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Ano:  2005  Vol. 71   Ed. 4  - Julho - Agosto - ()

Seção: Artigo Original

Páginas: 410 a 414

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Anatomia microscópica do canal carótico e suas relações com a cóclea e a cavidade timpânica

Microscopic anatomy of the carotid canal and its relations with cochlea and middle ear

Autor(es): Norma de Oliveira Penido , Andrei Borin , Yotaka Fukuda , Cristina Navarro Santos Lion

Palavras-chave: anatomia, osso temporal, artéria carótida interna, cóclea, orelha.

Keywords: anatomy, temporal bone, internal carotid artery, cochlea, ear.

Resumo:
As relações entre as diversas estruturas nobres e vitais que se apresentam na intimidade do osso temporal constituem ainda hoje um grande desafio para o cirurgião otológico. Os estudos micro-anatômicos do mesmo se encontram entre as grandes armas na busca deste entendimento. Objetivo: Estudar as correlações anatômicas entre o canal carótico e a cóclea, e a ocorrência de deiscências do mesmo junto à cavidade timpânica. Material e Método: Estudo microscópico de 122 ossos temporais humanos. Resultados: As distâncias médias entre o canal carótico e os giros cocleares foram: no local de menor distância 1,05mm; no giro basal, 2,04mm; no giro médio, 2,32mm; e no giro apical, 5,7mm. A ocorrência de deiscências do canal carótico na cavidade timpânica foi de 35,2%. Conclusão: A pequena distância entre estruturas cocleares e o canal carótico, e a alta prevalência de deiscências do mesmo na cavidade timpânica nos relembram o desafio com o qual o cirurgião otológico se depara ao atuar sobre o osso temporal.

Abstract:
The knowledge of the relations between the noble and vital structures of temporal bone is still a great challenge for the otologic surgeon. The microscopic anatomic studies of the temporal bone are one of the greatest help to prevent lesions during surgical intervention. Aim: To study the anatomic correlations between the carotid canal and the cochlea, and the occurrence of dehiscence of the carotid canal in the middle ear tympanic cavity. Material and Methods: Microscopic study of 122 human temporal bones. RESULTS: The average distance between the carotid canal and the cochlea were: the shortest distance, 1.05mm; basal turn, 2.04mm; middle turn, 2.32mm; and apical turn, 5.70mm. The occurrence of dehiscence of the carotid canal inside the tympanic cavity was 35.2%. Conclusion: The small distances between the cochlea and carotid canal, and the high incidence of dehiscence in the tympanic cavity remind us that anatomical knowledge of the temporal bone is required for the best qualification of otologists.

INTRODUÇÃO

O conhecimento anatômico sempre foi imprescindível em qualquer atividade médica. Quanto a isto, o conhecimento das estruturas anatômicas presentes no osso temporal e suas relações assume um papel de destaque devido a sua complexidade, na qual diversas estruturas vitais e nobres encontram-se extremamente próximas entre si. Esta noção anatômica tridimensional é fundamental para capacitar o médico otorrinolaringologista, sobretudo aqueles que atuam na área cirúrgica, para o tratamento de doenças intrínsecas ou mesmo invasivas ao osso temporal, bem como quando o utilizam como via de acesso ao sistema nervoso central.
Embriologicamente, o sistema circulatório da artéria carótida tem sua origem nos vasos branquiais, sendo a artéria do 3º arco aquela que origina a artéria carótida interna1. A artéria carótida interna pode ser dividida em 4 partes: cervical, petrosa, cavernosa e cerebral. A parte petrosa tem seu trajeto envolto em um canal ósseo na intimidade do osso temporal, e possui dois segmentos. Um segmento vertical, variando de 5,0 a 12,5mm de comprimento e 4,0 a 7,5mm de diâmetro, estabelecendo relação com a fossa jugular posteriormente, tuba auditiva anteriormente, e osso timpânico ântero-lateralmente. Na região ântero-inferior ao processo cocleariforme, extremamente próximo aos giros cocleares, realiza uma mudança de direcionamento, iniciando seu segmento horizontal que se dirige ântero-medialmente por um trajeto de 14,5 a 24mm de comprimento e de 4,5 a 7,0mm de diâmetro.
Os estudos microanatômicos permitem que o cirurgião tenha uma plena orientação anatômica sobre a região do osso temporal em que está atuando, o qual comporta diversas estruturas anatômicas vitais, cuja lesão inadvertida pode ser catastrófica. Entre estas, a lesão da artéria carótida interna (ACI) representa um risco de sangramento trans-operatório de difícil controle, além de poder acarretar graves conseqüências em relação à irrigação do sistema nervoso central. Com este objetivo, apresentamos um estudo anatômico microscópico das relações do canal carótico (CC) com os giros cocleares e também uma análise da ocorrência de deiscências do mesmo junto à cavidade timpânica (CT).

MÉTODO

Utilizamos como base neste trabalho ossos temporais humanos pertencentes ao Banco de Ossos Temporais do Laboratório George Eccles localizado no House Ear Institute em Los Angeles (Califórnia, EUA). Todos estes ossos foram doados em vida pelos pacientes, contando assim com histórico médico completo a respeito de suas doenças otológicas. Isto permitiu estabelecer critérios rígidos de inclusão e exclusão na seleção dos ossos temporais analisados. Foram excluídos todos os ossos que poderiam conter alterações anatômicas decorrentes de doenças que teoricamente implicassem em distorções de sua anatomia microscópica, como malformações congênitas, otosclerose, Paget, fraturas temporais etc. Estes ossos temporais, retirados após poucas horas do óbito do paciente, foram preparados no plano horizontal com cortes de 20 micrômetros de espessura, englobando desde a ampola do canal semicircular superior até o final do canal semicircular posterior. Foram posteriormente corados com hematoxilina e eosina para análise em microscópio óptico. Toda a técnica para retirada, preparação, corte e coloração se encontra descrita em manual próprio desta instituição2.
Foram realizadas duas análises em relação à microanatomia do canal carótico em seu trajeto intratemporal. A primeira análise envolvia a mensuração da distância mínima, em milímetros, entre o CC e a cóclea. Para isto foram realizadas medidas em quatro regiões cocleares (Figura 1), sendo elas: primeira medida para determinar o local da menor distância entre o canal carótico e a cápsula ótica da cóclea (Figuras 2 e 3), podendo esta medida estar localizada em qualquer região da cóclea (giro basal, giro médio ou giro apical); segunda medida no giro basal (localizada no giro basal especificamente na última lâmina em que se encontra a cóclea e o canal carótico); considerou-se esta a última lâmina, pois os cortes foram feitos de cima para baixo no osso temporal; terceira medida no giro médio (corresponde ao local no giro médio entre o canal carótico e a cápsula ótica da cóclea na lâmina com a presença do eixo do modíolo); e a quarta medida no giro apical (corresponde à região da cúpula da cóclea na primeira lâmina por onde o corte passa através da cóclea, sendo esta medida realizada apenas quando o canal carótico passar a este nível). Dois pesquisadores independentes realizaram estas medições, sendo posteriormente comparadas quanto à diferença estatisticamente significante entre elas. Foram utilizados os seguintes testes estatísticos: Teste de Wilcoxon, Teste de Mann-Whitney, Coeficiente de correlação de Spearman. Levando-se em consideração o tamanho da amostra, os testes foram aplicados com aproximação à curva normal.
A segunda análise envolveu a avaliação da presença de deiscências ósseas do CC na CT, definida como a ausência de cobertura óssea da íntima da artéria carótida em algum dos cortes histológicos (Figuras 4 e 5). Estes dados foram correlacionados posteriormente com informações quanto ao sexo do paciente e lateralidade do osso.

RESULTADOS

De um total de mais de 600 ossos temporais disponíveis no banco de ossos, foram utilizados neste trabalho, de acordo com os critérios expressos na metodologia, 122 ossos temporais, sendo 51 deles pareados e 20 não-pareados. Destes, eram do sexo feminino 30 pares e 13 ossos não-pareados, e do sexo masculino, 21 pares e 7 não-pareados. A idade de óbito dos doadores variou de 6 a 97 anos.
Nossos resultados quanto à distância entre os giros cocleares e o CC se encontram apresentados na Tabela 1, separados quanto à lateralidade e ao gênero. Como não houve diferença estatisticamente significante (p<0,05) entre as medidas aferidas pelos dois pesquisadores, bem quanto ao sexo e lateralidade, resolvemos analisá-los de maneira conjunta. Assim, podemos aferir que em média o CC dista da cóclea no local de menor distância 1,05mm; no giro basal da cóclea 2,04mm; no giro médio 2,32mm; e no giro apical 5,77mm. Devemos ressaltar que as medidas na região do giro apical só foram possíveis de serem realizadas em menos da metade dos casos, devido à mudança do direcionamento do CC nesta região.
Sobre a ocorrência de deiscências do CC na CT, nossos resultados se encontram apresentados na Tabela 2. Novamente, como não houve diferença estatisticamente significante (p<0,05) quanto ao sexo e lateralidade, resolvemos também analisá-los de maneira conjunta. Definimos a ocorrência de deiscências do CC na CT em 35,2% dos ossos temporais.

DISCUSSÃO

Diversas cirurgias otológicas envolvem a dissecção do osso temporal junto ao CC, nas proximidades da cóclea. Entre elas podem destacar a apicectomia, o acesso transcoclear para angulo ponto-cerebelar, o acesso transótico e a temporalectomia3-5. Nosso trabalho calculou as distâncias médias entre o CC e os giros cocleares: no local de menor distância (1,05mm), no giro basal (2,04mm), no giro médio (2,32mm) e no giro apical (5,77mm). A literatura corrobora com nossos achados: Paullus et al.6 definiram a distância média entre o giro basal da cóclea e o CC em 2,1mm (variando de 0,6 a 10mm); Muren et al.7 em 1,34mm (0,2 a 6,2mm); e Lang8 em 2,2mm (0,4 a 7,0). Estes valores diminutos entre o CC e os giros cocleares nos alertam sobre a proximidade destas estruturas, o que deve ser sempre lembrado durante a dissecção cirúrgica do osso temporal. Principalmente em pessoas idosas, nas quais as paredes da ACI podem sofrer um processo de absorção muscular, o que acarreta uma fragilidade especial da mesma, onde o próprio CC pode estar garantindo a integridade do fluxo sanguíneo9.
Nossa amostra envolveu pacientes de uma ampla faixa etária, fato que aparentemente não influencia negativamente nosso estudo, já que na literatura encontramos o relato de que ao nascimento o bloco labiríntico já se encontra plenamente desenvolvido, respeitando as dimensões do adulto7,9,10.
A origem das deiscências do CC junto à CT pode ter várias explicações possíveis, como: falhas de ossificação, anomalia congênita, persistência de vasos embrionários, absorção óssea ao longo dos anos, processos inflamatórios de orelha média11-14. Representam um risco adicional durante as cirurgias otológicas podendo acarretar uma lesão inadvertida da ACI. Nossa incidência, através de estudo microanatômico foi de 35,2%, sem correlação com o gênero e lateralidade do osso estudado. Este dado também encontra apoio na literatura: Leonetti et al., 40%15; Moreano et al., 15%16; Dew et al., 33%17; e Aslam et al., 35%18. Esta alta incidência de deiscência do CC nos alerta quanto à grande atenção que deve ser dada durante a dissecção das regiões próximas ao mesmo. Os exames complementares pré-operatórios, como a tomografia computadorizada, ainda carecem de uma melhor sensibilidade na detecção deste tipo específico de alteração. Atilla et al., estudando 700 imagens tomográficas computadorizadas, detectaram uma incidência de apenas 1,4% de deiscências em cortes axiais e coronais19, número muito inferior ao que constatamos com nosso estudo microscópico. Além do risco de lesão intraoperatória da ACI, a ocorrência de deiscências do CC pode apresentar também através de outros sintomas e sinais otológicos significativos como: massa pulsátil que pode ser confundido com paragangliomas20, otorréia pulsátil, aneurisma e pseudoaneurismas da ACI16 perda auditiva por alteração ossicular ou disfunção de tuba auditiva21 e otorragia espontânea.
O entendimento da complexa anatomia do osso temporal, envolvendo diversas estruturas anatômicas vitais e nobres, constitui ainda hoje um grande desafio para os cirurgiões otológicos. Nosso estudo da microanatomia do osso temporal evidenciando uma ínfima distância entre os giros cocleares e o CC, e uma alta incidência de deiscências do mesmo junto à CT nos relembram deste fato.





Figura 1. Reconstrução tridimensional a partir de cortes histológicos de um mesmo osso temporal por computador, da cóclea e do canal carótico representando os locais onde foram realizadas as medidas: *menor distância, **giro basal, ***giro médio, ****giro apical.


Figura 2. Menor valor de medida existente entre o canal carótico e o giro apical (0,19 milímetros). CC = Canal Carótico; ACI = Artéria Carótica Interna; CT = Cavidade Timpânica. Corte histológico em aumento de 8X.


Figura 3. Menor valor de medida entre o canal carótico e o giro basal (0,12 milímetros). CC= Canal Carótico; ACI = Artéria Carótica Interna, GBC = Giro Basal da Cóclea. Corte histológico em aumento de 20X.


Figura 4. Corte histológico do osso temporal mostrando uma grande deiscência do canal carótico na cavidade timpânica. Ausência total da parede carótico-timpânica entre a artéria carótida interna (ACI) e a cavidade timpânica (CT).


Figura 5. Corte histológico do osso temporal mostrando uma pequena deiscência do canal carótico na cavidade timpânica. Ausência de uma pequena porção da parede carótico-timpânica entre a artéria carótida interna (ACI) e a cavidade timpânica (CT).


CONCLUSÕES

Da análise microscópica das distâncias entre o canal carótico e os giros cocleares e a ocorrência de deiscências do mesmo junto à cavidade timpânica, em 122 ossos temporais humanos cortados no plano horizontal, conclui-se:

1. Não houve diferenças estatisticamente significantes entre gênero e lateralidade nos ossos estudados.

2. A menor distância entre a cóclea e o canal carótico se localiza, na maioria das vezes, no giro basal, em menor freqüência no giro médio e raramente no giro apical.

3. Observamos uma incidência de 35% de deiscência do canal carótico na cavidade timpânica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Doutora em Medicina, professora afiliada UNIFESP-EPM.
[2] Mestre em Otorrinolaringologia pela UNIFESP/EPM, otorrinolaringologista.
[3] Livre Docente, Professor Associado do Departamento de Otorrinolaringologia da UNIFESP/EPM.
[4] Mestre em Otorrinolaringologia pela UNIFESP/EPM, otorrinolaringologista.

Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM) e House Ear Institute (Los Angeles, CA).
Endereço para correspondência: Rua René Zanlutti 160 ap. 131 Vila Mariana 04116-260 São Paulo SP.
Artigo submetido em 13/5/2005 e aprovado em 13/6/2005.

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