Ano: 2006 Vol. 72 Ed. 6 - Novembro - Dezembro - (2º)
Seção: Artigo Original
Páginas: 727 a 730
Tratamento cirúrgico da otosclerose na residência médica
Surgical treatment of otosclerosis in medical residency training
Autor(es): Vinicius Antunes Freitas1, Celso Gonçalves Becker2, Roberto E. S. Guimarães3, Paulo Fernando Tormin B. Crosara4, Gabriela Amélia Nassif Morais5, Marcelo Moura6
Palavras-chave: cirurgia, estapedotomia, otosclerose, residência médica.
Keywords: surgery, stapedotomy, otosclerosis, medical residency.
Resumo:
A proporção de pacientes com otosclerose estapediana em relação ao número de otorrinolaringologistas tem diminuído nos últimos anos. Questiona-se se a cirurgia de tratamento da otosclerose deve ou não continuar sendo ensinada para residentes. Objetivo: Avaliar os resultados e complicações das estapedotomias realizadas por residentes no período de janeiro de 1997 a janeiro de 2000; verificar a inclusão da estapedotomia no programa de residência médica. Forma de Estudo: Estudo de coorte histórica longitudinal. Materiais e Métodos: Avaliados 50 prontuários de pacientes submetidos a um total de 51 estapedotomias quanto às complicações e resultados audiológicos. Resultados: Fechamento do gap aéreo-ósseo para menor ou igual a 10dB NA em 70,5% das orelhas e menor ou igual a 20 dB NA em 86,3% das orelhas. Ocorreu 1 caso de surdez total. Complicações: subluxação da bigorna (7,8%), perfuração da membrana timpânica (5,8%), vertigem incapacitante que se resolveu dentro de 3 semanas (5,8%), otorréia (3,9%), platina flutuante (1,95) e fístula perilinfática (1,9%). Conclusão: A análise da literatura e os resultados e complicações obtidos neste estudo permitem concluir que a estapedotomia pode ser incluída no programa de residência médica, desde que haja disponibilidade de casos cirúrgicos para o treinamento dos residentes.
Abstract:
The number of patients with stapes otosclerosis compared to the number of otorhinolaryngologists has declined over the past several years. As a result a controversy has arisen in the literature, whether or not stapes surgery should be included in residency programs. Aim: the objective of the present study is to evaluate the results and complications of estapedotomies performed by residents between January, 1997 and January, 2000, and consequently study the feasibility of including estapedotomies in residency programs. Study design: retrospective review of prospectively collected audiometric data. Materials and methods: fifty charts of patients that were submitted to a total of 51 primary stapedotomies were reviewed mainly for complications and audiological results. Results: there was closure of the air-bone gap within 10 dB HL in 70.5% of ears and closure to within 20 dB HL in 86.3% of ears. There was one ear with total hearing loss (2%). Conclusion: From the results and complications seen in the present study, and analyzing papers from the literature, it is possible to conclude that stapedotomy is a procedure that can be included in residency programs, if there are surgical cases for the residents.
INTRODUÇÃO
A otosclerose é um processo patológico localizado da cápsula ótica, raramente acometendo os ossículos auditivos, podendo gerar efeitos secundários aos sistemas auditivos e vestibulares, levando à perda auditiva de transmissão e/ou neurossensorial. Esta perda auditiva geralmente se inicia entre as idades de 15 e 35 anos, tratando-se de doença autossômica dominante de expressividade variável1,2.
O tratamento cirúrgico da otosclerose vem sendo cada vez menos indicado para o tratamento da doença devido à diminuição do número de pacientes, seja pela eficácia de tratamentos prévios, seja pelo uso do aparelho auditivo e fluoração da água usada pela população2-9. A mobilização do estribo como tratamento da otosclerose foi iniciado por Rosen em 1952 e modificado por Shea em 19589,10. Várias técnicas foram desenvolvidas ao longo dos anos, havendo recentemente uma tendência a substituir a estapedectomia total pela estapedotomia, com relatos de melhor fechamento do gap aéreo-ósseo em altas freqüências e melhor discriminação da fala pós-operatória, embora alguns autores tenham encontrado resultados semelhantes nas duas técnicas10-15.
O sucesso da cirurgia da otosclerose depende, para muitos autores, mais da experiência do cirurgião que propriamente da técnica utilizada, sendo que alguns têm questionado o treinamento de residentes em cirurgia de otosclerose9,12,16,17.
Considera-se como bom resultado cirúrgico o fechamento do gap aéreo-ósseo para menor ou igual a 10 dB em 90% dos casos, e com menos de 1% de perda neurossensorial grave no pós-operatório, independente da técnica utilizada3,12.
Nosso trabalho tem por finalidade avaliar os resultados e complicações de pacientes submetidos a cirurgias de otosclerose estapediana realizadas por residentes do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG).
MATERIAIS E MÉTODOS
Foi feita avaliação retrospectiva dos prontuários de 50 pacientes submetidos à cirurgia de otosclerose no serviço de otorrinolaringologia do HC-UFMG, no período de janeiro de 1997 a janeiro de 2000. Os critérios de inclusão foram: cirurgia de estapedotomia primária, pacientes com prontuário contendo todas as informações clínicas, cirúrgicas e audiológicas necessárias, bem como cirurgias realizadas pelos residentes. Os critérios de exclusão foram: cirurgias de revisão, cirurgias realizadas por preceptores e pacientes que não tinham no prontuário as informações necessárias.
A técnica utilizada foi estapedotomia através de confecção de retalho timpanomeatal endaural. Curetagem do ânulo ósseo para visualização das seguintes estruturas: articulação incudo-estapediana, nervo facial, nervo corda do tímpano, processo cocleariforme e processo piramidal. Após medida do comprimento necessário para a prótese, realiza-se fenestração com perfurador manual facetado de 0,6 mm, secção do tendão do estapédio, desarticulação incudo-estapediana e fratura das cruras do estribo. Implanta-se e cerra-se a prótese, com calçamento da mesma com gel-foam® e reposicionamento do retalho timpanomeatal. As próteses implantadas foram do modelo Aldo Stamm®, sendo 60,8% de diâmetro de 0,45mm e 39,2% de 0,3mm.
Os residentes realizam a cirurgia de estapedotomia no terceiro ano de residência após treinamento em laboratório de dissecção de osso temporal por dois anos e aperfeiçoamento da habilidade em cirurgia otológica também por dois anos através da realização de outras cirurgias como timpanoplastia, ossiculoplastia e mastoidectomia. Os residentes são supervisionados por um cirurgião otologista. Sempre que necessário, o preceptor interveio na cirurgia, corrigindo falhas, desenvolvendo a técnica e finalizando a cirurgia num tempo seguro para o paciente.
Todas as audiometrias foram realizadas por fonoaudiólogos especializados em audiologia e supervisionados por médicos otorrinolaringologistas usando o audiômetro Amplaid® 309. As audiometrias do pré-operatório foram realizadas até 2 meses antes da cirurgia e a do pós-operatório foi considerada a última audiometria encontrada no prontuário, que variou de 3 meses até 3 anos após a cirurgia.
O resultado da cirurgia foi avaliado subjetivamente pelo relato do paciente encontrado no prontuário e objetivamente analisando as audiometrias pré- e pós-operatórias. O cálculo do fechamento do gap aéreo-ósseo foi realizado subtraindo a via óssea pré-operatória da via aérea pós-operatória (média nas freqüências de 500, 1000, 2000, 4000 Hz).
RESULTADOS
Aplicando os critérios de inclusão e exclusão, encontramos 50 pacientes, sendo 49 submetidos à cirurgia unilateral e 1 paciente com cirurgia bilateral. Foram 24 (47%) cirurgias do ouvido direito e 27 (53%) do ouvido esquerdo. A idade variou de 16 a 64 anos; 37 pacientes eram mulheres. A média de cirurgias por residente neste período foi de aproximadamente 17 cirurgias por residente/ano (Tabela 1).
Dos pacientes operados, 15,7% tinham história familiar positiva para otosclerose e 82,4% tinham acometimento bilateral.
Em relação ao tipo de anestesia, 94,1% dos casos foram realizados com anestesia geral e 5,9% com anestesia local sob sedação. Não houve nenhuma complicação relacionada ao ato anestésico.
Analisando os resultados auditivos de 51 orelhas operados com audiometria pré- e pós-operatórias, ocorreu fechamento de gap aéreo-ósseo para menor ou igual a 10 dB em 70,5% dos casos, para menor ou igual a 20 dB em 86,3%, entre 20 e 30 dB em 3,9% e maior que 30 dB em 7,8% dos casos. Ocorreu um caso de perda auditiva total que representa 1,9% dos casos, em conseqüência de otite média supurativa no pós-operatório. Quanto à avaliação subjetiva da audição nos 3 primeiros meses após a cirurgia, 86,3% dos pacientes relataram melhora, 5,9% relataram piora, 5,9% com audição inalterada e, em 2%, não se encontrou relatos em prontuário (Tabela 2).
O nervo corda do tímpano foi preservado em 74,5% dos pacientes. O nervo facial procidente foi encontrado em 9,8% dos casos sendo mencionado sua deiscência em apenas 2% dos casos. Platina obliterante foi encontrada em 4 casos dos quais 3 fecharam o gap para menor ou igual a 10 dB.
Complicações transoperatórias ocorreram em 15,6% dos pacientes (8 casos), sendo 5,8% (3 casos) com perfurações de membrana timpânica, os quais necessitaram de timpanoplastia posteriormente, 7,8% (4 casos) com subluxação da bigorna e 1,9% (um caso) com platina flutuante que teve bom resultado audiológico (gap menor ou igual a 10 dB). Não houve nenhum caso de extrusão de prótese no pós-operatório desses pacientes (Tabela 3).
No pós-operatório imediato observou-se um caso de suspeita de fístula perilinfática com tonteira que se resolveu espontaneamente, dois casos (3,9%) de otorréia e 3 casos (5,8%) de vertigem que regrediram espontaneamente dentro de três semanas. Não se observou casos de paresia ou paralisia facial.
DISCUSSÃO
A cirurgia é uma das alternativas de abordagem para tratamento de pacientes com otosclerose. Trata-se de um procedimento que exige extrema precisão e delicadeza de movimentos, de tal forma que se questiona o treinamento em serviços de residência médica. Há também o fato de se ter observado uma diminuição do número de indicações cirúrgicas, seja pela menor proporção de pacientes em relação ao número de otorrinolaringologistas, seja pelo tratamento alternativo (prótese auditiva, fluoreto)2-9.
No HC-UFMG, têm-se operado grande número de casos de otosclerose, sendo virtualmente todos os pacientes submetidos a estapedotomia, em função do menor tempo operatório e menor manipulação estapediana10-14. Com isso, os residentes participam da cirurgia estapediana auxiliados por preceptor, em praticamente todos os casos da instituição. Por se tratar de hospital referência, e pertencer ao sistema de saúde pública, um grande número de pacientes com otosclerose é atendido (17 pacientes foram operados por ano para cada residente), a despeito da literatura sinalizar uma diminuição significativa do número de casos2-9.
Vernick8 apresentou resultados ruins de cirurgias realizadas por residentes, considerando inaceitáveis resultados inferiores ao ideal (fechamento do gap para menor que 10 dBNA8,12,16), já que se trata de cirurgia eletiva com grande repercussão na vida do paciente. House et al.12 relacionam a maior experiência do cirurgião ao baixo índice de complicações e ao melhor resultado pós-operatório. Os dados apresentados por Vernick se referem a estapedectomias, tido por Hughes16,17 como procedimento que necessita de maior treinamento para atingir bons resultados em relação à estapedotomia. Nossos resultados (fechamento do gap para menor que 10 dB NA de 70,5%) são inferiores aos desejados, mesmo tendo sido realizados apenas estapedotomias. Faz-se necessário reconhecer a existência de uma curva de aprendizado, questionando-se o treinamento em laboratório como suficiente para a aquisição de habilidades (nossos residentes foram submetidos a treinamento prévio em peças anatômicas).
Alguns autores apresentaram bons resultados com cirurgiões inexperientes quando a cirurgia realizada é a estapedotomia com uso de laser e mesmo com outros métodos2,16. Outro importante questionamento é se a imaturidade cirúrgica refere-se à cirurgia de otosclerose ou à cirurgia otológica de modo geral. Hughes sugere que a estapedectomia não é cirurgia que possa ser realizada ocasionalmente, com risco de comprometer o resultado cirúrgico. Tendo a estapedotomia uma curva de aprendizado mais curta que a estapedectomia e havendo uma quantidade significativa de cirurgias (em torno de 10 casos para estapedotomia e 40 para estapedectomia), pode-se atingir bons resultados em menor espaço de tempo16.
CONCLUSÃO
A cirurgia de otosclerose exige grande habilidade e experiência cirúrgica para atingir bons resultados. Consideramos que residentes podem realizar tais cirurgia desde que submetidos a longo treinamento em laboratório de anatomia e em outras cirurgias otológicas, sendo a estapedotomia a cirurgia de eleição realizada sob supervisão de cirurgião otológico experiente. É necessário que o serviço de residência tenha grande número e freqüência de casos e que o residente possua habilidades cirúrgicas reconhecidas pelo preceptor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Niedermeyer HP, Arnold W. Ethiopathogenesis of otosclerosis. ORL 2002;64:114-9.
2. Rondini-Gilli E, Grayeli AB, Boutin P, Crosara PF, Mosnier I, Bouccara D, Cyna-Gourse F, Rufat P, Sterkers. Otospongiose: techniques chirurgicales et résultats. A propos de 150 cas. Ann Otolaryngol Chir Cervicofac 2002;119(4):227-33.
3. Mathews SB, Rasgon BM, Byl FM. Stapes Surgery in a Residency Training Program. Laryngoscope 1999;109:52-4.
4. Shapira A, Ophir D, Marshak G. Success of Stapedectomy Performed by Residents. Am J Otolaryngol 1985;6:388-91.
5. Engel TL, Schindler RA. Stapedectomy in Residency Training. Laryngoscope 1984:768-71.
6. Strunk CL, Quinn FB, Bailey BJ. Stapedectomy Techniques in Residency Training. Laryngoscope 1992;102:121-4.
7. Harris JP, Osborne E. A Survey of Otologic Training in US Residency Programs. Arch Otolaryngol Head Neck Surg, 1990;116:342-5.
8. Vernick DM. Stapedectomy Results in a Residency Training Program. Ann Otol Rhinol Laryngol 1986;95:477-80.
9. Duncan NO, Jenkins HA, Wright GL, Alford BR. Stapedectomy trends for the resident. Ann Otol Rhinol Laryngol 1988;97:109-13.
10. Fisch U. Stapedotomy versus stapedectomy. Am J Otol 1982 Oct;4(2):112-7.
11. Spandow O, Soderberg O, Bohlin L. Long-term results in otosclerotic patients operated by stapedectomy or stapedotomy. Scand Audiol 2000;29:186-90.
12. House HP, Hansen MR, Al-Dakhail AA, House JW. Stapedectomy versus stapedotomy: comparison of results with long-term follow-up. Laryngoscope 2002;112:2046-50.
13. Dornhoffer JL, Bailey HA, Graham SS. Long-term Hearing results following stapedotomy. Am J Otol 1994;15:674-8.
14. Kursten R, Schneider B, Zrunek M. Long-term results after Stapedectomy versus stapedotomy. Am J Otol 1994;15:804-6.
15. Kos MI, Montandon PB, Guyot JP. Short- and Long-term results of stapedotomy and stapedectomy with a Teflon-wire piston prosthesis. Ann Otol Rhinol Laryngol 2001;110:907-11.
16. Sargent EW. The Learning Curve Revisited: Stapedotomy. Otolaryngology - Head Neck Surg. 2002;126:20-5.
17. Hughes GB. The learning curve in stapes surgery. Laryngoscope 1991;101:1280-4.
1 Bacharel em medicina pelo UFMG, especializando de otorrinolaringologia do Núcleo de Otorrino BH.
2 Doutor, Professor Adjunto do Depto. de Otorrinolaringologia, Oftalmologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG.
3 Doutor, Professor Adjunto do Depto. de Otorrinolaringologia, Oftalmologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG.
4 Doutor, Professor Substituto do Depto. de Otorrinolaringologia, Oftalmologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG.
5 Bacharel em medicina pela faculdade de medicina da UFMG, Especializanda em otorrinolaringologia do Núcleo de Otorrino BH.
6 Bacharel em medicina pela UFMG, Otorrinolaringologista.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 21 de março de 2006. cod. 1793.
Artigo aceito em 15 de maio de 2006.