Versão Inglês

Ano:  1974  Vol. 40   Ed. 2  - Maio - Dezembro - (62º)

Seção: Artigos Originais

Páginas: 347 a 355

 

Nova Técnica no Tratamento Cirúrgico de Fístulas Congênitas Pré-Auriculares

Autor(es): Décio R. Campana* e
Lídio Granato**

As fistulas congênitas pré-auriculares recebem ainda as denominações de sinus pré-auricular e coloboma auris. Essa patologia descrita por Heusingerl e Virchow2 em 1864, é uma má formação que se instala por alterações na embriogênese do pavilhão auricular1, 10. Sua incidência na população é variável, segundo diferentes autores: 0,19% (Urbantschutseh 1877; Bezold, 1885)3. Pesquizas feitas na 1ª Guerra Mundial em soldados húngaros mostraram uma incidência de 48:3200 soldados4. Outros autores admitem uma incidência próxima a 1%. Em cerca de 23% desses casos, a fistula é bilateral5. Segundo Congdon (1923)6 e Selkirk (1935)7 essa condição é mais freqüente em negros e orientais. Existe um caráter familiar nas fístulas e parece ser devido a um fator genético de dominância incompleta, de manifestação variável, sem ligação com o sexos.

Formação da Embriopatia

A hipótese mais aceita na formação dos sinus pré-auriculares é a de His (1885)9. Para compreendermos o aparecimento da má-formação, é necessário lembrarmos a formação embriológica do pavilhão aricular. O aparelho branquial toma-se evidente no embrião na 4.ª semana e sua diferenciação se completa da 6.ª à 8.ª semana. Este aparelho é formado por seis arcos branquiais separados lateralmente por sulcos ou fendas branquiais. Internamente a separação é feita por outros sulcos; as bolsas faríngeas. Em torno da 1.ª fenda branquial (que dará origem ao meato acústico externo), formam-se seis saliências ou tubérculos, três anteriormente (do 1.° arco branquial) e três posteriormente (do 2.° arco). As três originárias do 1.° arco; no desenvolvimento, formarão o trágus e a hélix. As três posteriores darão origem à anti-hélix, anti-trágus e lóbulo da orelha. A falta de fusão entre esses tubérculos auriculares, propiciará a formação de um pertúito epidérmico, invaginado, que é o coloboma auris. Aird (1949)10 admite sete posições diferentes na localização dessas fístulas. Entretanto raramente a localização é diferente da margem anterior do ramo ascendente da hélix, porque gerálmente a falta de fusão é entre o 1.° e o 2.° tubérculo (1.° arco). Às vezes junto com as fístulas observamos má formação do pavilhão (microtia, poliotia) e mesmo alguns casos com disacusia neurossensorial ou condutiva. Essas fístulas não devem ser confundidas com as fístulas de origem da 1.ª fenda branquial, que são de localização infra-auricular e supra-hioidéa. Apresentam, quando completas uma abertura infra-auricular e outra no meato acústico externo. Estas fístulas são raras, existindo poucos casos descritos na literatura. Num dos casos que será por nós apresentado, havia um trajeto fistuloso com abertura logo abaixo da inscrição inter-trágica, que terminava no -meato acústico externo.

Sintomatologia

A maioria dos portadores de sinus pré-auricular não apresentam qualquer queixa durante a vida. Em alguns casos, porém, a sintomatologia se instala com a eliminação pela abertura da fístula de material fétido, esbranquiçado ou purulento.



FIG. 1- Fístula pre-auricular



Em outros casos a sintomatologia grave com a formação de um abcesso pré-auricular, que muitas exige drenagem cirúrgica, como medida de urgência.



FIG.2A - Fístula pré-auricular infectada.



FIG. 2B - Fístula pré-auricular infectada.


Nos casos cronicamente infectados, há sofrimento pele da pele próxima da fístula, com instalação de piodermites, atrofias e cicatrizes viciosas.



FIG. 3-A - cicatriz viciosa na região pré auricular.



FIG. 3-B - Seqüela de abcesso na região pré-auricular.



Apenas nos casos sintomáticos é que nós intervimos cirurgicamente para sua extirpação total.

Material e Método

A aparente facilidade que inspira o tratamento dessas lesões é que leva os diferentes autores a um grande número de recidivas pós-operatórias. Nestes casos uma nova cirurgia será muito mais difícil que a primeira, para controlar o processo patológico. A técnica que agora propomos visa justamente evitar recidivas. Utilizamos para a exérese o microscópio cirúrgico otológico, que permite visão perfeita do cisto até suas últimas terminações. Com o paciente sob anestesia geral, infiltramos solução anestésica adrenalinada em torno da abertura da fístula (visamos com isto diminuir o sangramento durante a cirurgia). Utilizamos em seguida uma agulha fina, de injeção intra-dérmica, em que cortamos sua ponta a mais ou menos 2 mm do canhão. Ficamos assim com a agulha curtíssima e sem bisel.

Injetamos pelo pertúito da fístula uma solução antibiótica com a finalidade de lavar todo o trajeto fistuloso, altamente infectado. Eliminando-se as descamações e os detritos, fazendo-se assim uma assepsia desse canal, evitando-se a contaminação do campo cirúrgico no caso de rompimento deste trajeto durante a cirurgia. Em seguida com a mesma agulha, injetamos azul de metileno no trajeto, servindo-o canhão da agulha para impedir o refluxo do azul, permitindo assim contrastar todo o trajeto.



FIG. 4 - Agulhas bem curtas e sem biséis. Uma contém sol. de antibiótico e outra azul de metileno.



FIG. 5 - O canhão da agulha impede o refluxo do líquido injetado.



Retirando-se a agulha massageamos a região para eliminarmos o excesso de azul de metileno, evitando-se desta forma o borramento do campo cirúrgico no caso de romper a fístula nó momento da dissecação. Agora sob o microscópio otológico com seis aumentos fazemos uma incisão elíptica com seu maior eixo vertical, superficialmente em torno da abertura fistular.



FIG. 6 - Incisão elíptica peri-fistular.



Ainda sob o microscópio, com material delicado de cirurgia plástica, dissecamos o trajeto fistuloso que é detectado pela coloração azulada. O deslocamento prossegue até a retirada total da fístula.



FIG. 7 - Ressecção de todo trajeto fistuloso.



As fístulas geralmente medem 1 a 1,5 cms, caminhavam em nossos casos em direção ligeiramente póstero-inferior, estando a extremidade freqüentemente aderida à borda medial da cartilagem da hélix, próxima a cartilagem do meato acústico externo. Sua aderência era firme e muitas vezes necessitamos retirar pequenos fragmentos de pericôndrio ou cartilagem da hélix. Com o aumento proporciado pelo microscópio, visualizamos perfeitamente a fístula contrastada com suas irregularidades. A fístula não é tubular simples mas ramificada, assemelhando em sua parte terminal, aos dedos de uma luva. Pelos métodos cirúrgicos usuais esses verdadeiros divertículos fistulares não são visualizados e são deixados, propiciando assim um número grande de recidivas. Com a fístula contrastada e ampliada pelo microscópio, a retirada faz-se de maneira global, o que nos leva à segurança de uma cirurgia radical. Após hemostasia e sutura dos planos profundos com fio de catgut 3-0, fechamos a pele com fio mono-nylon ou 4-0 com agulha atraumática. O curativo é compressivo e a retirada dos pontos é feita em torno do 5.° dia de pós-operatório. O resultado estético é ótimo, desde que a pele circunscrita não tenha sofrido muito anteriormente.

CASUÍSTICA

Operamos por essa técnica 12 casos de coloboma auris, sendo 11 casos na posição pré-auricular e uma fístula com abertura abaixo de incisura inter-trágica.

Caso I - D.R.S., 9 anos, branco, masc., operação em 12-10-72. Paciente havia tido infecção agúda varias vezes e tivemos necessidade de adiar a operação 2 vezes, por reagudização do processo. Alta com bom resultado estético sem recidiva. Anátomo-patológico: cisto dermóide da pele.

Caso II - J.G.S., 34 anos, branco, masc., operação em 3-2-73. Fístula unilateral com infecções repetidas. Teve abcesso anos atrás, que foi drenado ao nível da cruz da hélix, tendo persistido um pequeno orifício nessa zona. No momento da injeção do contraste pela abertura da fístula, houve extravasamento do mesmo pelo pertúito da drenagem. Resultado bom, sem recidiva. Anátomo-patológico: cisto dermóide de pele.

Caso III - S.L.O., 3 anos, branco, masc.; operação em 8/2/73. Infecções repetidas com fistulização secundária a 1 cm para frente da hélix. Erosão da pele em toda a zona. Sutura de pele sob tensão por necessidade de retirada de fagmento de pele necrosado. Resultado estético razoável, sem recidiva. Anátomo-patológico: cisto dermóide de pele.

Caso IV - A.M.G., branco, masc.; operação em 26/2/73. Fístula bilateral. Infecções freqüentes do lado direito, com tecido cicatricial em torno da fístula. Operado apenas do lado direito. Resultado bom, sem recidiva. Anátomo-patológico; cisto epidermóide subcutâneo.

Caso V - P.S.D., 4 anos branco, masc.; operado em 5/4/73. Caso de reoperação. Seis meses antes havia sido operado por um de nós, por ressecção sem microscopia. Houve recidiva do processo logo após. Resultado bom. Anátomo-patológico: cisto epidermóide.

Caso VI - A.F., 27 anos, branco masc.; operado em 29/4/73. Paciente apresenta fístulas bilateralmente. Operado do lado direito há anos, com bom resultado. Foi operado do lado esquerdo pela nova técnica, também com bom resultado. D sinus era grande e aderente ao tragus. Anátomo-patológico: cisto epidermóide. De seus quatro filhos, três tem fístula pré-auricular, sendo que num deles há fístulas bilaterais. O paciente tem 9 irmãos, um dos quais tem coloboma. Os casos VII e VIII são seus filhos.

Casos VII - M.F., 2 anos, branco, masc.; operado em 29/5/73. Fístula bilateral. Operado do lado esquerdo. A cirurgia não correu normalmente, pois houve extravasamento do azul de metileno no campo (isto ocorreu porque nesse caso, não foi feita a massagem fiara esvaziamento do azul do trajeto fistular). O resultado foi bom. Anátomopatológico: cisto epidermóide do derma.

Caso VIII - A.F.F., 4 anos, branco, masc., operado em 29/5/73. Fístula do lado direito. Estava aderente à cartilagem da hélix. Resultado bom, sem recidiva. Anátomo-patológico: fístula revestida por epitélio pavimentoso bem formado.

Caso IX - A.V.O., 29 anos, fem., branca; operada em 12/6/73. Apresentava fístula bilateral mas com infecções repetidas com supuração e eliminação de massa mal cheirosa, apenas pelo lado direito. O lado esquerdo era assintomático. Resultado bom, sem recidiva. Anátomo-patológico: cisto epidermóide. Em janeiro de 1974, a paciente procurou-nos com infecção aguda abcedada do lado esquerdo (oposto ao da cirurgia). Drenamos o abcesso e oportunamente operaremos a fístula desse lado.

Caso X - A.S., 3 anos, branco, masc., operado em 30/8/73. Fístula bilateral (tio com fístula bilateral também). Operarmos apenas o lado direito que apresentava sintomatologia. 0 paciente teve várias infecções agudas, inclusive abcessos recidivantes. Piodermite em toda região peri-fistular. A cirurgia correu normalmente mas devido ao tecido necrótico, não houve possibilidades de sutura de pele. Essa cicatrização ficou por segunda intenção. Dois meses após houve supuração superficial que cessou com tratamento local com pomada cicatrizante. Acreditamos tratar-se de supuração devida a algum ponto de cat-gut não absorvido que foi eliminado. Após esse episódio o paciente está absolutamente assintomático. Resultado estético razoável, pois ficou cicatriz viciosa na região. Anátomo-patológico: cisto epidermóide.

Caso VI - A.X.V., 4 anos, fem., branca, operada em 9/10/73. Operada duas vezes anteriormente; sem microscopia, com recidiva. Havia muita granulação na área pré-auricular. Retiramos uma estrutura com conteúdo sebáceo, que devia corresponder ao fundo de saco fistular. Resultado bom, sem recidiva.

Caso XII - V.L.M., 10 anos, branca, fem., operada em 6/11/73. A paciente apresentava um trajeto fistular na região de incisura inter-trágica e uma formação cística a ela ligada na porção cartilaginosa do meato. Por duas vezes havia sido drenado abcesso do conduto. Neste caso não conseguimos injetar a solução de azul de metileno pois o cisto estava cheio de material esbranquiçado endurecido. A cirurgia foi feita sob microscopia porém sem o contraste. Resultado bom, sem recidiva. Anátomo-patológico: cisto epidermóide.

Comentários

1 - Foram operados pela técnica descrita; doze casos de sinus pré-auricular, comprovados pelos resultados anátomo-patológicos, sem recidiva em nenhum dos casos. As diferentes técnicas empregadas pelos diferentes autores mostram recidivas maior ou menor que aparecem geralmente a curto prazo, isto é, 1 e 2 meses após a cirurgia. A técnica descrita é original e quando bem executada, torna quase nula a possibilidade de recidiva.

2 - Nos casos recidivados em que interviemos com nossa técnica a cirurgia foi difícil, seja pela fibrose, pela infecção mais profunda e porque restos de fragmentos fúndicos do cisto não são fáceis de serem identificados. O ideal é resolver o problema já na primeira cirurgia porque na recidiva a cirurgia é mais difícil mesmo sob microscopia.

3 - O caso n.° XII nos leva a admitir, pela localização, a possibilidade de tratar-se de fístula originada da 1.ª fenda branquial e não uma fístula do 1.° e 2.° arcos.

4 - já operamos com técnica semelhante um cisto dermóide recidivado do dorso nasal, com ótimo resultado.

Resumo

Os autores apresentam técnica original no tratamento cirúrgico das fístulas congênitas pré-auriculares. Eles utilizam o microscópio cirúrgico otológico após prévio contraste da fístula com azul de metileno. Operaram por esse método doze casos, sem recidiva.

Summary

The authors describe an original surgical treatment for congenital pré-auricular fistulas. An otological surgical microscope was utilized after a previous injection of ethylene through the fistula. Twelve patients have been treated by this surgical technique, without any recurrence of the diasease.

Agradecimento Agradecemos ao Sr. Gilberto De M. Abreu pela documentação fotográfica dos casos apresentados.

Referências Bibliográficas

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3. Bezold, W. - "Schuluntersuchungen uber das Kindliche Gehorogen". Wiesbaden: J. F. Bergmann, 1885.
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6. Congdon, E. D.; Rowmanavongse, S. & Vava-misera, P. - Human Congenital auricular and juxta auricular fossae, sinuses and scars (including soçalled aural and auricular fistulae) and the bearing of their anatomy upon the theory of their genisis. American Journal of Anatomy, 51: 438-64, 1932.
7. Selkirink, T. K. - Fistula auris congenita. American Journal of Diseases of Children, 49:431-47, 1935.
8. Connon, F. E. - The inheritence of ear pits in six generations of a family. Journal of Heredity, 32:413-4, 1941.
9. His, W. - "Anatomie Menschlichen Embryonen", Port 3, p. 211. Leipzig: F. C. W. Vogel, 1885.
10. Aird I. - "A Companion to Surgical Studies", p. 360, Edinburgh: Livingstone, 1949.




* Assistente da Clínica de ORL do Hosp. do Servidor Público Municipal de São Paulo.
** Prof. Assistente da Fac. Medicina de Ciências Médicas da Sta. Casa de São Paulo. Departamento de ORL.

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