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Ano:  1935  Vol. 3   Ed. 4  - Julho - Agosto - ()

Seção: -

Páginas: 339 a 345

 

RAZÕES DE UM DIAGNOSTICO DE TROMBOFLEBITE DO SEIO CAVERNOSO (1)

Autor(es): DR. GABRIEL PORTO (Oto-laringologista do Instituto Penido Burnier - Campinas).

Nos Arquivos do Instituto Penido Burnier (8), precedida de algumas considerações sobre o assunto, publicamos a seguinte:

(RÉPLICA AO PROF. A. BUSSACA)

OBSERVAÇÃO:

A. I, 11 anos, branco, brasileiro e residente em Jundiaí. Ficha N.° 19.952 - 20 de Abril de 1933.

Antecedentes hereditarios e pessoais de pouca importância. Gozou sempre boa saúde.

Historico da atual doença - Ha dez dias adoeceu com gripe; ha seis dias um colega de Jundiaí praticou incisão pre-auricular não encontrando supuração. No dia imediato outro colega praticou nova incisão um pouco adiante da primeira esvasiando coleção purulenta; em seguida a esta operação, o olho inchou e surgiram otalgia, cefaléia e febre alta.

Exame do paciente ao ser internado no hospital, em 20 de Abril de 1933.

Exame ocular: OE. Exoftalmia. Quemose intensa. Edema das palpebras e fronte extendendo-se ao lado oposto. Movimentos oculares existentes mas limitados. Pupilas reagem bem á luz. Outros exames prejudidos pelo estado de inconciéncia. Após instilação de atropina: fundo de olho anemiado, veias um pouco turgidas. Papila rosa palido e de contornos nitidos.

Estado geral. - Paciente semi-inconciente com temperatura elevada, excitado e queixando-se de forte cefaléia.

Otoscopia á esquerda: conduto cheio de medicamentos, timpano de aspecto normal. Pequena incisão pre-auricular já cicatrizada. Adiante desta, outra incisão onde se encontra dreno de borracha que parece atingir a fossa ptérigo-maxilar. Substituição do dreno por gaze. O paciente fica internado em nosso hospital.

21 de Abril a 2 de Maio - Manifesta-se franco estado septicêmico. Temperatura oscilando entre 37° e 41.° Hemocultura positiva para esta filococos. Fenomenos oculares regridem lentamente; desaparece a congestão da palpebra superior, observando-se nitidamente turgescência das veias da palpebra e da fronte; o edema palpebral diminue; quemose desaparece rapidamente e o olho torna-se menos saliente. O estado geral montem-se entretanto, bastante grave: cefaléia intensa por crises, grande excitação e depauperamento orgânico bastante acentuado. Terapeutica: electrargol, vacinas anti-estafilocócicas do Instituto Pinheiros, óleo canforado, cardiazol, imuno-transfusão sanguinea seguida de grande hipertermia, e abcesso de fixação.

2 a 13 de Maio - Melhoras vão se estabelecendo lentamente; desaparece cefaléia e temperatura declina. Regridem os fenomenos de estase sanguinea no globo ocular permanecendo a exoftalmia. Abertura do abcesso de fixação. O paciente entra em franca convalescença; alimentase bem e ensaia os primeiros passos. Terapeutica: cardiazol.

14 de Maio - Deixou o hospital em boas condições andando com desembaraço. Temperatura quasi normalizada. Exame ocular:

Visão: OD. =1 / OE. = 1
Exoftalmia: OD. = 15mm / OE. = 20mm.

Ptose da palpebra superior. Movimentos oculares normais, com excepção do para cima que está liimtado. Todos reflexos pupilares presentes. Fundo de aspecto normal.

17 de Maio de 1933 - Tem passado muito bem; sente-se inteiramente restabelecido, permanecendo somente certa exoftalmia.

25 de Junho - Passou bem até dois dias atráz quando começou a se queixar de cefaléia.

Exame ocular: OD., visão = 1 ; OE., visão = 1 . Palpebra superior de coloração rósea; permanece a ptose da palpebra; certo gráu de empastamento na parede externa da órbita. Nivel do olho esquerdo um pouco mais baixo que o do direito. Exoftalmia: OE. = 20mm.; OD. = 15mm.

Movimentos limitados para cima. Na região parieto-temporal observase bombeamento osseo. O paciente passa tres dias internados no Instituto para exames clinicos. Reação de Wassermann no sangue negativa.

O exame radiográfico (Dr. Costa Pinto) revelou:

"Sela turcica de aspecto anatômico perfeito, ausência de sinais de hipertensão enfio-craniana, seios da face de transparencia normal.

Ao nivel da região temporal esquerda nota-se um foco de osseo-periostite localizada, de aspecto granuloso, de morfologia irregular e do tamanho de uma moeda de cem reis das pequenas."

Durante estes três dias sofreu cefaléia intensa, oscilando a temperatura entre 36°, 5 e 37°, 8.

Em 28 de Junho volveu novamente a sua casa onde se submeteu a tratamento anti-sifilítico; injeções de Rotbi e Xarope de Gibert.

5 de Julho - continua passando mal; cefaléia violenta sobrevindo por crises e grande inapetência. Continua com a mesma terapeutica antiluetica.

9 de Julho - interna-se novamente em nosso Instituto. Aspecto geral mau; acentuado emagrecimento. O bombeamento da região parieto-temporal mais visivel. Punção na parede externa da órbita negativa; punção na região parieto-temporal negativa. Contagem leucositaria normal. Cefaléia violenta constante.

11 de julho - Internado no Instituto Bernardes de Oliveira. Exame pré-operatorio: Pressão Mx. 10 - Pressão Mn. 7. Tempo de sangramento: 3 minutos. Tempo de coagulação 10 minutos - Hemoglobina 70%. Nesse mesmo dia é submetido a intervenção cirurgica pelo Dr. Bernardes de Oliveira. Anestesia geral com éter. Incisão temporo-parietal esquerda, descoberta do osso temporal. Ao nivel da sutura fronto-temporal encontra-se uma erosão ossea com vestigios evidentes de tecido necrótico. Ampliação da incisão e curetagem ossea sendo exposta a dura-mater que está algo espessada porém depressivel e batendo normalmente. Drenagem e sutura parcial. Fragmentos osseos e tecido necrótico retirados, são enviados, para exame histo-patológico ao Dr. Penna de Azevedo, que nos remeteu o seguinte resultado:

"O exame microscópico dos córtes, revela processo inflamatorio, caracterizado pela presença de exsudato inflamatorio constituido essencialmente por leucocitos polimorfonucleares neutrófilos. Este exsudato infiltra-se na espessura do tecido que apresenta, tambem um procésso inflamatorio crônico com acentuada infiltração de células plasmáticas e de macrófagos.

Não existem caracteristicas de inflamação especifica.

Diagnóstico: inflamação crônica e agúda supurada.

Sequências: ligeiras melhoras, cefaléia discreta e. temperatura normal até o quarto dia, quando surgem fenomenos de irritação meningéia; rigidez de nuca, cefaléia violenta e vômitos que regridem em 24 horas; continua o paciente em estado animador com temperatura sub-febril e no 9º. dia depois de cefaléia intensa entra em torpor.

20 de julho - Óbito.

Resumindo nossa observação para o "Klinische Monatsblaetter für Augenheilkunde", 1934 (9), afirma o ilustre Prof. A. Bussaca que "O quadro oftalmoscópico e a evolução do caso fazem pensar de preferência em celulite do que em trombo-flebite do seio cavernoso.

No sentir unânime dos oftalmologists é dificil o diagnóstico diferencial entre as afecções da órbita; Querenghi (7) compara as doenças da cavidade orbitária ás do abdomem, conhecida caixa de surprezas.

Não podemos, portanto, compreender como nosso prezado amigo e ilustrado Prof. Bussaca, sem ter ao menos examinado o caso, em que existiam elementos ponderaveis para se pensar em trombo-flebite, pudesse concluir pela hipótese de celulite que ao nosso ver não se justifica clinica ou teoricamente.

Sintetisando nossa observação, vemos que o paciente apresentava as seguintes manifestações classicas de trombo-flebite do seio cavernoso:

a) Em seguida a abertura de um foco infeccioso na face, desenvolveu-se bruscamente: exoftalmia e quemose intensa, edema das palpebras e fronte extendendo-se até o olho do lado oposto, turgescência das veias palpebrais e das veias do fundo de olho.

b) Sinais clinicos de septicemia (hipertemia elevada e calafrios) confirmada pela hemocultura que revelou estafilococos.

c) Certo gráu de meningismo manifestado por cefaléia intensa, vômitos e grande excitação.

Como dissemos, em nossa comunicação, só dois fatos clinicos não se enquadram na sintomatologia classica das trombo-flebites do seio cavernoso: a visão que permaneceu sempre = 1 e a evolução para a cura. Aliás foram estes os motivos que nos levaram a publicar esta observação.

Afirma a maioria dos tratadistas que a cegueira é a regra nas trombo-flebites do seio cavernoso, noção que a nosso ver deve ser revista. Charlin (3) em magnifico artigo apresenta quatro observações de trombo-flebite do seio cavernoso e só em uma delas foi assinalada a cegueira; varios outros casos, semelhantes a estes estão registrados na literatura. Charlin atribue a amaurose observada em seu caso a meningite purulenta generalisada; um foco meningêo purulento sobre a via optica na base do cérebro ou sobre a cortiça dos lobos occipitais. Esta deve ser a causa da cegueira, observada com certa frequencia na trombose do seio cavernoso; depende portanto de uma infecção meningéia e não propriamente da trombose do seio. A alteração mais comum do fundo de olho é a dilatação das veias. Segundo Benedict (2) o edema da papila verifica-se em 10 a 20% dos casos e a neurite optica é complicação rara. Dada a visinhança do seio cavernoso com motor ocular comum, motor ocular externo, patético e primeiro ramo do trigemeo, é natural que possa se verificar alterações no dominio destes nervos, que as vezes precedem a exoftalmia e a quemose. A meningite complica muitas vezes a trombo-flebite do seio cavernoso.

E' noção corrente a incurabilidade da trombose do seio cavernoso. Entretanto, Eagleton (4) em sua excelente monografia descreve oito casos de cura tendo reunido na literatura vinte e seis. Além destes encontramos mais dois casos de Larsen (6) e Despons perfazendo um total de trinta e seis. Em alguns destes casos talvez, o diagnostico de trombo-flebite do seio cavernoso possa ser posto em duvida, a maioria, entretanto, é constituiria por observações bem documentadas.

Considerando a trombose como um processo de defesa, capaz em alguns casos de preencher cabalmente a sua função, como acontece raramente na trombo-flebite do seio lateral, devemos admitir teoricamente que a trombose do seio cavernoso possa evolver para a cura.

A clinica e o raciocinio demonstrando a possibilidade, si bem que rara da cura da trombose cavernosa, a noção correntemente emitida pelos tratadistas da incurabilidade desta complicação dos focos supurados cérvico-faciais, merece ser revista.

Aliás, em nosso caso não podemos falar, propriamente em cura, pois ela foi muito relativa, vindo o paciente a falecer poucos mêses depois com uma complicação endo-craniana consequente a um processo de osteite no temporal.

Estudadas as razões de nosso diagnóstico, analisemos agora a hipótese preferida pelo Dr. Bussaca.

Celulite orbitária significa inflamação do tecido celular da órbita. Terrien (10) em seu tratado de oftalmologia não faz distinção entre celulite e fleimão orbitário. Assim procedem, talvez, a maioria dos oftalmologistas que consideram a celulite como fáse inicial do fleimão orbitario. E' o que se deduz da leitura de inumeras observações de processos supurados da órbita. A forma vulgar de celulite m primeira fase do fleimão orbitário não póde ser admitida em nosso caso. A doença começou em 10 de Abril e terminou em 20 de Julho com o exitus lethalis; si existisse um processo de supuração, deveria ele ter se exteriorisado e as manifestações clinicas oculares não teriam regredido.

Encaremos agora a hipótese de uma celulite crônica, afecção, ao que nos parece bastante rara. Muitos tratadistas não se referem a ela e poucas observações se encontram na literatura.

Fuchs (5), entretanto, em seu clássico tratado afirma que a inflamação do tecido celular da órbita póde regredir pela absorpção do exsudato. Além da raridade desta afecção varios motivos clínicos falam contra esta hipotese, em nosso caso. Uma celulite que se estabelece brusca e tão intensamente em um paciente com septicemia tem todas as probabilidades de chegar a supuração; deveria além disso determinar cegueira por compressão do nervo optico e não explicaria a turgescência das veias da fronte e da palpebra.

Vemos pois, que a hipótese de celulite, quer seja supurada ou crônica, terminada pela absorpção do exsudato não deve ser aceita em nosso caso.

Reconhecemos que nossa observação é bastante complexa e esta longe de descrever um caso típico de trombo-flebite do seio cavernoso, e foi por isso, que ela nos mereceu acurado estudo.

No presente caso o diagnóstico diferencial deveria oscilar entre trombo-flebite do seio cavernoso e osteo-periostite da órbita, hipótese muito mais aceitável do que a de celulite.

Não exporemos as razões porque entre essas duas hipóteses preferimos a de trombo-flebite do seio cavernoso para não fugirmos a finalidade desta comunicação.

RÉSUMÉ

DR. GABRIEL PORTO - Raisons d'un diagnostico de thrombo-phlébite du sinus caverneux. (Réplique au Prof. A. Bussaca).

L'auteur transcrit 1'observation d'un cas de thrombo-plébite du sinus caverneux, déja publiée das les "Arquivos do Instituto Penido Burnier". Ce diagnostic a eté contesté par le Prof. A. Bussaca, qui en résumant cette étude dans le "Klinische Monatsblaetter für Augenheilkunde", 1934 à la pag. 426, déclara que "le tableau ophtalmologique et 1'évolution du cas font penser plutôt a une céllulite qu'a une thrombophlébite du sinus caverneux". L'auteur justifique de nouveau son diagnostic, et fait voir que 1'hypothèse d'une cellulite suppurée ne doit pas étre acceptée parte que le malade, a vécu quatre mois et pendan't cette période, la suppuration ne s'est pas extériorisée. Il emet ensuite, 1'opinion que la céllulite chronique est peu probable non seulement par sa rarité mais encore par la symptomatologie présentée par le malade. Il affirme que la présenté observation est loin de décrire un cas typique de thrombo-phlébite du sinus caverneux et que le diagnostic différentiel dans ce cas devrait osciller entre une thrombo-phlébite du sinus cavérneux et une ostéo-périostite orbitaire.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - Comunicação apresentada á Secção de Oto-rino-laringologia da Associação Paulista de Medicina, em 17 de Julho de 1935.
2 - BENEDICT, W. L. - Cranial sinus thrombosis: ophtalmologic aspects.. American Journal of Ophtalmology, 1931, pag. 979.
3 - CHARLIN, CARLOS - Observations cliniques de thrombo-phlébites du sinus caverneux et des veines ophtalmiques. Annales d'Oculistique, 1920 - pag. 708.
4 - EAGLETON, WELLS, P. - Cavernous Sinus Thrombophlébite orbitaire. New York.
5 - FUCHS, E. - Lehrbuch der Augenheilkunde. Leipzig und Wien. Franz Deuticke, 1910.
6 - LARSEN, B. - Otogenous thrombosis of Cavernous sinus with recovery following orbital perforation. Archives of Otolaryngology, 1933. Vol. 17 - N.º 4 - pag. 587.
7 - QUERENGHI, FRANÇOIS - Un cas, curieux d'abcès chronique de 1'orbite. Ann. d'Oculistique, 1897, pag. 182.
8 - PORTO, GABRIEL - De um caso de trombo-flebite do seio cavernoso. Arq. do Inst. Penido Burnier. Vol. III, Fac. 1, Março 1934. Pag. 34.
9 - PORTO, G. - Ueber einen Fall von Thrombo-phlebitis sini cavernosi res. Dr. A. Bussaca no Klinische Mon. für Augen., 1934, Band 93, pag. 427.
10 - TERRIEN, F. - Précis d'Ophtalmologie, 1908. paris J. B. Baillière et fils.

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