Versão Inglês

Ano:  1974  Vol. 40   Ed. 2  - Maio - Dezembro - (56º)

Seção: Artigos Originais

Páginas: 324 a 329

 

Complicações no Tratamento Cirúrgico do Carcinoma de Laringe e Hipofaringe*

Autor(es): Pedro Paulo de Azevedo Sodré**,
Alvaro P. Barbosa***,
Péricles Barbato****,
Carlos Roberto P. Blassioli****,
Osiris Camponês do Brasil***** e
Tadayoshi Akiba****

O tratamento cirúrgico do carcinoma de laringe e hipofaringe sempre envolve riscos e complicações de grau variável segundo a extensão da intervenção e as condições locais e gerais dos pacientes a ele submetido. Em contraste com a mortalidade intra e pós-operatória imediata no início do século atual, que Canuyt1 avaliava em cerca de 10%, mas Thomson e Negus11 faziam referência a índices bem mais elevados (cerca de 50% nas laringectomias parciais e quase 100% nas primeiras laringectomias totais), o aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas empregadas, aliado ao uso do antibiótico e à hemoterapia, levaram a uma redução notável de tal mortalidade, situando-a em menos de 3%11. Essa redução veio permitir maior agressividade nas intervenções, visando não apenas a exérese dos órgãos lesados bem como a remoção da drenagem linfática regional, nas formas de esvaziamentos ganglionares cervicais. Concomitante com os benefícios auferidos com a ampliação das intervenções cirúrgicas, persistiram porém complicações, tanto imediatas e tardias. A associação do tratamento radioterápico, de grande valor terapêutico no pré ou pós-operatório, tem contribuído para o aumento de incidência de complicações pelas alterações da vitalidade dos tecidos a ele submetidos3, 10. O presente trabalho tem por finalidade analisar as complicações imediatas e tardias, derivadas de 308 atos cirúrgicos a que foram submetidos pacientes portadores de carcinoma de laringe e hipofaringe, bem como o resultado das tentativas utilizadas na redução de tais complicações.

Material

O estudo baseia-se em intervenções cirúrgicas a que foram submetidos pacientes portadores de carcinoma de laringe e ou hipofaringe, operados na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e Santa Casa de Santos, no período de 1969 a 1974 no total de 308 intervenções, as quais se encontram especificadas a seguir:

Laringectomia total - 107

Laringectomia total com EGC unilateral - 31

Laringectomia total com EGC bilateral - 13

Laringofaringectomia com EGC unilateral - 37

Laringofaringectomia com EGC bilateral - 21

Epiglotectomia - 2

Laringectomia horizontal supraglótica - 6

Laringectomia supraglótica com EGC unilateral - 22

Laringectomia supraglótica com EGC bilateral - 10

Laringectomia glótico-supraglótico com EGC unilateral - 3

Cordectomia - 12

Hemiendolaringectomia- 23

Hemilaringectomia completa - 5

Laringectomia frontal - 3

Laringectomia fronto lateral - 12

Laringectomia total (Serafini) - 1

Após confirmação anatomopatológica (carcinoma espino-celular em 302 e carcinoma indiferenciado em 6) e os exames endoscópicos e radiográficos (Rx de laringe em perfil e tomografia) para avaliar extensão do processo, foram realizados de rotina, no pré-operatório: hemograma, coagulograma, glicemia, dosagem de uréia no sangue, urina, teleradiografia de tórax e exame cardiológico com ECG. As alterações hematológicas, o diabetes e lesões cardiocirculatórias foram compensadas, dentro do menor prazo possível, antes da intervenção cirúrgica. Nos casos submetidos a radioterapia pré-operatória, com TeCo ou supervoltagem, em doses de 2.500 a 3.000R, o ato cirúrgico foi executado antes de decorridos 30 dias do início das aplicações. A indicação programada da terapêutica actínica pré-operatória teve por finalidade a transformação de casos tidos como inoperáveis, pela fixação ganglionar cervical profunda, em casos passíveis de intervenção cirúrgica. Nos casos de carcinoma supraglótico, a intervenção cirúrgica foi associada à radioterapia pós-operatória (6.000 a 8.000R) na quase totalidade dos casos (93%). Nas laringofaringectomias ampliadas com EGC, cerca de 27% foram submetidos a tratamento radioterápico complementar. Parte dos casos (5%) foram submetidos a laringectomias totais ou parciais após insucesso de tratamento radioterápico com dose tumoral plena. Do total das intervenções realizadas 210 (68%) referem-se a laringectomia totais e 98 (32%) a parciais. O esvaziamento ganglionar cervical unilateral incidiu em 94 (30%) das intervenções e o EGC bilateral em 44 (14%). No pós-operatório foram sistematicamente empregados antibióticos de largo espectro, pelo período mínimo de 8 dias, por via parenteral. O uso de sonda naso-esofágica para alimentação foi prescindido apenas nos casos de laringectomias parciais de tipo vertical endolaríngeas.

Análise das Complicações

A estatística das complicações imediatas e tardias, oriundas do ato cirúrgico em si e das condições pré e pós-operatórias, são sumariadas no Quadro I. Pela alternativa das técnicas cirúrgicas empregadas e pelas diversidades e extensões das lesões em tratamento, a análise das complicações ocorridas merece análise específica que expomos a seguir:



QUADRO I



I - Hemorragias:

A ocorrência de sangramento de menor porte no pós-operatório imediato de cirurgias cervicais constitui fato rotineiro, independentemente de hemostasia a mais cuidadosa, dada a intensa vascularização arterial e venosa da região. Tal fato justifica a drenagem local, seja de forma simples com drenos de Penrose, ou tubular, seja com o uso de drenagem aspirativa contínua. As hemorragias imediatas de importância, levando a estado de choque ou pré-choque hipovolêmico, envolvem a revisão cirúrgica de emergência10. Em nossa casuística, houve ocorrência de 4 casos com tais características, em 3 dos quais foi possível o achado do vaso sangrante; no caso restante observou-se sangramento difuso. Todos os pacientes obtiveram recuperação integral. Nos casos em que ocorre exposição de artérias carótidas por necrose de retalhos ou na formação de fístulas faringo-cutâneas lateralizadas, há possibilidade de hemorragia arterial abundante e rápidas. Tal fato costuma verificar-se entre o 4.° e 7.° dias pós-operatório e a ocorrência quase sempre é fatal. Quatro de nossos pacientes foram acometidos desta complicação hemorrágica tardia, sendo que em apenas dois foi possível evitar o êxito letal: um por compressão digital seguida de ligadura da a. carótida comum D, ocorrendo como seqüela hemiplegia contralateral e no outro por tamponamento externo e ligadura de v. jugular interna D, sem seqüela.

II - Broncopneumonia aspirativa:

A ocorrência de aspiração traqueobrônquica ocorre principalmente no pós-operatório da laringectomia parcial horizontal supraglótica. Neste tipo de intervenção o ato da deglutição sofre profunda alteração, que é agravado quando existe necessidade de ressecar estruturas adjacentes, tal como parte da base da língua. Embora a maior parte dos operados venha a desenvolver maior ou menor grau de adaptação, tem sido sugerida a miotomia do m. cricofaríngeo para a solução do problema7. Em nossos casos temos utilizado a dilatação forçada da boca do esôfago, com balão pneumático de Tucker, durante o ato cirúrgico e se necessário no pós-operatório tardio. Desta forma temos conseguido a descanulização definitiva dos pacientes 10 a 15 dias após a intervenção. Mesmo com tais cuidados e cobertura antibiótica sistemática, ocorreram, nas 308 intervenções em estudo, 6 casos de bronco-pneumonia aspirativa (1,9%) com 3 óbitos.

III - Traqueite crostosa:

O traqueostoma definitivo como conseqüência das ressecções totais da laringe impede que o ar inspirado sofra a umidificação e aquecimento fisiológicos; no pós-operatório imediato o uso de inaloterapia e mucolíticos costuma evitar acidentes; posteriormente a mucosa traqueal adapta-se às novas condições respiratórias. Ainda que não referida por muitos autores, a tráqueo-bronquite crostosa é pos nós considerada com aplicação grave, podendo levar ao óbito por asfixia. Comumente tardia, predomina nos períodos de inverno, associada a infecções respiratórias. Em nossa série registramos 7 ocorrências que necessitaram internação para tratamento intensivo, (inaloterapLá contínua, mucolíticos em uso tópico e parenteral, corticosteróide e antibioticoterapia), todos com boa evolução.

IV - Estenose do traqueostoma ou microstomia constitui eventualidade possível; em nossa estatística pudemos observar 2 casos, o primeiro em que ocorreu deiscência completa da sutura traqueocutânea por necrose do côto traqueal em paciente operado após insucesso do tratamento radioterápico; no segundo, a necessidade de exérese do terço proximal da traquéia obrigou a descolamento de retalhos para anastomose abaixo da fúrcula estemal. A realização de traqueostoma definitivo bem amplo, com a secção traqueal em bisel, nos tem permitido a remoção posterior da cânula traqueal na maioria dos casos. Na presença de estenose tardia, a execução de plástica em Z na margem superior do traqueostoma pode resolver o problemas.

V - Estenose de hipofaringe:

Nas intervenções supraglóticas ocorreram 4 estenoses de tipo cicatricial; em 2 casos foi possível a descanulização definitiva após tratamento dilatador endoscópico prolongado. Em um dos pacientes em que não obtivemos sucesso, tentativas de debridamento com bisturi elétrico por via endoscópica apenas vieram agravar o quadro. Mais comum é o edema persistente e volumoso, pós-radioterápico, envolvendo as regiões aritenóideas; nesses casos, o uso de diatermo-coagulação, sob laringoscopia de suspensão, com extrema cautela, utilizando -terminal de ponta fina aplicado em áreas restritas e múltiplas apresentou bons resultados em alguns casos. As laringofaringectomias em que a ressecção da neoplasia envolveu grande parte da mucosa da hipofaringe, a sutura da ferida cirúrgica determinou estenose em 5 casos; tentativas de tratamento dilatador não foram bem sucedidas, a alimentação de tais pacientes fica restrita a dieta líquida.

VI - Estenose de laringe:

Em tumores endolaríngeos as cirurgias parciais verticais podem determinar estenoses de nível giótico ou subgiótico, em freqüência variável4, 8. Quatro casos de estenose laríngea de tipo cicatricial foram observados: 2 em hemilaringectomias completas com anastomose laringotraqueal imediata, 1 em hemilaringectomias incompletas (cordectomia ampliada ou hemiendolaringectomia) e 1 em laringectomia fronto-lateral; os dois últimos casos puderam ser descanulizados após tratamento dilatador endoscópico. Em nossa experiência, tivemos oportunidade de observar que o aparecimento de tecido de granulação exuberante ao nível da região anterior da glote constitui quase que regra nas laringectomias frontolaterais; no caso em apreço, admitindo a hipótese de recidiva neoplásica, efetuamos remoção externa do granuloma, por via endoscópica, em três oportunidades o que acreditamos precipitou a esténose. Precavidos, nos casos posteriores adotamos atitude mais conservadora havendo regressão espontânea do tecido exuberante.

VII - Infecção:

Embora com cobertura antibiótica a presença de infecção local ocorreu com freqüência relativamente alta (26%), as intervenções mais extensas ampliadas com EGC uni ou bilateral, contribuindo para maior incidência, visto que as laringectomias parciais verticais raramente infectam. Tomamos por conduta, nas ocasiões em que persiste supuração em torno do 10 ° PO, a coleta de material para cultura e antibiograma; via de regra, são encontradas bactérias gram-negativas, suscitando a troca do antibiótico empregado, orientada pela sensibilidade que o exame revela.

VIII - Necrose de retalhos:

Em especial nos pacientes submetidos a radioterapia prévia, a necrose dos retalhos cutâneos pode ocorrer com relativa freqüência, promovendo deiscências por vezes extensas. Na atual série observamos 11 casos, embora de forma parcial, a cicatrização ocorrendo por segunda intenção. E conhecida a necessidade de preservar o m. platisma nos casos irradiados. A utilização da incisão cervical em U, bem como a preservação, quando permitida, da metade superficial do m. esternocleidomastóideo, tem nos permitido proteção suficiente às aa. carótidas, evitando eventual ruptura.

IX - Lesão do dueto torácico

Por 6 vezes ocorreu lesão do dueto torácico durante esvaziamento ganglionar cervical, percebidas durante o ato cirúrgico, sendo providenciada sua ligadura imediata. A incidência de fístulas quilosas e quilotórax, de alta gravidade foram analisadas por Fitz-Hugh e Cowgill2 os quais ressaltam a possibilidade de variações anatômicas e resultados terapêuticos.

X - Fístula faringo-cutânea

Sem dúvida, a complicação pós-operatória de maior freqüência nas laringectomias totais, provocando ao par de possíveis acidentes hospitalização prolongada é por vezes necessitando correções plásticas de natureza complexa. A incidência percentual da complicação tem sido omitida por muitos autores, embora numerosas técnicas para a oclusão da abertura faríngea sejam descritas5. Parnell9, em estatística recente observou incidência de 33% nos casos submetidos apenas a tratamento cirúrgico e 50% quando da associação cirurgia-radioterapia, em laringectomias.ampliadas com EGC. Até 1971 a ocorrência de fístula faringo-cutânea em nossos casos pode ser considerada alta (63%). Nessa ocasião, durante ato cirúrgico em que fortuitamente perfuramos o retalho músculo-cutâneo ao nível da região hióidea, notamos a possibilidade de orientar a formação da fístula, com a colocação de dreno tubular fino (tipo Pezzer) através da perfuração com sua extremidade proximal alojada frente a sutura de hipofaringe, que costumamos manter até o 8.° PO; tal manobra, ainda que não tenha reduzido a incidência de fistulização, veio permitir sua orientação, afastada do traqueostoma, e a sua exiquidade de dimensões, com fechamento espontâneo em geral 3 a 5 dias após a remoção do dreno. Um ano após, ao reintervimos em paciente submetido a laringectomia total, cerca de 1 hora após o ato cirúrgico, com hemorragia abundante, pudemos observar que a sutura da hipofaringe, recém-executada com pontos transfixantes de catgut cromado atraumático estava quase que totalmente desfeita, por dilaceração da mucosa. Desde então passamos a realizar a sutura da hipofaringe com pontos separados extra-mucosos não-transfixantes, inicialmente com catgut cromado atraumático e posteriormente utilizando fio de i algodão, em um só plano. Com a nova técnica empregada, a ocorrência de fístulas apresentou redução drástica, não atingindo 5% dos casos submetidos a laringectomias totais e laringofaringectomias, com ou sem EGC e mesmo em recidivas pós-radioterápicas. A Fig. 1 evidencia a técnica anteriormente empregada e a em uso atual.





Resumo

Os A.A. apresentam a incidência e comentam as principais complicações ocorridas em 308 intervenções cirúrgicas no tratamento do carcinoma de laringe e hipofaringe. Medidas destinadas à prevenção de fístula faringo-cutânea são destacadas.

Summary

Posoperative complications in 308 surgycal interventions of larynx and hypopharynx carcinoma are reported and commented. Means applied to the prophylaxis of pharyngeal-cutaneous fistula are presented.

Bibliografia

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11. Thomson, S. and Negus, V. E. - Disease of the nose and throat. 4a. ed. Appleton-Century Co., 1937, pg. 571.




* Trabalho realizado na Fac. Ciênc. Méd. Santa Casa S. Paulo e Fac. Ciênc. Méd. Santos (Disc. Endoscopia Peroral da FCMSCSP).
** Instrutor de Ensino da Disc. Endoscopia Per-Oral da FCMSCSP.
*** Aux. Ens. da Disc. Otorrinolaringologia da Fac. Ciênc. Méd. Santos.
**** Médico Residente da Disc. Endoscopia Per-Oral da FCMSCSP.
***** Médico Residente do Hosp. Serv. Pub. Est. "Francisco M. Oliveira".

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