclarecimentos sobre uma possível etiologia psiquiátrica para os sintomas; a paciente foi então encaminhada ao médico psiquiatra.

Durante o primeiro retorno, a paciente já referiu importante melhora no quadro. Os exames complementares foram normais. Após sugestão do psiquiatra, que corroborou a hipótese diagnóstica por nós sugerida, foi associada Fluoxetina na dose de 20 mg/dia, com total remissão dos sintomas. Encaminhamos a paciente ao psicólogo.




Após 6 meses de tratamento, paciente mantém-se assintomática com uso de Fluoxetina 10mg/dia (em doses decrescentes) e em terapia cognitivo-comportamental, orientada por psicólogo em sessões semanais.


DISCUSSÃO

Os distúrbios da ansiedade constituem as doenças psiquiátricas mais prevalentes na comunidade geral e são observados em 15 a 20% dos pacientes no ambulatório de clínica médica. A ansiedade pode por si só representar um distúrbio psiquiátrico primário, ser um componente de uma doença clínica de base, ou secundária a ela.8

O distúrbio do pânico, a expressão máxima dos distúrbios da ansiedade, consiste na presença de ataques de pânico recorrentes e sem fatores desencadeantes, que se iniciam subitamente, desenvolvem-se em geral em 10 min e evoluem para resolução em 1 hora, de forma inesperada. O ataque de pânico é definido como período discreto, de intenso medo e desconforto, durante o qual surgem de modo abrupto quatro ou mais sintomas referidos no quadro 1.8

Em alguns pacientes, ocorre ansiedade antecipada, resultando em medo generalizado e comportamento progressivo de evitar locais ou situações em que poderia haver recorrência do ataque do pânico. Isto acaba por instituir um medo irracional adquirido de estar em lugares onde um indivíduo se sente prisioneiro ou incapaz de escapar, o que caracteriza a agorafobia.8

Vários estudos avaliaram a presença de sintomas psiquiátricos em pacientes com desordens vestibulares. Assim como visto na nossa paciente, as taxas de sintomas de ansiedade e comportamentos de evitação são consideravelmente altas (entre 22% e 67%); também são altas as taxas de anormalidades vestibulares em pacientes com pânico (entre 39% e 88%).9 A nossa paciente por sua vez teve o exame otoneurológico normal. Yardley et al.6 estudaram a prevalência de sintomas de distúrbio do pânico em uma amostra de pacientes com tontura, e como isto os afeta do ponto de vista psicossocial. Pacientes com tontura associada a pânico tiveram maiores taxas de vertigem e comportamento agorafóbico do que aqueles com pânico ou tontura isolados. Além disso, entre os pacientes com essa associação e que estavam empregados, metade deixou seus trabalhos, o que representa aproximadamente 10 vezes a proporção encontrada naqueles com tontura isolada e 2 vezes naqueles com pânico apenas. A duração da tontura não diferiu entre estes três grupos estudados.

A restrição comportamental devido a medo de tontura em pacientes com disfunção vestibular é similar à evitação fóbica de pacientes com distúrbio do pânico.10

Em um estudo não-randomizado com 17 pacientes com "tontura psicogênica" 76% tiveram distúrbio do pânico e/ou agorafobia, comparado a 8% de uma amostra de 24 pacientes com zumbido severo, que está mais relacionado aos distúrbios do humor, como distimia e depressão maior.11 Um outro estudo com 75 pacientes com tontura revelou que aqueles sem disfunção vestibular tiveram uma taxa significativamente maior de distúrbio do pânico durante suas vidas.12

Jacob et al.13 relataram que sintomas vestibulares durante ataques de pânico não são necessariamente relacionados à presença de disfunção vestibular objetivamente identificável; entretanto, pacientes com distúrbio do pânico associado a agorafobia têm disfunção vestibular significativamente maior que nos outros grupos.

Clark14 et al. analisaram um grupo de auto-ajuda para tontura com 103 pacientes. Destes, 20,4% foram diagnosticados com síndrome do pânico, com ou sem agorafobia, e 8,7% tinham apenas agorafobia, totalizando quase 30% com distúrbios de ansiedade. Não foram feitos testes otoneurológicos neste estudo.

O tratamento atualmente é feito através de orientação do paciente sobre a doença, uso de antidepressivos, principalmente os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (fluoxetina, paroxetina, sertralina), benzodiazepínicos (alprazolam, clonazepam), reabilitação vestibular e psicoterapia cognitivo-comportamental, com excelentes resultados.5 Na nossa paciente, devido à boa resposta com a terapêutica inicial, não foi necessário proceder à reabilitação vestibular. Mantivemos apenas a psicoterapia e o uso da fluoxetina, já em doses decrescentes.

A psicoterapia cognitivo-comportamental tem um papel muito importante principalmente na manutenção do paciente livre dos comportamentos agorafóbicos. Em vários ensaios clínicos, a terapia cognitiva mostrou-se tão eficaz quanto o tratamento medicamentoso para distúrbios da ansiedade leves e moderados. Ela consiste basicamente em ensinar o paciente a reconhecer parâmetros de pensamento ou situações que podem iniciar, magnificar e sustentar ansiedade, comportamentos fóbicos, depressão e somatização. A terapia comportamental é feita em associação à cognitiva, através da exposição do paciente de forma hierarquizada aos estímulos reconhecidos como nocivos, objetivando a dessensibilização. A terapia comportamental assume considerável importância no tratamento de agorafobia e de fobias simples ou sociais.5

Devido à grande quantidade de diagnósticos diferenciais, as queixas vestibulares são de difícil manejo clínico e necessitam de uma abordagem ampla e cuidadosa. Dada à prevalência de distúrbios psiquiátricos, o otorrinolaringologista tem que estar preparado para identificar os mesmos em seus pacientes, triando-os para o acompanhamento psiquiátrico. Apenas o acompanhamento psiquiátrico não é suficiente. Não se deve rotular o paciente como portador de "tontura psicogênica" ou distúrbio de conversão uma vez que condições psiquiátricas podem agravar ou mesmo serem geradas pelos sintomas labirínticos. É necessário o acompanhamento conjunto, e ter como objetivo final a melhoria da qualidade de vida do paciente.

Os inibidores seletivos da recaptação da serotonina têm demonstrado boa eficácia no tratamento do Distúrbio do Pânico, com ou sem disfunção vestibular concomitante.

Mais estudos são necessários para se estabelecer a relação entre distúrbios psiquiátricos e tontura, tais como a prevalência de demais condições psiquiátricas e tontura, o papel dos depressores labirínticos e dos inibidores da recaptação da serotonina nos pacientes com condições associadas, o acompanhamento a longo prazo destes pacientes, entre outros.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2. Ganança FF, Caovilla HH, Ganança MM. Diagnóstico diferencial da vertigem. In: Campos CAH, Costa HOO. Tratado de Otorrinolaringologia 2002; São Paulo: Roca, cap. 46, p. 505-20.

3. Kroenke K, Mangelsdorff D. Commom symptoms in ambulatory care: Incidence, evaluation, therapy and outcome. Am J Med 1989;86:262-6.

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5. Staab JP. Practical issues in the management of the dizzy and balance disorder patient. Otol Clin North Am 2000;33(3):1-14.

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14. Clark DB, Leslie MI, Jacob RG. Balance complaints and panic disorder: a clinical study of panic symptoms in members of a self-help group for balance disorders. J Anxiety Dis 1992;6:47-53.





1 Médico Otorrinolaringologista pela SBORL, Residente do 3º ano.
2 Residente do 3º ano do Hospital Geral de Bonsucesso.
3 Especializanda em Psicopedagogia Institucional, Psicóloga.
4 Mestrando em Otorrinolaringologia pela UFRJ, Médico Otorrinolaringologista do Hospital Geral de Bonsucesso.
5 Mestre em Psiquiatria pela UFRJ, Médico Psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil.
6 Médico Otorrinolaringologista, Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Geral de Bonsucesso.
Trabalho realizado no Hospital Geral de Bonsucesso - Rio de Janeiro
Endereço para correspondência: João Daniel Caliman e Gurgel - R. Jofredo Novaes 91/901 Praia da Costa Vila Velha ES 29101-470.
E-mail: drjoaodaniel@hotmail.com
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 10 de março de 2005. cod. 64.
Artigo aceito em 13 de setembro de 2005.

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