Versão Inglês

Ano:  1974  Vol. 40   Ed. 1  - Janeiro - Abril - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 35 a 47

 

ESTUDO DA CADEIA OSSICULAR NAS OTITES MÉDIAS NÃO COLESTEATOMATOSAS (*)

Autor(es): Airton Kwitko,
Heitor Marques de Azevedo (**),
Osvaldo Aparecido Mazer (***)

Introdução

O envolvimento dos ossículos é freqüente no decorrer das otites médias não colesteatomatosas. Este trabalho estuda a ocorrência dessas lesões e suas localizações, como também a relação entre os ossículos atingidos, o tempo da evolução da moléstia e a conseqüente perda auditiva. Foram relacionadas as possíveis causas da destruição da bigorna, principalmente seu ramo maior, uma vez que este ossículo é o mais atingido por estes processos infecciosos.

Material e métodos

Estudamos 734 pacientes que foram submetidos a cirurgia otológica na Clínica Prof. José Kós (Rio) durante os anos de 1960 à 1970. Todos os doentes foram operados com técnica timpanoplástica sem mastoidectomia. A distribuição das lesões e suas características estão demonstradas no quadro n.° 1. O tempo de evolução, é o período compreendido entre o início dos sintomas e o ato cirúrgico. Somente conseguimos obter informações de 484 pacientes do total dos operados que estão discriminados no quadro n.° 2.

A relação do tempo de evolução da doença e a integridade ou não da cadeia ossicular é estudada no quadro n.º 3.

A alteração auditiva está analisada estatisticamente nos quadros n.º 4 e 5, nos quais os pacientes foram divididos em dois grupos: a) com cadeia íntegra (anatomicamente ou funcionalmente), b) com cadeia interrompida.

Foram separados também os pacientes que apresentavam disacusia de condução e disacusia do tipo misto. Os resultados são a média aritmética da diferencial aérea-óssea nas freqüências de 512, 1024 e 2048 Hz.

Resultados

Dos 734 pacientes estudados verificamos que 537 tinham integridade da cadeia. Destes, em 528 (70,6%) os ossículos estavam íntegros e em 9 existia lesão anatõmica (osteíte do cabo do martelo, destruição do arco anterior do estribo, não estando portanto interrompida a cadeia ossicular). Nos demais 197 pacientes, a grande maioria, isto é, 120 casos (16,2% do total), apresentavam destruição do ramo longo da bigorna. O conceito de destruição não é somente a reabsorção da apófise lenticular como também de todo o ramo maior da bigorna. (Fig. 1)



FIG. 1 - Erosão do contorno ósseo e áreas com osteomielite em um ossículo de criança (9 a.) (Extraída da referência 14)



A evolução da moléstia demonstrou que quanto menor o tempo da mesma, as possibilidades da integridade ossicular são maiores. Consideramos "tempo de evolução" o período compreendido entre o início dos sintomas e o ato cirúrgico. A relação entre cadeia íntegra e interrompida, com o mesmo tempo de evolução no primeiro ano é de 6:1. Do 2.º ao 5.º ano é de 4:1. Do 6.º ano em diante mantem-se em 2:1 aproximadamente. Para o estudo audiométrico dividimos os pacientes em dois grupos: 1) portadores de cadeia íntegra - isto é, no sentido anatõmico ou do funcional, neste último caso embora alguns ossículos apresentassem erosões a continuidade existia. 2) portadores de cadeia interrompida (de reabsorção do ramo maior da bigorna, ausência da bigorna, do estribo ou de toda a cadeia). Foram também estudados separadamente os pacientes que eram portadores de disacusia de transmissão pura ou do tipo misto. Nos pacientes com cadeia íntegra, verificamos, tanto para transmissão como para disacusia de tipo misto (a maior percentagem 33% e 29% respectivamente), diferencial aéreo-óssea de 20 a 30 decibéis e em seguida (25 e 29%) de 10 a 20 decibéis. Nos casos com interrupção de cadeia, verificamos a maior percentagem 33 e 40%, em torno de uma diferencial de 30 a 40 decibéis e, em seguida 28 e 23% de 20 a 30 decibéis.

Fatores causais da destruição ossicular
(Em especial do ramo longo da bigorna)

O envolvimento da bigorna, em especial de seu ramo longo nos processos infecciosos crônicos da orelha média, fêz-nos pesquisar as prováveis causas deste fato. Embriológicamente os ossículos auditivos derivam dos arcos branquiais do embrião (1), com exceção da platina do estribo que se origina da cápsula ótica (2). O martelo no embrião de 8 semanas é contínuo com o 1.° arco branquial, enquanto que a bigorna surge do 2.° arco (1) ou do 1.º (2). Do mesênquima inter-branquial, encontrado ao nível em que o nervo da corda do tímpano deixa o nervo facial, e constituído por células oriundas do 2.° arco, formam-se o ramo longo da bigorna e o cabo do martelo, os quais mais tarde se fundem aos respectivos ossículos tendo origem bem diferente do restante da cadeia (Fig. 2).



FIG. 2 - O ramo longo da bigorna e o cabo do martelo se originam do mesenquima inter-branquial do 2.º arco. (Extraída ref. 2)



A ossificação das cartilagens do martelo e da bigorna faz-se pela substituição desse tecido por ósseo, com a formação dos "globuli ossei" e "espaços inter-globulares", fenômenos que apresentam grandes variações individuais; mais numerosos no cabo do martelo, no processo curto do martelo, na apófise menor da bigorna e pouco freqüente no ramo longo da mesma (3).



FIG. 3 - No corte feito ao nível da articulação estapédio-incudiana, vemos as diferenças histológicas entre os dois ossículos. (Extraída ref. 5)



Histologicamente a estrutura dos ossículos permite diferenciar a bigorna e o martelo do estribo. Os 2 primeiros apresentam uma cortical e uma medular bem limitadas, enquanto que o estribo é um osso atrófico, com a cortical de seus arcos semi-absorvida (2) constituída por lamínulas ósseas, carecendo de osteócitos e de sistema de Havers. No estribo, já a partir do 5.º mês fetal, existe uma carência de medula hematopoiética (4).

A medula óssea do martelo e bigorna, encontrada no osso fetal e infantil, pode continuar a existir no adulto (5). No osso fetal e infantil é sempre hematopoiética. Converte-se gradualmente em medula gordurosa mas, o tipo hematopoiético ocasionalmente também é visto ainda no adulto.

No osso adulto, a medula óssea central é recoberta por uma capa óssea, a qual se apresenta de forma muito delgada, especialmente no ramo longo da bigorna, em sua extremidade distal (4) (Fig. 4). A bigorna, em especial o ramo longo, tem capacidade de se destruir e regenerar. Tem sido observado que a apófise longa da bigorna é histologicamente instável. A remodelação interna e externa pode ocorrer nesta parte do ossículo em qualquer idade (1).



FIG. 4 - Ao nível do processo lenticular vemos a medula óssea recoberta por delgada capa óssea. (Extraída ref. 5.)



Áreas de destruição primária ocorrem no periósteo e no endósteo, sendo a escavação preenchida por formação óssea secundária. A posição e forma destas áreas erosadas sugerem que eram elas originalmente, canais vasculares regularmente encontrados, tanto na bigorna como no cabo do martelo. Ainda que freqüentemente encontrados nos casos de otite média, a condição não está limitada aos casos em que haja infecção da orelha média.

Enquanto que as trocas arquitetônicas na bigorna duram toda a vida, no estribo, ao contrário, as maiores trocas, quanto à forma e constituição, já se completaram durante a vida fetal, não havendo, após, trocas discerníveis (6) (Fig. 5 e 6).

Quanto a irrigação, o martelo tem uma vascularização comum a membrana timpânica e a bigorna, recebendo o fluxo sanguíneo de duas arté rias: a) artéria do músculo do martelo, que provém da artéria meningéia média, pela artéria timpânica superior; b) artéria ossicular, ramo da artéria timpânica anterior, que se divide em artéria maleolar e artéria incudínica. A artéria maleolar percorre a face superior do ligamento lateral do martelo e envia uma colateral até a apófise
Curta (2). No cabo do martelo, na área de contacto com a membrana timpânica, vasos de pequeno calibre são numerosos junto a superfície (7) (Fig. 7).



FIG. 5 - Bigorna de uma criança com 10 meses de idade. Demonstrando a reabsoroão e regeneração óssea, em secção transversa. (Extraída ref. 6)



FIG. 6 - Bigorna de adulto (62 a.). Erosão e regeneração óssea. Secção transversal. (Extraída ref. 6)



A bigorna é essencialmente irrigada pela artéria incudínica, ramo da ossicular. O estribo possue uma vascularização muito particular. Ela é limitada ao bordo periférico da platina e aos arcos anteriores e posteriores. A superfície da platina é irrigada por difusão. O arco anterior recebe irrigação das artérias timpânicas superior e inferior; e o arco posterior de ramos da artéria petrosa superficial.
A vascularização do ramo longo da bigorna, da apófise lenticular e da articulação fincudo-estapediana é feita a partir de três grupos diferentes



FIG. 7 e 8 - (Extraída ref. 2)



A vascularização do ramo longo da bigorna, da apófise lenticular e da articulação incudo-estapediana é feita a partir de três grupos diferentes de vasos submucosos, que se anastomosam entre si e provêm do tendão do músculo do estribo, dos arcos do estribo e da bigorna.

Os vasos do tendão do estribo têm arteríolas constantes, oriundas do plexo arterial do nervo facial: o anterior que se origina da artéria estapediana anterior, nascida da artéria timpânica inferior e o posterior proveniente da rede anastomótica satélite do nervo facial. As artérias provenientes da bigorna são constituídas pela intra-óssea, a terminação da artéria incudínica, que desce pelo ramo longo da bigorna e um ramo da artéria timpânica posterior, que é submucoso. A artéria intra-óssea muitas vezes termina muito acima da apófise lenticular, que é então irrigada apenas por pequenos vasos da cápsula ou da artéria estapediana posterior (2, 10) (Fig. 8).

Durante os episódios de otite média aguda, sub-aguda e crônica, há freqüentemente alterações metaplásicas do epitélio para um tipo escamoso estratificado, como um mecanismo protetor resultante da irrigação causada pelo processo inflamatório (8). Tal fato repercute sobre a vascularização da cadeia ossicular, causando diminuição da irrigação nos pontos mais fracos, dando origem a uma isquemia necrosante principalmente no ramo longo da bigorna e articulação incudo-estapedianas (4, 9).

Topograficamente na caixa timpânica a bigorna é o ponto mais fraco e exposto do elo ossicular; face a esta posição sua patologia é mais freqüente em relação aos outros ossículos (4, 9). Por outro lado, a localização no trajeto do istmo inter-ático-timpânico, com morfologia filiforme e vertical, o ramo longo da bigorna encontra-se entre o ático e a caixa. Sua origem, sobre o corpo da bigorna, corresponde a parede externa do istmo inter-áticotimpânico; está situado na passagem das secreções purulentas vindas do ático para serem eliminadas através das perfurações da membrana timpânica (2)(Fig. 9 e 10).

Discussão e conclusões

Face ao estado anatômico da cadeia ossicular, verificamos que a maior parte das lesões nas otites médias não colesteatomatosas localizam-se no ramo longo da bigorna. A relação entre cadeia íntegra e interrompida aumenta de 6 para 1, no 1.º ano, e de 2 para 1 no 6.º ano de evolução da doença. O tratamento cirúrgico, portanto, deve ser precocemente indicado em toda a otite média crônica. O estudo audiológico demonstrou que não existe diferença entre os dois grandes grupos, isto é, com cadeia íntegra e interrompida. Os dados obtidos na disacusia de transmissão e mista foram semelhantes. Essa verificação não permite concluir, que existindo mecanismo da cadeia, a perda seja em torno de 30 dBs e, com lesão da mesma, seja muito maior (11) ou que uma diferencial aéreo-óssea de 45 a 60 dBs indique perda auditiva máxima, como a produzida por interrupção de cadeia ossicular (12).



FIG. 9 - Meato acústico externo, membrana timpânica e cavidade timpânica. Retirada a bigorna a seta indica o istmo inter-ático-timpânico. (Extraida ref. 6)



FIG. 10 - Meato acústico externo, membrana timpânica e cavidade timpânica com todos ossículos auditivos. A seta mostra o ramo longo da bigorna, localizado ao nível do istmo inter-ático-timpânico. (Extraída ref. 6)



O exame audiométrico, na otite média crônica, visa três pontos principais: a) afirmação da natureza transmissional da estória otológica (medidas das conduções aérea e óssea), b) verificação do valor funcional da cóclea;
c) diagnóstico do tipo e natureza da lesão. Quanto aos dois primeiros itens, o exame tem valor quando a surdez é de transmissão e a cóclea apresenta boa reserva funcional podendo o paciente beneficiar-se com a cirurgia. Quanto ao diagnóstico da lesão, não deve o cirurgião basear-se no mesmo, uma vez que vários tipos de lesões podem dar perfis audiométricos semelhantes: fixação do estribo, da bigorna, da cabeça do martelo (anquilosetimpanoesclerose), colesteatoma servindo como columela e interrupção da cadeia ossicular por destruição óssea.

Nos fatores causais da destruição do ramo longo da bigorna, verificamos que quanto ao fator embriológico - a origem do ramo maior e do cabo do martelo é diferente do restante da cadeia e a ossificação é tardia e com menor número de "globuli ossei". O fator histológico mostra que os ossículos estão melhor protegidos quando não contêm medula óssea, o que não acontece no ramo longo da bigorna. Ele é histologicamente instável, destruindo-se e regenerando-se, mesmo sem processo infeccioso presente. Talvez, aliando-se a este fato, ainda sem elucidação, um processo infeccioso concomitante poderá ocasionar a morte do osso, por desaparecimento de osteócitos, osteoblastos e osteoblastos adjacente (12). Sob o ponto de vista vascular, o ramo da bigorna, principalmente ao nível da apófise lenticular e a articulação incudo-estapediana são as zonas de vascularização mais precárias em toda cadeia ossicular. Os vasos em sua grande maioria são submucosos. A artéria intra-óssea, terminação da artéria incudínica, é a única exceção. Essa artéria lança seus últimos ramos acima da apófise lenticular, que ao aumentar a pressão pela inflamação de mucosa, pode a mesma ficar sem a irrigação sanguínea. A bigorna está topograficamente mais exposta, na caixa, que os demais ossículos e seu ramo longo se localiza na passagem das secreções purulentas vindas do ático, pelo istmo inter-ático-timpânico.

















Resumo

Os autores estudaram 734 pacientes operados de timpanoplastia e portadores de otite média crônica não colesteatomatosa, durante os anos de 1960 a 1970. Verificaram o estado da cadeia ossicular, a relação entre destruição da mesma, o tempo de evolução da doença e os achados audiométricos. Investigaram também o envolvimento da bigorna, principalmente o ramo longo, nos processos infecciosos crônicos da orelha média e discutiram a fisiopatologia de suas lesões.

Summary

The authors studied 734 patients operated on tympanoplasty for chronic suppurative otitis media on the period from 1960 -1970. Ossicular chain was checked, report among destruction of them evoluction's time and audiometrics findings. The authors investigated also envolvement, of incus mainly long process, in the chronic otitis media, and discussed phisiopatology of the lesions.

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(*) Trabalho realizado na Clínica Prof. José Kós - GB e apresentado como TemeLivre no XIX Congresso Brasileiro de ORL.
(**) Ex-Médicos Residentes da Clínica Prof. José Kós - Médicos otorrinola- ringologistas - Porto Alegre/RS.
(***) Ex-Médico Residente da Clínica. Prof. José Kós - Médico otorrinola- ringologista - São José do Rio Preto/SP.
Os autores agradecem sinceramente ao Prof. José Kós e a todos os membros da Clínica.

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