Versão Inglês

Ano:  1972  Vol. 38   Ed. 2  - Maio - Agosto - (34º)

Seção: Artigos Originais

Páginas: 226 a 233

 

FADIGA AUDITIVA, ADAPTAÇÃO E FENÔMENOS CORRELATOS

Autor(es): Armando Paiva de Lacerda*

A audiometria convencional permaneceu ligada, por muitos anos, às duas dimensões físicas de intensidade e freqüência, mas o fator tempo de duração de certos fenômenos auditivos vem adquirindo cada vez maior importância na investigação das distorções supraliminares. Um tom apresentado na intensidade liminar pode deixar de ser ouvido ao cabo de alguns minutos de exposição, se não for aumentada sua intensidade, o que revela a existência da fadiga ou da adaptação auditiva, que se relacionam de certo modo com o recrutamento, embora constituam fenômenos distintos. Assim, ouvidos que apresentam recrutamento revelam freqüentemente a fadiga excessiva, enquanto naquelas em que não se observa o recrutamento a fatigabilidade seria equivalente a do ouvido normal. Por outro lado, é possível observar-se o fenômeno de adaptação anormal em casos de afecções auditivas sem recrutamento, indicando o comprometimento retro-coclear, sendo mesmo um dos testes utilizados atualmente no diagnóstico de lesões neurais auditivas.

No mecanismo fisiológico da fadiga auditiva admite-se que a excitação sonora prolongada acarreta uma diminuição da resposta auditiva até que a energia nervosa possa ser restabelecida por um processo de recuperação funcional. A fadiga auditiva foi bem estudada por Hood, que distinguiu a fadiga pós-estimulatória da per-estimulatória, ou adaptação auditiva. O fenômeno de fadiga tanto estaria ligado ao funcionamento do órgão de Corti como ao das vias neurais auditivas. A fadiga pós-estimulatória seria determinada pelo esgotamento neurônico ao nível das células sensoriais do órgão de Corti, enquanto várias hipóteses foram levantadas por diferentes autores para explicação do fenômeno de adaptação, que estudaremos mais adiante.

Há muitos anos se sabe que a fadiga auditiva pode ser observada após a estimulação, durante algum tempo, por determinada intensidade sonora. As experiências mais remotas sobre o esgotamento auditivo se devem a Dove, Muller e Urbantschitsch, ao procurarem demonstrar que a acuidade auditiva normal é suscetível de sofrer depressões quando influenciada por sons de prova utilizados num dos ouvidos em comparação com o outro. Nas experiências de Urbantschit,ch o esgotamento auditivo fica limitado ao tom de prova no sentido de que o ouvido, momentaneamente esgotado por determinado som, será capaz de distinguir outro som tão bem quanto o ouvido oposto que não havia sido submetido a qualquer influência sonora. Esse experimentador verificou também que a excitação acústica particularmente intensa, ou mesmo violenta, determina um esgotamento acústico. agindo de modo desfavorável sobre a acuidade auditiva.

Experiências mais recentes foram efetuadas por outros autores que empregaram métodos diferentes na pesquisa da fadiga auditiva fisiológica. Hughson, por exemplo verificou que o ouvido fatiga-se depressa quando exposto a sons de forte intensidade durante longos períodos de tempo. Stevens e Davis consideram a fadiga auditiva "uma perda temporária da sensibilidade auditiva atribuída a estímulo prévio acústico, sendo necessário para medi-la, determinar a sensibilidade do ouvido antes e depois de ser estimulado pelo tom fatigante". Para Wolfson "o papel desempenhado pela fadiga da cóclea é bem conhecido. A estimulação contínua de determinado tom num ouvido leva à surdez nesse tom específico e nesse ouvido." Bronstein e Churilova observaram "que o estímulo prévio causa uma elevação do limiar auditivo, mas o efeito é geralmente muito curto, variando de alguns segundos ou minutos, o que depende da freqüência do tom estimulante. A maior quantidade de fadiga ocorre na freqüência do tom estímulo, mas os seus efeitos podem se estender aos tons próximos, o que sugere que o tipo de fadiga na membrana basilar apresentaria o mesmo aspecto das curvas produzidas por efeitos de mascaramento".

Kobrack, Lindsay e Perlman observaram, em pessoas normais, queda temporária da audição em relação a um tom fatigante de 1.024 c.p.s. na intensidade de 80 decibéis, durante dois minutos. Esses autores descreveram três tipos de fadiga em sua contribuição ao estudo da fisiologia do ouvido e da surdez traumática. A fadiga teria origem central, ou seria atribuída à cóclea com diminuição temporária do reflexo do tensor do tímpano, podendo produzir alterações estruturais resultantes de demorada e excessiva estimulação. Um terceiro tipo de fadiga consistiria num lento relaxamento do tensor do tímpano, provocado pela exposição a um tom contínuo, o que representaria uma adaptação acústica aos tons intensos. De acordo com esses autores os estímulos acústicos da vida habitual seriam insuficientes para produzir qualquer desses tipos de fadiga. Na opinião de Rawdon Smith "alguns dos efeitos classificados como fadiga auditiva devem ter origem central' , pois segundo verificou, quando a estímulo fatigante recai sobre um ouvido, o ouvido oposto sofre diminuição da sensibilidade, que não se limita somente à freqüência fatigante. Fatores condicionados à atividade do sistema nervoso central explicariam também a extrema variabilidade do fenômeno no organismo normal. Tanto a variabilidade quanto a natureza binauricular da fadiga podem ser levadas em conta, se admitirmos que a perda da sensibilidade se deve a fatores corticais. 0 fenômeno seria atribuído menos à natureza da fadiga sensorial do que à inibição, estando em jogo, provavelmente, os conhecidos fenômenos de desinibição (inibição da inibição de Pavlov). Nessa mesma ordem de idéias, fisiologistas russos da escola pavloviana procuraram demonstrar, na fadiga auditiva, um fenômeno de origem nervosa central. Stevens e Davis, analisando a participação dos fatores centrais, assim concluem: "O fenômeno de fadiga auditiva aparece complicada por qualquer aspecto da inibição central, o que torna de difícil verificação, por meio de experiências psicofísicas, a perda da sensibilidade dentro do órgão sensorial atribuída a estímulo prévio". Hughson e Witting descreveram como fadiga auditiva a "depressão conseqüente ao estímulo supramáximo". Como esse efeito só aparece em intensidade consideravelmente acima da intensidade requerida pela voltagem máxima do ouvido. Stevens e Davis preferem referir-se a esse fenômeno, denominando-o de sobrecarga (overload). O estímulo supramáximo reduziria o potencial coclear a 30 ou 40% do seu valor original, ao passo que com o estímulo submáximo, não haveria possibilidade alguma de fadiga, isto é, qualquer diminuição da atividade auditiva pelo estímulo prolongado.

No que concerne à fadiga auditiva observada nas condições patológicas, os primeiros autores que a descreveram atribuíram;-na às afecções do nervo acústico. Eitelberg, por exemplo, observou que ela aparece muito mais depressa nas lesões do nervo acústico do que nas afecções do aparelho de transmissão. Na opinião de Ostino, uma das causas de erro, na pesquisa da percepção por via aérea, seria a fadiga do nervo acústico, freqüentemente observada nas afecções auditivas. Gradenigo também admite que um dos sinais mais característicos da lesão do feixe acústico seria a fadiga rápida da audição. Mas foi ainda Urbantschitsch, o primeiro a chamar a atenção para a possibilidade de se verificar o esgotamento e outros fenômenos durante os exercícios acústicos, a que submetia indivíduos surdos. A prática desses exercícios requeria, em sua opinião, permanente vigilância, porque o seu abuso poderia esgotar o nervo acústico, ao invés de excitá-lo, originando-se um estado análogo ao da astenopia nervosa, a que denominou de "esgotamento acústico" (épuisement).

Outros autores ocuparam-se mais recentemente da fadiga auditiva observada em casos de surdez neurosensorial. Hughson e Witting constataram "que a fadiga auditiva aparece na surdez perceptiva, o que não acontece na surdez de condução. Os testes de fadiga e os balanços da sensação (loudness balances) constituem valiosos meios de diferenciação entre os dois tipos de surdez". Na opinião dos autores, os estudos sobre a fadiga auditiva adquiriram grande importância para o otologista, do ponto de vista diagnóstico.

Mas como já vimos, a fadiga auditiva foi melhor estudada por Hood (1950), que a considera uma perda temporária da sensibilidade causada pela estimulação auditiva. Hood descreveu-a sob dois aspectos: a fadiga pós-estimulatória e a per-estimulatória, ou adaptação auditiva. As características fisiológicas da segunda variedade de fadiga diferem substancialmente das que se aplicam à forma pós-estimulatória. Em vista das manifestações auditivas que surgem durante a estimulação pelos tons puros, essa segunda forma foi denominada por Hood de fadiga per-estimulatória.

A fadiga pás-estimulatória estaria na dependência do estado da função coclear. Hood realizou testes nesse sentido para demonstrar diferenças de fatigabilidade em indivíduos normais e em pacientes apresentando dois tipos de surdez: de condução (conductive deafness) e neurococlear (nerve deafness). Verificou que, após exposição de cinco minutos, em cada caso, não havia fadiga nos indivíduos de audição normal e nos casos de surdez de condução, mas que aparecia nos casos de acometimento do ouvido interno. A lesão coclear aumentaria a fadiga, tornando mais demorados os períodos de recuperação.

Adaptação Auditiva

Hood e colaboradores descreveram esse outro fenômeno auditivo com características fisiopatológicas diferentes, a que denominaram de fadiga per-estimulatória ou adaptação aditiva. A adaptação seria a diminuição da sensibilidade auditiva durante um período de estimulação prolongada, por meio de um tom contínuo. A estimulação intermitente não produziria o fenômeno porque o processo de recuperação nervosa serra facilitado pelos intervalos de silêncio.

Halipike e Hood mostraram a necessidade de se distinguir o impulso inicial da excitação auditiva, conhecido como "on-effect", da atenuação progressiva da excitação peia estimulação contínua, denominada "adaptação". No mecanismo normal da audição dar-se-ia o equilíbrio desses dois fenômenos neurais, como foi observado por Derbyshire e Davis (1935). Entretanto, Halipike e Hood reexaminaram tanto a orientação teórica como o diagnóstico clínico, afirmando que certas formas de patologia auditiva são caracterizadas pelo equilíbrio anormal entre os fenômenos de "on-effect" e "adaptação". Os autores britânicos afirmaram que o recrutamento, no qual distinguem as lesões cocleares (end-organ) das neurais, ocorre porque o "on-effect" é essencialmente normal. Assim, um tom suficientemente forte para ser ouvido causa intensa sensação auditiva imediatamente após o início da exposição, ou seja o "on-effect". Os autores assinalam ser essa a situação na doença de Menière, isto é, a sensação auditiva a um estímulo prolongado deteriora-se com excessiva rapidez. Essa adaptação anormal foi denominada "relapse" por Halipike e Hood. Apesar do "relapse" ter sido demonstrado pelos autores como um fenômeno característico da doença de Menière, eles também admitem que possa caracterizar outras lesões cocleares. O aparecimento simultâneo do "on-effect" normal e do "relapse" significa para os autores o envolvimento fenomenológico da cóclea (end-organ). Haveria uma desordem complexa da função das células ciliadas, representando o recrutamento apenas um elemento dessa função multipartida.

Com o objetivo de testar a adaptação auditiva, ao nível do limiar, um método denominado "Threshold Tone Decay Test" foi introduzido, em 1954, na Northwestern University por Carhart, no sentido de se adotar uma técnica simples que pudesse ser conduzida rapidamente, na prática clínica, utilizando-se qualquer audiômetro standard. Os casos clínicos revelaram vários aspectos de resposta ao Tone Decay Test, que foi considerado, inclusive, um meio prático de pesquisa do fenômeno "relapso", pelo qual Carhart demonst,ou especial interesse em seus trabalhos. 0 "relapse" seria a adaptação anormal e excessivamente rápida, encontrada na surdez coclear. O Tone Decay ocorre geralmente num ponto da escala tonal em torno de 1000 Hz, onde o fenômeno às vezes aparece e às vezes não. Outros casos revelam decays extremos, em freqüências agudas, relacionados a condições patológicas ativas do ouvido interno e quando essa condição é restrita ao órgão de Corti, o "relapse" excessivo fica limitado às freqüências cuja recepção se faz nessa região coclear específica.

Como diz Carhart, a extensão do decay é surpreendente, mas seu aparecimento numa freqüência em que o limiar inicial era normal, pode ser completamente inesperado, em termos de conceitos e métodos de observação convencionais. Estamos diante de um paradoxo porque nessa freqüência a audição é normal, de acordo com o critério standard de acuidade, mas altamente anormal segundo o critério de capacidade para manter a resposta a estimulação prolongada. Existem casos inesperados, em que por mais que se aumente a intensidade tonal, o paciente não consegue manter a percepção por um minuto completo. Carhart considera tais casos de extrema adaptação como paradoxais, dizendo ser suficiente, por enquanto, reconhecer a sua existência e as circunstâncias em que ocorrem. O fenômeno "relapse" para ele parece ser bastante diferente das reações auditivas habitualmente observadas, de modo que o estudo sistemático desse fenômeno pode conduzir provavelmente à sua classificação entre as manifestações neurosensoriais, de acordo com os novos sub-grupos clínicos.

Palva, comentando os resultados apresentados por Carhart à VI Conferência Internacional de Audiologia (1957) sobre a adaptação extrema observada em ouvidos normais, diz nunca ter visto tal forma severa de fadiga per-estimulatória, como foi descrita por Carhart. Em sua experiência, em mais de duzentos casos representando, na maioria, lesões do tipo perceptivo a perda da sensibilidade limiar não excede geralmente de 30 a 40 decibeis e não ocorre em mais de 15 a 20% dos pacientes.

O estudo da fadiga per-estimulatória, ou adaptação auditiva, foi ainda realizado por outros autores, que a descreveram sob vários aspectos, mas apreciando-a principalmente do ponto de vista fisiopatológico. Alguns autores, como Alberti, vêm admitindo ser a adaptação anormal de significativo valor na patologia retro-coclear. É conhecida a importância da audiometria automática modificada por Jerger na observação de tipos de curvas que revelam uma adaptação nitidamente patológica ligada a neuronopatia.

O Tone-Decay, é portanto, um dos testes a ser utilizado atualmente no diagnóstico de lesões auditivas do tipo neural, sobretudo no neuroma do acústico, se bem que deva ser reunido a outros testes audiológicos pára um diagnóstico de confiança.

Para Goran de Maré "reina certa confusão na descrição dos fenômenos de fadiga auditiva e adaptação, os resultados das investigações diferindo de um para outro autor, tanto no que concerne às relações de intensidade como à distribuição de freqüências e ao tempo de recuperação. A causa principal das discrepâncias nos resultados das pesquisas parece ser o fato de que provavelmente são diferentes os processos fisiológicos envolvendo o fenômeno. Se alguns experimentadores negam simplesmente a existência do fenômeno, outros descrevem-no como ocorrência rápida, ou de curta duração. Diz não ter observado a fadiga quando utilizou som contínuo e de intensidade moderada. Mas, reconhece que se usando estímulos fortes, como nas experiências de Davis e colaboradores, de Ruedi e Furrer, o efeito é bastante pronunciado, tanto em relação às freqüências elevadas como aos tons baixos. As condições de fadiga auditiva e adaptação seriam bem diferentes na deficiência auditiva. Diversos autores obtiveram, em muitos desses casos, efeitos bem maiores do que os apresentados por indivíduos de audição normal. Tais casos de superfatigabilidade foram observados praticamente por todos os experimentadores que analisaram o fenômeno nas condições patológicas. Quando apenas o mecanismo de condução se acha comprometido não se observa a fadiga, mas em casos de surdez perceptiva ela se manifesta."

Langenbeck estudou a adaptação patológica, ao que chamou de "perda de adaptação", ou "desordem microtraumática", por analogia com a deterioração mais prolongada da audição observada após o trauma acústico agudo, mas não demasiado severo. A deterioração patológica aguda do limiar auditivo atribuída ao trauma acústico, foi por ele denominada de "perda de adaptação", "deslocamento limiar" ou "lesão microtraumática Descreveu esse fenômeno auditivo em casos de lesões microtraumáticas encontradas em. pacientes que sofreram repentinamente o trauma acústico durante a guerra, por detonação de armas de fogo, bem. como em outros casos clínicos de fratura do osso temporal com lesão parcial do nervo auditivo e das células ciliadas do ouvido interno. Comparou, então, a "perda de adaptação" com o efeito de "adaptação patológica" descrito por Hood e com os resultados do "Threshold Decay Test" apresentados posteriormente por Carhart, uma vez que tais efeitos se encontram em certas lesões do ouvido interno, quando se aplica um tom contínuo no limiar do paciente e a sensação do tom desaparece, por algum tempo, para reaparecer, se a intensidade for aumentada e tornar a desaparecer se for mantida. Para Langenbeck todos esses fenômenos auditivos estariam relacionados, podendo-se atribuí-los a diferentes lesões das células ciliadas, ou seja a um ouvido interno vulnerável. A "adaptação patológica" pura de Hood representaria o menor grau do comprometimento coclear e a "perda de adaptação" o maior grau de vulnerabilidade do ouvido interno.

Como resultado de outras pesquisas, Jerger observou que se pode interpretar, separadamente, os fenômenos "on-effect" e "relapse" em casos de trauma acústico. Utilizou a freqüência 4000 Hz, durante dois minutos, ao nível de 10 db acima do limiar do paciente. O aumento da intensidade do apito empregado no teste variava de uma direção para outra, com o propósito de medir o limiar diferencial, que era o objetivo do teste, modificando-se a intensidade pelo método quantitativo. Com surpresa, alguns pacientes de trauma acústico relataram que o tom contínuo tornava-se inaudível antes de decorridos dois minutos, enquanto os apitos continuavam a ser ouvidos facilmente. Em outras palavras, o limiar diferencial para variações de intensidade não diminuiu com a repetição da intensidade do som incrementado de 5 em 5 decibéis, em cada teste.

De nossa parte, nas pesquisas que realizamos no Instituto Nacional de Educação de Surdos, entre 1940 e 1946, descrevemos fenômenos auditivos de observação inusitada, que oferecem muita semelhança com os que foram relatados nos trabalhos dos autores acima mencionados sobre a adaptação auditiva patológica. Referimo-nos aos resultados de nossas pesquisas publicados no livro "Aspectos da surdez da criança e do adulto na pesquisa audiométrica'', aqui no Brasil, e "Audiometric Studies of the Residual Hearing of Pupils of Rio de Janeiro National Institute for the Deaf", nos Archives of Otolaryngology, em março de 1948, nos Estados Unidos, em colaboração com Alfredo E. Vervloet.

Vamos reproduzir alguns trechos desses trabalhos publicados naquela época, que se referem aos achados concernentes ao fenômeno auditivo, a que denominamos de "percepção fugaz dos tons audiométricos e fadiga auditiva", cuja versão em língua inglesa "Vanishing Perception of Audiometric tones and their relation to Auditory Fatigue" na Revista Americana, nos permitiu dar maior divulgação, no campo internacional, aos resultados de nossas investigações, que hoje nos parecem mais relacionados aos fenômenos de adaptação anormal, ou extrema, conforme a interpretação dada a esses fenômenos correlatos de adaptação patológica pelos autores antes mencionados. Os trechos de nossas publicações de maior interesse são os seguintes:

"Desde o início das nossas experiências notamos, em alguns dos exames, dificuldade em se obter o registro nos audiogramas de determinadas freqüências, que eram percebidas de modo peculiar, sendo muito rápida e inconstante essa sensação, embora se pudesse afirmar que ela se verificava. Como continuasse a reproduzir-se de quando em vez, no decurso de nossos exames, foi possível fazer uma observação prolongada e meticulosa desse fato, cuja manifestação nos pareceu em completo desacordo com o que sucedia, habitualmente, na pesquisa do limiar de audibilidade. Dado o caráter de fugacidade de que se revestia, resolvemos denominar a esse fenômeno auditivo peculiar de percepção fugaz dos tons audiométricos, isso após longo período de observação e experimentação a que foi submetido. Trata-se de percepção muito rápida, que se procura medir, como as demais, mas que desaparece em poucos segundos, não permitindo registro na ficha audiométrica. Alguns dos pacientes informam que o tom audiométrico, ouvido inicialmente, como que se extingue rapidamente, enquanto outros têm a impressão de que foi subitamente interrompido. Contrariamente ao que acontece com a percepção habitual de uma tonalidade audiométrica no limiar respectivo, a maior intensidade que possa ser utilizada na pesquisa não exerce qualquer influência para melhorar a sua audibilidade, até o limite fornecido pela escala de intensidade medidora. Ao contrário, devese admitir, paradoxalmente, que a maior intensidade contribua para o desaparecimento da audição. Ao aparecimento da sensação fugaz pela forma descrita, que dura alguns segundos, seguem-se pausas, antes que nova sensação possa ocorrer, constituindo intervalos de 1 a 3 minutos, aproximadamente, entre duas manifestações consecutivas. O reaparecimento da percepção auditiva, seguindo-se a essas pausas, dá-se no mesmo nível ou em níveis próximos e nas mesmas condições já descritas. Isto significa que, uma vez ouvida, fugidiamente, uma freqüência do campo audiométrico, se voltarmos a pesquisá-la logo em seguida não será mais percebida, mesmo na intensidade máxima, para reaparecer dentro de alguns minutos, a uma nova tentativa e assim sucessivamente até que o paciente não acuse mais sensação alguma. Disso resulta uma inconstância ou intermitência da percepção, a par da fugacidade, que é a principal característica do fenômeno. Podemos assim estabelecer as seguintes características principais da percepção fugaz, que pode ser observada em relação a uma ou mais freqüências do campo audiométrico:

a) percepção muito rápida dos tons audiométricos, por condução aérea e óssea, que se observa em níveis de alta intensidade;

b) a sensação é limitada a alguns segundos, sendo que intervalos medeiam entre duas manifestações consecutivas até que não se verifiquem mais respostas;

c) observa-se inconstância ou variabilidade da percepção;

d) como conseqüência, não se consegue registro na ficha audiométrica de tons percebidos nessas condições.

"Outro fato característico da manifestação fugaz é a eletividade que demonstra, durante a pesquisa, por determinadas freqüências do campo audiométrico. Por exemplo, rla5 freqüências 128 e 1024 aparece uma percepção muito rápida e fugidia que reaparece duas, três ou mais vezes, durante o exame, enquanto outras freqüências próximas (256 e 512) oferecem a possibilidade de registro e as mais afastadas (2148, etc) nenhuma sensação acústica despertam, o que continua a suceder até o final da experiência, isto é, até que se verifique o desaparecimento da percepção em 128 e 1024 ciclos. Esses acha dos diferentes, no mesmo indivíduo e na mesma prova, revelam fenômenos diferentes, desde que se tenha adotado um critério técnico rigoroso e uniforme na pesquisa do limiar de audibilidade. Na pesquisa da percepção fugaz procura-se tomar por ponto de referência o nível de intensidade correspondente ao limiar do tom em prova. Constatada, porém, uma percepção muito rápida do som e notando-se dificuldade em se registrar na ficha o ponto em que ela se verificou, procura-se elevar a intensidade até o limite máximo em decibéis, a fim de se ter certeza de que não há também possibilidade do paciente ouvir o tom nesse limite, o que indicará a incidência do fenômeno. Outra maneira de se pesquisar a percepção fugaz consiste em se manter a intensidade máxima desde o início do exame, sucedendo então que o paciente ouve inicialmente o tom utilizado na prova, deixando de percebê-lo repentinamente. Voltando-se a pesquisar a mesma freqüência na intensidade máxima, alguns instantes após, existe a possibilidade de ser distinguida pela mesma forma anteriormente descrita, isto é, fugidiamente, ao passo que outros tons audiométricos vizinhos ou mais distantes são percebidos de forma diferente. De modo geral, nota-se que é de grande vantagem percorrer a escala de freqüências para voltar sobre o ponto em que se surpreendeu a manifestação fugaz, procurando-se obter sua confirmação. Por meio de manobras sucessivas como essa e, com a prática, torna-se possível apurar não só a intermitência da sensação como o número de vezes em que a mesma se repete, dentro de espaço de tempo determinado."

"Mas não só em crianças surdas nos foi dado observar a percepção fugaz, senão também que a constatamos com muita nitidez em pacientes adultos com grave comprometimento a função neurococlear, embora tais casos tivessem sido menos freqüentes". Duas observações mais características nesse sentido foram mencionadas em nossos trabalhos.

A primeira referia-se a um doente de 25 anos de idade, que ensurdeceu rapidamente em conseqüência de processo toxi-infeccioso agudo, do qual resultou sério acometimento da função auditiva e o segundo caso foi o de um paciente apresentando surdez traumática, produzida por explosão, por ocasião do torpedeamento de um dos nossos navios mercantes, durante a última Guerra Mundial. Submetidos esses pacientes ao teste audiométrico tonal, ao lado de escasso registro de limiares auditivos, foram observados sinais muito nítidos de uma percepção fugidia em outras freqüências do campo audiométrico, não permitindo o seu registro. A sensação fugaz parece indicar nesses doentes que o processo patológico neurococlear, responsável por essa forma de surdez, atingiu seu grau máximo, coincidindo com a perda quase total da audição, nos limites em que essa condição extrema se revela no audiograma."

"Vejamos, agora, como interpretar o fenômeno que descrevemos como sendo a percepção fugaz dos tons audiométricos, em face dos atuais conhecimentos (o texto é de 1946) sobre a fadiga auditiva, a acústica fisiológica e a patologia do ouvido. Alguns resultados decorrentes das experiências a que nos reportamos anteriormente sobre as condições fisiológicas e fisiopatológicas, em que se processa a fadiga auditiva, adquirem certamente importância na interpretação do fenômeno fugaz. Um dos fatos extraídos de nossa própria observação é que a sensação fugidia, quando ocorre em determinada freqüência do campo audiométrico, demonstra preferência por essa freqüência sem afetar a percepção e outras que ofereçam a possibilidade de registro, o que faz pensar que o fenômeno se relacione a reações cocleares específicas em níveis em que a excitabilidade esteja extremamente reduzida e que correspondam à freqüência do tom fatigante. Essa eletividade que se manifesta no mesmo ouvida e na mesma prova por determinadas freqüências da escala audiométrica, torna-se mais característica do que a observada por experimentadores que estudaram recentemente ( o texto é de 1946) a fadiga do ouvido normal. Segundo essas experiências, os efeitos da fadiga, apesar de se fazerem sentir com maior intensidade na freqüência do tom estimulante, podem-se estender a outras freqüências vizinhas ou distantes. Outras experiências desse gênero demonstraram ainda que o estímulo fatigante pode exercer influência depressiva sobre o ouvido oposto. A eletividade observada no caso da percepção fugaz restringindo suas sucessivas manifestações a determinada faixa de freqüência sugere estarem em jogo, no mecanismo que a produz, fenômenos de esgotamento em correspondência com algum nível coclear definido. A fadiga auditiva observada em indivíduos de audição normal foi descrita pelos autores como uma perda da sensibilidade dentro da cóclea ou como tendo origem central. Os fatores corticais, cuja intervenção seria considerada muito importante na produção da fadiga fisiológica, não exerceriam a mesma influência nas condições patológicas em que se processa a percepção fugaz. P, natureza binaural da fadiga como um dos efeitos da participação dos fatores corticais, não oferece similitude com o que se passa com a manifestação fugaz, que pode ser observada num só ouvido, como fenômeno sensorial ou periférico, particularmente vinculado à patologia nervosa do ouvido e só observado em casos dessa natureza. A percepção fugaz, exprimindo a perda temporária da sensação de determinado tom audiométrico, durante a pesquisa, seria assim considerada como sinal audiométrico de grave lesão nervosa auditiva, observado em casos de surdez avançada do tipo perceptivo. Por conseguinte, ela deve ser atribuída à falta de intensidade necessária ao impulso nervoso para manter a continuidade da sensação, com a possibilidade mínima de excitação das células ciliadas do órgão de Corti, ou de condução do estímulo nervoso, o que estaria vinculado às alterações degerativas da estrutura nervosa do ouvido e ao desenvolvimento do processo patológico que as determina."

No texto da publicação em língua inglesa, (1948) foi incluído o seguinte parágrafo, como conclusão: "Não é nosso propósito, neste trabalho, analisar o mecanismo do fenômeno (percepção fugaz) mas somente descrever as suas características, a fim de que pesquisas ulteriores, mais acuradas ou melhor conduzidas possam trazer novos fatos que venham a confirmar ou a modificar os que foram estabelecidos, em nossas pesquisas".

Resumo

O autor estudou a fadiga auditiva, em suas condições fisiológicas e patológicas. O fenômeno de fadiga fisiológica tanto estaria ligado ao funcionamento do órgão de Corti, ao das vias neurais auditivas, como poderia ter origem central, na opinião de outros autores. Na fadiga fisiológica foram examinados os aspectos de fadiga pós-estimulatória e per-estimulatória, ou adaptação auditiva, como características fisiológicas que diferem sensivelmente das que se aplicam à forma pós-estimulatória. Refere-se, a seguir, aos fenômenos de adaptação anormal ou patológica, ao "relapse", bem como aos casos paradoxais de extrema adaptação, como sinais da patologia coclear ou retro-coclear. Foram mencionados os trabalhos de outros autores, que descreveram aspectos da adaptação auditiva correlacionados, do ponto de vista fisiopatológico. Refere-se, por último, às pesquisas realizadas no Instituto Nacional de Educação de Surdos e publicadas no Brasil e depois nos Estados Unidos, em 1948, com ã observação de fenômenos auditivos de percepção fugaz dos tons audiométricos, que hoje parecem estar mais relacionados aos sinais de adaptação anormal, ou extrema, conforme a interpretação dada a esses fenômenos correlatos de adaptação patológica pelos autores mencionados no presente trabalho.

Summary

The author studies the auditive fadigue in its physiologic and pathologic conditions. The auditive fadigue occurence could either be due to the organ of Corti's functiohing, to the neural auditive conducts, as have a central origin, in the opinion of other authors in relation to the physiologic fadigue, lhe poststimulating and perstimulating aspects were examined, or auditive adaptation, with physiologic characteristics lhat differ very much from the ones applicable to the poststimulating form. Folluwing, reference is given to the fenomena of abnormal or pathologic adaptation, to "relapse", as well as to the paradox cases of extreme adaptation, as signs of cocclear or retrococclear pathology. Papers of other authors were referred to, which described aspects of correlated auditive adaptation from the physiopathologic point of view. Finally, it is mentioned the researches performed at the "Instituto Nacional de Educação de Surdos", published in Brasil and later in the United States, in 1948, with the observation of the auditive fenomena of slight perception of audiometric fones, which, presentiy, seems to be more related to signs of abnormal or extreme adaptation, in accordance with the interpretation of these correlated fenomena of pathologic adaptation given by the authors mentioned in this present contribution (paper).

Bibliografia

1. 1. Carhart, R. - Clinical Determination of Ab normal Auditory Adaptation, Archives of Otolaryngology, vol. 65, 1957.
2. Carhart, R. - VI Int. Conf. of Audiology, St. Louis, 1957 - The Laryngoscope, vol. LXV111, 1958.
3. Derbyshire, A. J. e Davis, H. - The Action Potentialis of the Auditory Nerve, An. I. Physiol. 113:476-504, 1935.
4. Davis, H. e Silverman, S. R. - Audicion y Sordera, La Prensa Médica Mexicana, México, 1971.
5. Goran de Maré - Auditory Fatigue and Adaptation, Acta Oto-Laryngologica, vol. XL, Fasc. I-II, 1951.
6. Hallpike, C. S. e Hood, J. D. - Some Recent Work in Auditory Adaptation and Its Relationship to the Loudness Recruitement Phenomenon, J. Acoust. Soc. América, 23: 270-74, 1951.
7. Hood J. D. - Studies in Auditory Fatigue and Adaptation, Acta Oto-Laryngologica, Sup. 92, 1950.
8. Hood, J. D. - Auditory Fatigue and Adaptation in lhe Differential Diagnosis of End-Organ Disease, Ann. Otol. Rhín. & Laryng. 64:507-518, 1955.
9. Hirsch, I. J. - La mesure de l'Audition, Presses Universitaires de France, Paris, 1956.
10. Jerger, J. - Differential Intensity Sensitivity in the Ear with Loudness Recruitment, J. Speech & Hearing Disorders 20:183-191, 1955.
11. Lacerda, A. P. - Aspectos da surdez da criança e do adulto na pesquisa audiométrica, livraria Agir Editora, Rio de janeiro, 1946.
12. Lacerda, A. P. e Vervloet, A. E. - Audiometric Studies of the Residual Hearing of Pupils of Rio de janeiro National Institute for the Deaf, Archives of Otolaryngology, março 1948, vol. 47, pp. 239-279, U.S.A.
13. Langenbeck, 8. - Textbook of Practical Audiometry, Edward Arnold LTD., Londres 1965.
14. Portmann, M. e Portmann, C. - Précis d'Audiométrie Clinique, Masson et Cie., Editeurs, Paris, 1965.
15. Saltzman, M. - Clinical Audiology, Grune & Stratton, New York, 1949.
16. Sebastian, G., Badaraco, J. e Postan, D - Audiologia Práctica, Editorial Oberon, Buenos Aires, 1963.
17. Stevens, S. S. e Davis, H. - Hearing, its Psychology and Physiology, John Wiley & Sons, Inc., New York, 1948.
18. UrbanstchRsch, V. - Des exercites acoustiques dans Ia surdi-mutité et dans la surdité acquise, trad. Leon Egger, Paris, 1897.




* Professor de Audiologia no Curso de Logopedia do Instituto Brasileiro de Otorrinolaringologia

Chefe do Serviço de Audiologia da Clínica de Ouvidos, nariz e garganta do Hospital S. Francisco de Assis (IBRO)

Ex-Diretor do Instituto Nacional de Educação de Surdos.

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial