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Ano:  2004  Vol. 70   Ed. 5  - setembro-outubro - ()

Seção: Editorial

Páginas: 578 a 579

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BIOÉTICA: a mudança da postura ética

Bioethics: the change in ethical attitude

Autor(es): Daniel Romero Muñoz

O Juramento de Hipócrates é uma preciosidade do pensamento humano voltado para o bem do próximo. Nestes 25 séculos, em que vem sendo a base da postura ética dos médicos, porém, aconteceram, além da evolução acentuada do conhecimento médico e humano em geral, importantes mudanças sociais, que afetaram profundamente a relação do médico com seu paciente, exigindo a adequação de sua conduta moral aos novos padrões adotados pela sociedade. Em outras palavras, o Juramento de Hipócrates foi feito por médico e para o médico; em momento algum o texto faz alusão à vontade do paciente ou a sua participação nas decisões a serem tomadas. Ele adota uma postura paternalista para a relação do médico com seu paciente, não expressando, textualmente, o direito deste de decidir o que é melhor para si. Ele reflete o espírito da época que foi escrito, pois, os gregos antigos deram grandes contribuições à evolução humana, porém, as idéias sobre os direitos de todos os homens e a luta pela sua implantação na sociedade são bem posteriores. A revolução francesa é o marco histórico do seu efetivo desencadeamento. Nela os cidadãos passam a pugnar pela igualdade de direitos de todos os homens perante a lei, pela liberdade para decidir o que é melhor para si e para todos e pela união de todos para o bem comum. Essa revolução continua em andamento e nas últimas décadas vem atingindo a medicina de maneira cada vez mais intensa. Suas idéias foram sendo estruturadas em um novo corpo de conhecimentos, dando origem a uma nova disciplina: a Bioética.

Esta denominação é atribuída ao oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter, que a utilizou pela primeira vez no livro Bioethics:bridge to the future. Seu objetivo era promover um novo diálogo entre ciência e humanismo que pareciam incapazes de comunicar-se(1). Preocupado com a sobrevivência ecológica do planeta e com a democratização do conhecimento científico, aspirava produzir uma disciplina que combinasse o conhecimento biológico (bio) com o do sistema de valores humanos (ética) (2). Sua intenção era criar uma nova matriz cultural, um modelo de pensamento integrador(3), por isso a proposição do termo bioética enfatizava os dois ingredientes considerados mais importantes para alcançar a prudência que ele julgava necessária: o conhecimento biológico associado aos valores humanos(4). O importante da proposta futurista de Potter é a idéia de que a constituição de uma ética aplicada às situações de vida seria o caminho para a sobrevivência da espécie humana. E, mais: para essa ciência da sobrevivência não seria preciso um conhecimento rigoroso da técnica, mas sim respeito aos valores humanos(2).

Esta proposta de associar as ciências da vida e a ética (visando o bem-estar dos seres humanos e dos animais e a salvaguarda do meio ambiente) é o que se mantém hoje como o espírito da bioética.

O nascimento da bioética foi precedido de importantes transformações ocorridas no cenário social, político e tecnológico entre as décadas de 1960 e 1970. Por um lado, um grande desenvolvimento tecnológico fez surgir dilemas morais inesperados relacionados à prática biomédica (morte encefálica, doação de órgãos para transplante, bebê de proveta, descarte de embriões etc). Por outro, os anos 1960 foram também a era da conquista dos direitos civis, o que fortaleceu o ressurgimento de movimentos sociais organizados, promovendo, com isso, um revigoramento dos debates acerca da ética normativa e aplicada. Esses diferentes movimentos sociais adotaram como bandeira e trouxeram à tona, questões relacionadas à diversidade de opiniões, ao respeito pela diferença e ao pluralismo moral(2).

Jonsen pontua três acontecimentos como tendo papel particularmente importante na consolidação da disciplina(5). O primeiro foi o artigo publicado na revista Life, em 1962, que contou a história do Comitê de Seattle, o qual, de forma inusitada, passou o processo de decisão médica para o domínio público, ao delegar os critérios de seleção de atendimento para um pequeno grupo de pessoas, todos leigos em medicina. O segundo evento foi o artigo de Beecher, no New England Journal of Medicine, em 1966, no qual, ao analisar pesquisas científicas em seres humanos, publicadas em periódicos de grande prestígio internacional, mostrou que cerca de 12% dos artigos médicos, continham graves transgressões à ética. O terceiro evento foi o primeiro transplante cardíaco, onde a principal pergunta era: - Como Barnard podia garantir que o doador estava realmente morto no momento do transplante? Esse fato lançou questões de difícil resposta, entre elas: - Quando alguém deve ser considerado morto? Se o cérebro morrer, morre também a pessoa?

Outros eventos são lembrados como de importância fundamental na história da bioética, como a luta pelos direitos dos pacientes nos Estados Unidos e a publicação do livro Princípios da Ética Biomédica, em 1979, que consolidou a força teórica da bioética (6). Os autores do livro afirmam que ele "oferece uma análise sistemática dos princípios morais que devem ser aplicados à biomedicina" e sugerem quatro deles como base de uma teoria bioética consistente:

1º) Autonomia: corresponde ao respeito pelo direito de cada pessoa de auto governar-se, o que implica que todos os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos e as pessoas com autonomia diminuída (os socialmente vulneráveis) devem ser protegidas de qualquer forma de abuso. Do ponto de vista prático, isto significa que a vontade do paciente deve ser um pré-requisito fundamental nos procedimentos médicos.

2º) Beneficência: é o bonum facere (fazer o bem), que remonta à antigüidade clássica com o juramento hipocrático, o qual enfatiza a necessidade de buscar sempre o bem-estar dos enfermos.

3º) Não maleficência: é o princípio hipocrático primum non nocere (em primeiro lugar não lesar), que alude ao cuidado nas intervenções.

4º) Justiça: é o princípio formal de eqüidade, no qual os iguais devem ser tratados de modo igual e os desiguais de modo desigual. O que está em jogo não é que todos devem receber o mesmo, mas que cada um deve receber o que lhe é proporcional, o que merece, aquilo a que tem direito.

A bioética, na nossa opinião, deve ser vista não como uma derrubada da ética médica clássica (tanto que ela adotou os seus princípios básicos, a beneficência e a não maleficência), mas como a sua adaptação aos novos tempos, com a conseqüente mudança de postura do médico, para dar uma melhor resposta aos desafios éticos surgidos com as mudanças sociais e a evolução do conhecimento e da tecnologia.

BIBLIOGRAFIA

1. SÉGUIN E. Biodireito. Rio de Janeiro, Lumens Juris, 2001.
2. DINIZ D; GUILHEM D. O que é Bioética? São Paulo, Brasiliense, 2002.
3. LOLAS F. BIOÉTICA - O que é? Como se faz? São Paulo, Loyola, 2001.
4. POTTER VR. Bioethics: Bridge to the Future. New Jersey, Prentice-Hall, 1971.
5. GOROVITZ S; JAMETON AL; MACKLIN R; O' CONNOR JM; PERRIN BPSC; SHERWIN S. Moral Problems in Medicine. New Jersey, Prentice-Hall, 1976.
6. BEAUCHAMP T; CHILDRESS JF. Principles of Biomedical Ethics. New York, Oxford University Press, 1979.

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