Versão Inglês

Ano:  1972  Vol. 38   Ed. 2  - Maio - Agosto - (12º)

Seção: Relato de Casos

Páginas: 158 a 164

 

O EMPREGO DA "TÉCNICA DE SUPERFÍCIE" NO ESTUDO DE TEMPORAIS HUMANOS*

Autor(es): Ney Penteado de Castro Jr.,
Antônio Elber Arruda**,
Cecília de M. M. Ferreira***

Introdução

A necessidade de maior conhecimento dos achados histopatológicos do ouvido interno levou a proposição de novas técnicas histopatológicas para o labirinto membranoso mais aperfeiçoadas que as técnicas convencionais. O ruído ambiental, os medicamentos ototóxicos, distúrbios metabólicos e traumas de etiologia variada são agentes capazes de produzir alterações funcionais e orgânicas em qualquer elemento constituinte do neuroepitélio do ouvido interno.

O aperfeiçoamento dos parâmetros e métodos de aferição audiométricas e do ruído ambiental leva à detecção de perdas neuro sensoriais de maneira mais fiel e acurada. Sente-se, portanto, a necessidade de técnicas histológicas mais refinadas para o órgão
de Corti, que conduzirão a um maior conhecimento da fisiopatologia do mesmo, após correlação com os achados audiométricos.

A histologia convencional, entretanto, contribuiu e ainda contribui de modo marcante
para o conhecimento da estrutura e compreensão da fisiopatologia do órgão de Corti; a proposição de novas técnicas tem como finalidade a complementação e a simplificação da histologia convencional.

A histologia convencional necessita de pessoal técnico especializado, e o preparo dos cortes é demorado, ao redor de 6 meses para temporais humanos (celoidina), passando por diversas etapas. Os cortes histológicos são executados em intervalos regulares, tornando difícil a detecção de lesões localizadas e a reconstrução do órgão, segundo os métodos gráficos de Guild e Schuknecnt são laboriosos. Corre-se o risco de não se detectar pequenas lesões localizadas, ou não se determinar a extensão acuradamente.

Por estes motivos procurou-se desenvolver uma técnica histológica de execução mais simples, permitindo visão global do órgão de Corti e posteriormente uma visão detalhada da população celular.

A "técnica de superfície" foi desenvolvida inicialmente por Retzius em 1879 e mais tarde empregada por Engströn, Ades e Andersson por volta de 1966. Esta técnica foi utilizada por Bredberg em cócleas humanas em 1968. Em nosso meio, R. Marseillan e cols. empregam técnica semelhante em animais de laboratório no estudo de drogas ototóxicas.

Material e Métodos

Foram utilizados para o estudo cerca de 25 temporais humanos, obtidos no Departamento de Anatomia Patológica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de S. P. e estudados no Banco de Temporais na Disciplina de ORL da mesma Faculdade.

Assim, temporais humanos são retirados com cuidado especial, seccionando-se os nervos do meato acústico interno e não se lesando por estiramento, os VII e VIII pares craneanos. A seguir, o mais rapidamente possível, o ouvido médio é exposto, via conduto auditivo externo, e visualiza-se as janelas oval e redonda. Retira-se o estribo, perfura-se a membrana timpânica secundária. Com tubo de polietileno nº 90 adaptado à um conta gotas, ou à uma seringa (tipo insulina) perfunde-se cuidadosamente pequena quantidade do agente fixador pela janela oval. O líquido passará pelas rampas vestibular e timpânica. Repete-se a manobra 4 a 5 vezes para certificar-se que toda perilinfa foi substituída pelo agente fixador. Deixa-se algum líquido no ouvido médio e o conduto auditivo externo é tapado com algodão vaselinado.

O espécime é conservado em refrigerador até no máximo 10 horas para completar a fixação. O labirinto e o osso que o envolve após este prazo são retirados do temporal com goiva e martelo e condicionados em solução de álcool a 70%, em refrigerador. O excesso de fixador é removido com solução Ringer.

Com motor e broca faz-se o desbastamento das espiras ósseas ao nível do promontório até surgir por transparência o labirinto membranoso. Com broca de diamante expõese totalmente o labirinto membranoso, no sentido do ápice para a base. Com microganchos e pequenas pinças fratura-se o restante do tecido ósseo completando a exposição, tomando-se o cuidado para não romper o labirinto membranoso e conservar a parte óssea próxima ao ligamento espiral. Todas as manobras são executadas após o espécime ter passado por soluções alcoólicas progressivamente mais diluídas (70% - 50% - 40%) e finalmente em água destilada para não danificar a preparação. Esta parte da microdisseccão foi executada com o auxílio do microscópio de cirurgia otológica marca D. F. Vasconcelos (fig. 1).



FIG. 1 - Microscópio de cirurgia otológica no centro. A - Portador metálico de osso temporal. B - Instrumental necessário para perfusão do ouvido interno. C - Cateter de polietileno acoplado a seringa-(tipo insulina).



FIG. 2 - Estereomicroscópio no centro. A direita: instrumental para a microdissecção coclear. A esquerda: placa de Petri aonde o espécime é colocado, mergulhado em líquido, ao executar a microdissecção.



Com auxílio do estereomicroscópio, a microdissecção foi executada com pinças de oftalmologia, pinças de relojoaria delicadas e de microganchos (fig. 2). Na microdissecção a cóclea é exposta do ápice à base, obtendo-se visão da membrana de Reissner e logo abaixo, por transparência da mesma, o órgão de Corti. A membrana de Reissner e parte do ligamento espiral são cuidadosamente removidos; a membrana tectória pode ou não ser retirada, o que se faz com freqüência.



FIG. 3 - Sistema de microfoto automático, acoplado ao microscópio.



Neste ponto com o estereomicroscópio faz-se um exame global: verifica-se a densidade das fibras nervosas e observa-se o neuropitélio, sempre atentando para eventuais lesões.

A seguir, com pequenas pinças e tesoura de Bellucci retira-se o órgão de Corti juntamente com parte da lâmina espiral e do ligamento espiral. A peça é montada sobre lâmina e lamínula em meio de glicerina para posterior estudo em microscópio. É fase importante a montagem do órgão de Corti, prestando atenção para que as células ciliadas estejam diretamente voltadas para a lamínula Cuidado especial deve ser tomado para não se aplicar demasiada pressão sobre a lamínula.

A membrana tectória separada do órgão de Corti é montada sobre lâmina e lamínula de modo semelhante ao descrito, para estudo. O ligamento espiral com a estria vascular, o modíolo com o gânglio coclear podem ser estudados, depois de serem preparados pelo método de inclusão em parafina e seccionados seriadamente.

Microscópio Wild foi utilizado no estudo das preparações montadas.

As microfotografias foram tiradas com o sistema de microfoto automático Wild Ma4, acoplado ao estereomicroscópio, ou ao microscópio comum. Como fonte luminosa para o estereomicroscópio utilizou-se de luz tangencial fornecida por lâmpada Photoflood Phillips conjugada com espelhos refletores. Os filmes usados foram Fujichrome de 100 ASA (diapositivo colorido) e Kodak Panchromatic de 125 ASA (figs. 2 e 3).

Achados

A observação os detalhes histológicos classicamente descritos são evidentes. Observou-se que a densidade das fibras nervosas foi maior na espira apical do que na espira basal. As fibras nervosas ao nível da lâmina espiral foram evidentes e dispostas em feixes radial e espiral, ambos dirigindo-se para o órgão de Corti. As fibras radiais, mais numerosas, foram facilmente visualizadas; as espirais, menos numerosas ,foram de difícil observação pelo fato de estarem englobadas pelas fibras radiais. Não foi observada em nenhuma das preparações, uma diminuição significativa da densidade de fibras nervosas (figs. 4 e 5).



FIG. 4 - Oc. 8 - Obj. 8: Cóclea dissecada A Modíolo B - Fibras nervosas mielinizadas sobre a lâmina espiral C - Ligamento espiral D - órgão de Corti visto através da membrana de Reissner E - Janelas oval e redonda F - Aqueduto coclear aberto



FIG. 5 - Oc. 10 - Obj: 6: Espira medial A - Fibras nervosas mielinizadas sobre a lâmina espiral (radiais) B - órgão de Corti - notar o túnel de Corti entre a fileira de células ciliadas internas e externas C - Sulco espiral externo.



FIG. 6 - Oc. 10 - Obj. 40: Espira medial - órgão de Corti - As células ciliadas internas (A) estão fora do plano de foco. O túnel de Corti está situado abaixo das células dos pilares (B) Células ciliadas externas (C) em cuja primeira fileira nota-se os estereocílios.



FIG. 7 - Oc. 10 - Obj. 100: órgão de Corti - Espira basal. A - 13 - C - 1ª, 2ª e 3ª fileira das células ciliadas externas. Notar a presença dos estereocílios com sua forma característica, nas 2ª e 3ª fileiras. A 1ª fileira, focada um pouco abaixo das placas cuticulares não evidencia os estereocílios. Notar o formato típico das células de Deiters (D).



A membrana de Reissner foi encontrada em sua posição habitual, com discreta impregnação pelo corante.

O ligamento espiral aderente ao tecido ósseo da cápsula labiríntica impregnou-se fortemente pelo ácido ósmico (fig. 4).

Observando-se as preparações montadas verificou-se que o neuroepitélio coclear apresenta um mosaico celular disposto irregularmente ao contrário da regularidade geométrica encontrada em animais inferiores.

As células ciliadas internas estão separadas das externas de modo evidente pelas células dos pilares. A cada célula ciliada interna corresponde uma fileira de ciliadas externas, dispostas irregularmente e em número variável. Abaixo das células dos pilares encontra-sé o túnel de Corti (fig. 6).

As células ciliadas são separadas entre si pelas células de Deiters com o formato de uma falange. Ao nível da placa cuticular as células ciliadas apresentam os estereocílios, cujo conjunto forma um W característico com a base voltada para o ligamento espiral. Sob o microscópio os estereocílios apresentam-se como filamentos agrupados de modo indistinto. A estrutura dos estereocílios é importante pois quando desorganizada ou indistinta indica lesão coclear precocemente (figs. 6 e 7).

As células ciliadas externas estão dispostas em 3 ou mais fileiras. As vezes a localização das células ciliadas externas é problemática devido ao arranjo irregular das fiteiras, assim como a presença de células extranumerárias.

As células do sulco espiral externo formam um conjunto celular geométrico e homogêneo sem particularidades.

O exame histológico da membrana tectória revelou principalmente, a presença da "marcas" deixadas pelos estereocílios das células ciliadas, com o formato do W característico.

Das lesões classicamente descritas, a mais freqüentemente encontrada foi a cicatriz falangiana. Tal lesão consiste no desaparecimento da placa cuticular das células sensoriais, sendo o espaço preenchido por prolongamentos ou expansões das células de Deiters (fig. 8). A ausência dos estereocílios também foi encontrada, principalmente em determinadas regiões da cóclea. Tal fato se deve provavelmente a alterações post-mortem.



FIG. 8 - Oc. 10 - Obj. 100: órgão de Corti - Espira média. A - B - C - 1ª, 2ª, 3ª fileiras de células ciliadas externas. Notar assimetria da 3ª camada. Na 2ª camada (B) ocorre ausência de uma célula ciliada, sendo o espaço da mesma preenchido pelas células de Deiters - Cicatriz falangeana (D). Foco microscópico ao nível das placas cuticulares.



A contagem e mapeamento de determinadas regiões da cóclea puderam ser executadas.

Comentários e Conclusões

O tempo decorrido entre a morte clínica e a fixação do temporal é crítico. Após 15 horas, as estruturas cocleares estão degeneradas e com limites imprecisos. Para temporais humanos é aconselhável que o intervalo de tempo entre morte clínica e fixação do temporal esteja dentro de 10 horas, de acordo com observação feita por Bredberg, e por nós amplamente confirmado.

A fixação e coloração da cóclea são etapas fundamentais para a obtenção de bons resultados. No início de nossos estudos foram utilizadas soluções de formol e de nitrato de prata em concentrações variáveis, que eram perfundidas no interior do vestíbulo. Infelizmente os resultados obtidos não foram satisfatórios, pelo fato de não se obter boa coloração. Estudos estão sendo feitos para melhor emprego do nitrato de prata, pois o alto preço de ácido ósmico é certamente uma limitação.

Usou-se então de uma solução de ácido ósmico a 1,5% que é fixador e corante. O ácido ósmico fixa e cora fortemente de marrom escuro, principalmente, as fibras nervosas mielinizadas, agindo mais intensamente após algumas horas. Desta maneira facilita a microdissecção do órgão de Corti e o estudo histológico do mesmo.

Na fase de microdissecção é importante retirar cuidadosamente toda a membrana de Reissner e às vezes a própria membrana tectória. Qualquer estrutura superposta ao órgão de Corti pode dificultar a interpretação de suas estruturas.

Certa dificuldade foi encontrada em preparar e montar o neuroepitélio entre lâmina e lamínula. O órgão de Corti deve necessariamente estar ligado somente à pequena porção de lâmina espiral e ligamento espiral, principalmente nas espiras basal e média da cóclea. Caso contrário a preparação sendo relativamente espessa, dificulta a visão do neuroepitélio. Após as primeiras tentativas este problema foi totalmente superado.

A glicerina demonstrou ser ótimo meio para montagem dos espécimes, não se formando bolhas de ar quando a lamínula é cuidadosamente colocada.

Na "técnica de superfície" melhor imagem óptica é obtida usando-se o microscópio de fase, tornando facilmente reconhecidas as estruturas cocleares.

Os projetos em execução na atualidade, no Laboratório de Temporais da ORL, são relacionados ao estudo da presbiacusia e de alterações vasculares. Avaliação audiológica de pacientes em fase terminal está sendo realizada, e os resultados histopatológicos serão eventualmente publicados.

Quanto às estruturas vestibulares projeto está em andamento no sentido de seu aproveitamento, utilizando-se a técnica desenvolvida por Lindemann.

Sumário

A "Técnica de Superfície" está sendo usada como um método de investigação histológica no Banco de Temporais da Disciplina de ORL da F.C.M. da Santa Casa de S. P.

Esta técnica desenvolvida principalmente por Engströn e Bredberg tem-se mostrado extremamente útil para o estudo da estrutura do órgão de Corti.

Projetos de estudos envolvendo presbiacusia e alterações vasculares labirínticas estão em desenvolvimento.

Summary

The "Surface Preparation" of human Organ of Corti is being used as investigation tool in the Human Temporal Bone Bank of ENT Departament of Santa Casa S. P.

This technique developed mainly by Engströn and Bredberg has shownto be extremely useful for the study of the cellular pattern of the Organ of Corti.

Research projects are being carried out regarding presbicusys and vascular lesions in the labyrinth.

Bibliografia

1. Bredberg-Göran, 1968 - Cellular pattern and nerve supply of the human Organ of Corti. Acta otolaryngologica. Supplement 236.
2. Engströn, H., Ales, H. W.; Andersson, A., 1966 - Structural pattern of the Organ of Corti. Almgvist and Wiksell, Stokholm.




* Trabalho da Disciplina de ORL do Depto. de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

** Médicos otorrinolaringologistas.

*** Fonoaudióloga.

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