Versão Inglês

Ano:  1974  Vol. 40   Ed. 2  - Maio - Dezembro - (22º)

Seção: Artigos Originais

Páginas: 200 a 202

 

Otite Externa Maligna em Lactente - Apresentação de um caso

Autor(es): Pedro Luiz Cóser* e
Vicfório De costa

Introdução

O termo Otite Externa Maligna foi pela primeira vez empregado na literatura por Chandler para designar as lesões do conduto auditivo externo causadas por Pseudomonas aeruginosa, que nesta região anatômica têm caráter agressivo único dentro das otites externas. Caracteristicamente progride rapidamente, iniciando-se com dor contínua e forte, corrimento purulento, com a formação de tecido de granulação que se dissemina com o passar do tempo ao conduto e a seguir propaga-se para a cartilagem destruindo-a e invadindo o tecido celular subcutaneo, dando origem a tumefação das regiões peri-auricular e parotídea que se apresentam hiperêmicas e hiperestésicas. Em seqüência, a infecção produz osteite que pode formar seqüestros ósseos e comprometer os nervos cranianos da região (mais comumente afetado o sétimo par craniano) podendo ainda atingir outros ~ pares IX, X, XI, XII1, 2, 3, 5, 6, 7 e mais raramente o V6, VI e III3 produzindo em grande número de casos, meningite, trombose do seio lateral, abcesso cerebral e morte. Em 38 casos de Chandler3 36 dos pacientes eram diabéticos e a faixa etária entre 35 e 91 anos de idade, com mortalidade de 12 pacientes em 38 casos. O prognóstico agrava-se quando há paralisia facial óbito de 6 pacientes entre 16 casos e mais ainda quando ocorre envolvimento múltiplo dos pares cranianos 9 óbitos em 12 casos1, 3, 5, 6, 7. Por tratar-se de processo patológico que está sendo recentemente estudado e porque não há qualquer referência na literatura nacional de que tenhamos conhecimento, apresentamos este trabalho que registra um caso em lactente desnutrido, de 1.0 grau e não diabético.

Apresentação do Caso

J.A.M.L., sexo masculino, branco, 2 meses de idade foi trazido no dia 3.74 ao ambulatório de Puericultura de nossa Universidade. Relatava a mãe que a criança apresentava diarréia há mais ou menos 10 dias e que coincidira com a troca da alimentação com leite artificial para leite puro de vaca. Referia ainda que há 3 dias a criança não dormia, chorando muito, estava bastante irritada e febril desde o dia anterior à consulta.

Exame Fisico - a criança apresenta-se desnutrida de 1 0 grau (idade peso - 1 mês, idade estatura - 1 mês). Reage fortemente à compressão do tragus e nota-se corrimento purulento na orelha esquerda.

Antecedentes Pessoais - N N - parto normal com episiotomia; peso ao nascer 3 200 g, estatura 51 cm, PC 35 cm, PT 32 cm e Apgar 10.

Mórbidos - esteve internada em 28/11/73 com Gastroenterite e desidratação de 20 grau. Em 5 dias teve alta curada.

Imunitário - BCG oral aos 4 dias.

Antecedentes Familiares - nada digno de nota, a não ser baixas condições sócioeconômicas. Internado em 411/74 com diagnóstico de Gastroenterite, desnutrição e otite. O exame físico do boletim de internação chama atenção para o ouvido esquerdo que mostra corrimento pio-sanguinolento, edema muito doloroso à palpação ao redor do pavilhão auricular e também da região parotídia. Observa-se também paralisia facial do tipo periférico orno lateralmente.

Exames Complementares - ph - 7,4, PaCO2 - 31,50 mm Hg, Pa 02 - 125 mm Hg, deficit de base - 4,2 meq/litro, sat. hb. - 98,45%, HCO 3 - 21 meq/I, CO2 total 22,10 meq/I.

Hemograma - Eritrócitos 2.800.000 mm cúbico - Hb - 8,28%.

Tratamento - Instituímos a seguir terapêutica, após consulta ao otorrinolaringologista, que fez a hipótese diagnóstica de parotidite a partir de uma otofurunculose. NPVO - hidratação, Dipirona 125 mg, Furasolidona 10 mg de 6/6 hs VO e Ampicilina 125 mg de 12/12 hs VO. Este tratamento foi mantido até o dia 811/74 quando foi trocado o antibiótico por não apresentar melhora do quadro clínico e sim agravamento, visto que o conduto foi, aos poucos, preenchido por tecido de granulação, continuando com abundante exudação. Passamos a usar Lincomicina 75 mg IM de 12/12 hs, aspiração diária dos exudatos do ouvido, administrando-se por gotas auriculares um produto contendo Sulfato de Polimixina B, Nitrofurasona, Acetato de Fluoridrocortisona 4 vezes ao dia. Dia 10/1/74 foi solicitada cultura e antibiograma do exudato do ouvido, já que a infecção não cedia à terapêutica instituída. No dia 15/1/74 foi eliminado um seqüestro ósseo pelo meato acústico. No dia 18/1/74 a cultura revelou: Pseudomonas aeruginosa, sensível à Gentamicina e a Cefaloridina e resistentes aos demais antibióticos testados. Nesta data instituiu-se Gentamicina 5 mg de 8/8 hs IM mais instilações locais de Gentamicina 4 vezes ao dia. No dia 21/1/74, ao exame de controle, observa-se enorme cavidade criada pela erosão das paredes do meato acústico e pela eliminação de seqüestro ósseo. A membrana timpânica está íntegra. Pesquisaram-se TBC e Sífilis: VDRL - Negativo, Migliano Negativo, RX tórax - linfonodos mediastinais aumentados e hiperinsuflação do pulmão esquerdo PPD - Negativo. A paralisia facial ainda persiste. No dia 29/1/74 exame comum de urina revela: cilindruria (mais de 50 cilindros p/campo), o hemograma discreta anemia e linfocitose (68%). No dia 2/2/74 suspende-se a Gentamicina e substitui-se por Cefalexina 65 mg de 616 hs VO durante 3 dias. No dia 5/2/74 o conduto apresenta-se cheio de tecido necrótico e polipóide, secreção sanguinolenta e tumefação retroauricular, intensificam-se então os curativos locais e a terapêutica sistêmica passa a ser de manutenção. Alta no dia 2/2/74 com regular estado geral, sendo o paciente transferido para outro hospital, a fim de receber tratamento ambulatorial e possível cirurgia. Após a alta, o menino passou a ser atendido ambulatorialmente, fazendo curativos com aspiração da secreção e instilação de antibióticos locais, mas não se consegue deter o processo infeccioso e o paciente é novamente internado no dia 6/3/74 no Hospital de Caridade de Santa Maria, quando apresentava tumefação arredondada, bem delimitada, de aproximadamente 1 cm de diâmetro, além do meato semiocluido pelo tecido de granulação pela exudação permanente abundante. Cirurgia - no dia 11/3/74 foi realiza-ia intervenção cirúrgica que se inicia com incisão da região do tragus, para retirada do material necrótico e polipóide do conduto, a seguir incisão retro-auricular abrangendo a tumefação anteriormente citada, deslocando-se o pavilhão auricular; verificamos que os responsáveis pela tumefação era um seqüestro ósseo de forma plana de um centímetro de diâmetro que estava sendo eliminado. Com surpresa verificamos que a membrana timpânica estava íntegra. O próximo ato cirúrgico foi o broqueamento do osso infectado e finalmente atapetamento com retalho de pele pediculado, feito com a pele da própria orelha e da sua face interna. Foi deixado dreno de politileno e tamponando-sé o meato com gase furacinada. Exame Histopatológico - o exame do material obtido cirurgicamente revelou osteite a par de processo inflamatório crônico. A criança ficou internada por mais 18 dias (alta em 29/3174) submetida a instilações diárias de Gentamicina e Dexamentasona pelo tubo de politileno e Lincomicina IM nos três primeiros dias, passando-se a usar Eritromicina por mais uma semana e por via oral. O tamponamento foi mantido sempre o mesmo. Com um mês de período pós-operatório foi retirado o tamponamento, e não se encontraram sinais de infecção. O conduto mantinha-se aberto e drenava um pouco de secreção serosa, atribuída a falha na "pega" do enxerto. A criança foi acompanhada, com boa evolução até o dia 11/4/74 sendo que a partir desta data não foi mais trazida à consulta. Um mês depois, 16/5/74, foi novamente apresentada ao ambulatório mostrando então recidiva da infecção, agora com fístula retro-auricular, drenando exudato purulento abundante e com o conduto praticamente fechado. Pela expressão do pavilhão, obtinha-se secreção espessa do orifício residual do meato. 0 paciente apresentava febre 38,40 C, não se alimentava e ainda diarréia. Tentouse terapêutica ambulatorial com antitérmico, antiespasmódico, Ampicilina VO e curativos locais para melhora do estado da criança enquanto se aguardava internação. No dia 23/5/74 foi hospitalizada no Hospital Universitário Centro com um plano terapêutico para 21 dias com Carbenecilina 150 mg/Kg/dia, EV de 2/2 hs associada a Gentamicina 4 mg/Kg/dia IM de 12/12 hs e curativos locais com limpeza da lesão e instilação de algumas gotas de Gentamicina. Recebendo ainda antitérmicos e solução endovenosa composta de Soro glicosado 5°/a 250 ml, NaCl 50% 1,5 ml, KCl 10% 2,5 ml, Gluc. Ca 10% 2,5 ml (XII gotas por minuto), trocando-se o frasco para manter a via de administração da Carbenecilina. A criança respondeu muito bem à medicação sendo que no 3 o dia de tratamento já estava afebril, começando a ganhar peso a partir do 10° dia. No 10° dia da internação a Uréia, pedida para- controle da função renal, se achava em 22 mg/100 ml. No 7.° dia de evolução já não drenava mais exudato espontaneamente, mas à expressão do pavilhão se obtinha material semi-sólido, amarelado que o exame revelou ser material necrótico. No 15.° dia a medicação foi suspensa por dificuldade de administração da Carbenecilina, uma vez que 5 veias já haviam sido perdidas por trombose. Nesta ocasião a criança já não apresentava sinais clínicos de infecção, e a cultura do material necrótico feita revelara crescimento bacteriano. Seguiu-se então com Ampicilina 200 mg de 6/6 hs para encerrar o plano inicial de 21 dias. Teve alta no dia 11/6/74 com instruções para ficar em observação e ser submetida à nova intervenção plástica em tempo oportuno. No dia 25/6/74 observou-se a presença de formações brancas, algodonosas no interior da cavidade retro auricular, possivelmente infecção fungica saprofítica, que se estabeleceu sobre aquela área de difícil higiene. Com limpeza diária e aplicação de pomada com Nistatina conseguiu-se curar o processo. Até a presente data (22/8/74) a criança continua assintomática.

Discussão

A Otite Externa Maligna normalmente é descrita em indivíduos adultos idosos e diabéticos1, 2, 3, 4, 5, 6, 7. Parece que ainda não foi descrito nenhum caso em criança, daí a importância deste caso por demonstrar que uma criança desnutrida, mesmo em 1.° grau pode apresentar condições favoráveis à instalação desse processo e na ausência de diabéte. No tratamento desta enfermidade foram empregados vários antibióticos sempre com resultados insatisfatórios. O prognóstico melhorou consideravelmente quando foi utilizado o esquema preconizado por Chandler3.

Resumo

É apresentado um caso de otite externa maligna, causada por Pseudomonas aeruginosa, em lactente de 2 meses de idade, com péssimo estado geral. São discutidos alguns aspectos etiológicos e terapêuticos, bem como algumas complicações da enfermidade.

Summary

The authors report a case of pseudomonal malignant external otitis, in a boy 2 months old. Some etiological and therapeutic aspects as well as complications of this pathological processus are discussed.

Agradecimentos - agradecemos ao Serviço de Pediatria pela cessão do caso.

Referências Bibliográficas

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3. Chandler, I.R. - Pathogenesis and Treatment of Facial Paralysis due tu Malignant External Otitis. Annals of Ottol. Rhinol. and Laryng., 81 :648-658, 1972.
3. Morgenstein, K. M. & Seung H. L. - Pseudomonal Mastoiditis. Laryngoscope, 81: 200-214, 1971.
4. Shanon, E. et al. - Pseudomonal Cranulomatus External Otitis. Acta Otolaryng., 73:374-378, 1972.
5. Scwarz, G. A. et al. - Neurologic Complications of Malignant External Otitis. Neurology, 21: 1077-1084, 1971.
6. Wilson, D. L. et al. - Malignant External Otitis. Archives Otolaryngology, 93:419-422, 1971.




* Aluno do Curso de Medicina e Estagiário do Departamento de Patologia (Secção Patologia Oral) da UFSM.
** Assistente do Departamento de Patologia da UFSM.

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